Reunião Familiar
Kiell
Acho que não comi o suficiente. Preciso definitivamente de mais força.
O meu corpo não costuma reagir assim, não fico fraco, não sinto as pernas quase a desabar, o coração a saltar-me no peito e a cabeça a embaçar. A qualquer momento posso colapsar, conheço-me bem para saber isso.
Não posso mostrá-lo, está fora de questão, fiz um caminho demasiado longo para mostrar fraquezas.
Mantenho-me no meu lugar, sem recuar um passo, enquanto os arrastam pelo salão principal. É a raiva nos seus olhos que me quer tapar a audição, que me quer fazer desmaiar, todos eles estão em choque, não esperavam isto de mim. Até o Helian, o único que sabia que desconfiava de mim, me parece surpreso, ou talvez esteja apenas assustado. Não esperavam a facada nas costas, mas era necessário.
Embora leve com os olhares nenhum deles protesta, para além dela. Ela não para, grita o mais que consegue, sabendo bem que se disser o meu nome várias vezes vai acabar gravado na minha mente. Os seus berros multiplicam-se, como se viessem de várias bocas, a sua voz propaga-se pelo espaço inteiro, viaja tanto e a tanta velocidade que passo a odiar o meu nome em poucos segundos.
Foi ela que ficou mais em choque, não contava que lhe fizesse isto.
Tive que ser forte, tive que os trazer aqui, protegê-los, ganhar a sua confiança. Não podia desistir no último momento só porque criei uma ligação com eles, há coisas mais importantes, laços mais importantes. Sofri demasiado para deitar tudo a perder.
Sei que ela está aqui, algures.
— O Norte congelou-te o sangue, irmão. — Lá estão eles ao lado do seu estimado Rei, sanguessugas.
Os meus irmãos, conselheiros e assistentes do seu grande pai, vestidos do mais berrante amarelo e com os sorrisos parecidos, todos eles metem-me nojo. Só estão à espera do dia em que ele caia redondo no chão.
O mais velho, Cadio, caminha até mim, de braços atrás das costas, fingindo-se atingido pelo que acabei de fazer. Um brutamontes, de corpo armado e cabeça vazia.
— Matas para ter o trono, tolo. — Ery, outro irmão, o mais alto e esguio que, apenas uns anos mais velho que eu, já começa a perder o cabelo, decide pronunciar-se.
— Já disse o que procuro, voltarei às minhas terras quando a tiver. — O meu pai, sentado ao trono, ouve tudo com atenção, sem pressa para corresponder às minhas exigências.
— Podes crer que voltarás. A tua presença causa azar. — Finalmente decide deixar as conversas amigáveis entre irmãos e levanta-se do seu trono para se aproximar de mim. — Onde é que os encontraste?
— Refugiados em casa de um dos meus aldeões. Resultado de um Rei debilitado. — A bochecha arde, e as pernas vacilam. Lembro-me muito bem das suas chapadas, da sua violência, embora possa curar, tenho memórias vívidas das minhas feridas.
Engraçado como retive essas lembranças horríveis quando saí daqui tão cedo, devia lembrar-me de pouco mas o sentimento de medo sempre esteve aqui, é algo que nunca foi embora. Os meus irmãos já tinham entrado na adolescência, eu ainda era um miúdo, talvez tenha sido escolhido por ser o mais novo, por ter poucas memórias desta terra. Era o mais fácil de moldar, por isso fui para o Norte. Acho que ainda não tinha completado os meus dez anos, acordaram-me a meio da noite, meteram-me dentro de uma carroça e mandaram-me para longe, o meu próprio pai, abandonou-me.
Não houve cartas, visitas, um único tipo de afeto, nenhum sinal de que ele sabia que eu existia.
Foi me informado, apenas alguns meses depois de ser enviado para essas terras, que vim para aqui para apaziguar o Norte. O meu pai tinha que mandar um herdeiro para cima, como um objeto de paz, como uma promessa de que o Norte e o Sul estão ligados.
O meu futuro seria governar essas terras, casar com a pessoa de cargo mais alto, ter filhos com sangue dos dois pólos. As guerras acabariam, os ataques cessariam. Não haveria violência, embora, pelo que vi no caminho para aqui, essa hostilidade ainda permaneça.
Deixavam-me visitar o Sul, de vez em quando, de muitos em muitos anos, só por essas visitas é que consigo reconhecer os seus rostos. Mas conforme o tempo passava, a ideia de que eu era como os meus irmãos ia desaparecendo. Para eles não era do seu sangue, mas sim um nortenho que se infiltrou na família real. Recebi apenas ódio e passados uns anos, deixei de aparecer.
O problema é que a vida no Norte também não era fácil, educado para liderar, para estudar, nunca tive uma vida livre. Passei muito tempo fechado na minha casa, tanto por obrigação, como porque queria.
Não queria brincar ou sair quando as pessoas me olhavam com nojo, me chamavam nomes, me esbofeteavam, e me faziam sentir como merda. Sabiam que era diferente, e ainda por cima estava a crescer para poder mandar neles. Tinham medo que me tornasse num ditador, em alguém que seguia as ordens do Sul e não lutava pelos seus. Entendia os seus receios, aceitava a sua violência, e por isso fazia por não os culpar e forçava-me a ficar em casa.
Tornei-me um traidor para os meus e para os que não eram meus.
Fui desrespeitado por ambos.
Os dois não me queriam perto, uns porque já não lhes pertencia e vivia com o inimigo, e outros porque nasci na terra inimiga e por isso seria tão terrível quanto eles.
Um estrangeiro nos dois lados.
Feliz em lado nenhum.
A única coisa boa no meio disto tudo era Nur, a mulher que fez papel de mãe, que me educou, que me tornou no homem que sou hoje, que nunca me tratou como se fosse algo diferente. Para ela era digno de respeito, de admiração, de orgulho. Nunca me senti especial, mas ela fazia-me sentir que um dia poderia sê-lo, um dia.
Foi ela que me fez acreditar que não precisava da aceitação do meu pai para ser alguém.
Podia ser a minha própria pessoa.
Perdi a sombra que tinha, graças a ela.
Pensava que podia ter uma vida normal, que podia enfrentar tudo o que viria à minha frente, até ela me ser tirada.
Acho que ele pensou que estava demasiado bem.
Prometeu devolvê-la se me tornasse digno, o que quer que isso queira dizer.
Não há maneira melhor de lhe provar que o sou do que trazer quatro escravos.
— Há quanto tempo não passam o Anel? Precisam deles. — Ele pode tentar criar os portais, se não houver Hisengs, não sobreviverão a viagem. — Cumpri a minha parte do acordo, é a sua vez.
Um passo em frente e estou quase de corpo colado ao seu, o meu pai sempre me meteu medo, mas não desta vez, tenho que me erguer, não saio daqui sem ela. Está sério, mas curiosamente não parece zangado, não recuou ao meu avanço, mas também não o repudiou. Acho que consegui impor um pouco de autoridade.
— Vão buscar a empregada. — Diz alto o suficiente para que os guardas à nossa volta o ouçam.
Ele soube quando cheguei aqui, os ratos que tem espalhados por toda a cidade não deixam escapar este tipo de informação. Mal viram a minha cara correram para o chefe. Obviamente sabia que vinha acompanhado, não se deixou enganar, sabia que não eram meus seguranças, sabia que não eram daqui mesmo que viessem disfarçados. Conhece-me demasiado bem, ainda que não me conheça de todo.
Conhecia o meu desespero, e leu-me bem.
Sabia quando chegaria e o que queria, por isso é que a sua chegada ao salão não demora nem um minuto. Estava lá atrás mesmo antes de chegar, aposto.
Massaja os pulsos com manchas negras, há quanto tempo esteve com eles presos?
Esconderam-lhe o resto do corpo de propósito, vestida como realeza apenas para me enervar mais. Com as saias ao peito até aos pés, e o casaco que lhe cai um pouco acima da cintura mal lhe vejo a pele, a única coisa que escapa são as mãos e o rosto. Consigo reparar o quão maltratada foi até com poucas pistas, o seu cabelo branco que antes lhe chegava às coxas e estava todos os dias entrançado foi rapado, uma parte da sua cabeça também está com uma nódoa negra. Noto pelos seus olhos que não dorme uma boa noite de sono há muito tempo, parece ter envelhecido décadas.
— Nur! — Ela parece surpreendida por me ver, os seus olhos tornam-se enormes na cara tão mais magra. Até a privou de comida, o traste. Agora livre de qualquer algema e cela, dá um passo em frente, insegura. Não sabe se tem permissão de vir até mim, nem sei se ainda me considera um aliado. — Vai pagar por isso. — Ameaço sem pensar, sei com quem estou a falar, mas a raiva fala por mim, sinto o meu sangue ferver. Quero atacar, fazê-lo pagar por tudo o que me fez.
— Depois do que estou a fazer por ti, ainda és respondão, filho? — E a sua boa abre-se num grande sorriso, o que lhe disse não o afetou de maneira nenhuma, acho que o incentivou a picar-me ainda mais.
— Mandou-me para longe, capturou a única pessoa que quis saber de mim.
— E fizeste o caminho de volta a casa. — Levanta a mão, e quando espero outra palmada na cara por desafiá-lo, o seu polegar passa-me pela bochecha, mesmo em baixo do olho, com calma, como uma carícia. Já não mostra os dentes mas continua com um sorriso pequeno. Parece realmente feliz... feliz? Acho estranho estar a sonhar com uma coisa destas, não posso estar a dormir, isto é real, só pode ser real. Mas aquele brilho nos olhos negros, o sorriso genuíno, o carinho que nunca senti vindo dele.
O abanar lento da cabeça faz-me concluir o sentimento que ele está a tentar passar.
Orgulho.
O homem que sempre me tratou como um pária, como um inseto, algo que rejeitou sempre que fosse dele, fez-me passar por tanta coisa, moldou-me o coração para o manter sempre fechado, habituou-me à desilusão, está a mostrar que fiz um bom trabalho.
É a primeira vez que o vejo, o tempo parece que para, aquele sentimento que pensava ter deitado ao lixo há muitos anos de querer ser aceite por si volta como uma chapada, pior que as dele. Volto a ser um pequeno, uma criança iludida que amava o seu pai e só queria estar perto dele.
Antes de me afastar bruscamente noto que tenho vontade de sorrir.
Mas não o faço.
— Vamos, Nur. — Estico a mão para ela, que acelera o passo e chega até mim, até o seu andar mudou, como se já não o fizesse há dias. — Espero que nos deixe em paz de agora em diante.
— Vai. — Ele incentiva, e os meus irmãos olham-no confusos, não sabemos porque é que ele está a ser tão brando comigo quando nunca foi assim.
Ele volta para o seu trono, o meu irmão recua para a linha dos outros, é como se eu nunca tivesse estado aqui. Olho para o meu pai uma última vez, ele fita-me com uma expressão que não consigo decifrar, mas deixa que me afaste com a Nur.
Finalmente poderei descansar depois deste tempo todo com o coração cheio de culpa, vou voltar para as minhas terras e esquecer que estes dias aconteceram. A aventura acabou, o grupo desapareceu, tenho a Nur comigo, isso é que importa.
O meu pai limpa a garganta e por momentos confundo o som com uma risada rouca, como se estivesse a fazer troça de mim. Ele aproveita os meus olhos sobre os seus para sorrir de novo e pela última vez fala comigo, apenas para ameaçar.
— Mas temo que não terás paz durante muito tempo.
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[ Se chegaram até aqui, gostaria de saber o que estão a achar do livro :) ]
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