Rebeldia Desnecessária
Pergunto-me como uma vida consegue mudar tanto. Será que nos dão uma vida calma e feliz no início para podermos dar valor mais à frente? Ou é só um castigo pelas vidas passadas? Talvez tenha assassinado alguém, ferido alguém, ou passado à frente numa fila prioritária.
Tantas possibilidades, e nunca saberei a resposta, e mesmo que soubesse não mudaria nada.
A infância continuaria a ser feliz e cheia de boas memórias de uma família unida e sorrisos, e a adolescência seria como cair de um penhasco.
O pai teria arranjado outra, teria trocado a mãe, que acabou por perder a cabeça e esquecer que houve um fruto daquele casamento fracassado.
Poderia ter todas as respostas e o meu castigo continuaria a ser esse penhasco. Nunca haveria ninguém lá em cima para me impedir de cair, nem lá em baixo para me amparar a queda.
A não ser que a resposta esteja no futuro, e o culpado não será uma questão de crescimento pessoal, nem a minha vida passada. Se calhar estou destinada a fazer coisas terríveis, e por isso já estou a pagar por isso, porque pagar na altura da asneira não seria suficiente.
É sobre isso que me preocupo enquanto espero ao balcão da loja de penhoras, e não na caixa de relógios, jóias e roupas caras que o homem magricelas examina antes de me dar o preço, maior parte injusto para mim, que tenho que sobreviver com aquele dinheiro, justo para ele, que tem que vender artigos usados e roubados.
Preparo a voz, tossindo, prevendo a discussão que sempre se aproxima quando ele acaba. Ele nunca se entende comigo, gosta mais de quem não lhe faz frente, de alguém que conhece este ambiente desde novo, que comunica mais com os olhos que a boca.
Esse seria o rapaz que acabou de entrar pela loja adentro, não lhe faz diferença a falta de luminosidade, conhece estes lugares escuros muito melhor do que eu, embora não o faça por necessidade.
Tem o cabelo castanho para cima, espetado, embora normalmente esteja sob os olhos, acho que prefere que não o identifiquem. Mas hoje é diferente, deve vir de algum trabalho, cabelo arranjado, uma camisa branca por dentro das calças de ganga claras e os sapatos envernizados. O breve pensamento do seu paradeiro, e a suspeita de que fosse para algum trabalho, evapora quando ouço o seu suspiro ao fechar a porta atrás de si.
Esteve com a família, vai estar com um humor terrível.
— Não me lembro de ter chamado o empregado de mesa, foi você? — Arrisco levar com a sua raiva para piorar ainda mais a carranca que já tem na cara. Ele não reage, mesmo quando o homem do balcão se ri. Agarra-me no ombro apenas por uns segundos para me puxar para si e beija-me o cabelo, cumprimentando-me, mesmo depois do meu comentário infeliz.
— Pediste-me para vir. — E não acha que deve mais explicação que isso. Usa a minha mensagem pedindo a sua companhia para justificar porque veio direto da sua reunião de família rica e idiota.
Adoro-o. Adoro-o por várias razões, mas há momentos em que penso que o odeio mais.
A palavra certa seria inveja.
Invejo-o porque poderia viver uma vida confortável e não o faz, invejo-o porque é melhor que eu em tudo o que se mete, mesmo que sejam coisas desonestas, invejo-o por ter nascido numa família rica e eu muitas vezes não tive de comer, mas odeio-o porque faz tudo o que eu faço sabendo os riscos, e fá-lo sem necessidade.
Poderia ter todas as vidas, e escolheu a vigarice.
Quando o que não lhe falta é dinheiro.
Fá-lo por diversão e adrenalina.
E não precisa.
Ele desabotoa alguns botões da camisa para fugir à sua aparência demasiado enjoativa. Como se isso fizesse alguma coisa, aquele cinto preto é de uma marca que nunca conseguiria comprar e aqueles sapatos são o que mais brilham na loja toda. E a montra está cheia de anéis de pedras preciosas.
É um rapaz que é de um mundo completamente diferente e, no entanto, pertence mais a este ambiente escuro do que eu.
Os seus olhos claros caem em mim e, como de costume, congelam-me. A sua expressão sempre teve esse poder em mim, os olhos azuis que deviam ser considerados bonitos e que tantas raparigas os acham, deixam-me sempre em estado de alerta. Acho que me provocam essa reação porque consigo lê-los tão claramente.
Aquele azul sempre me diz que sofreu mais que eu, que é frio como gelo, e que, embora nunca esteja satisfeito com a vida que tem, fará de tudo para conseguir o que quer, o que for.
Acho que é a sua imprevisibilidade que me incomoda, o saber que mesmo que o conheça há anos, nunca vou saber o que fará. Sempre o rapaz metido em sarilhos com um pai nas costas, pronto para o salvar. Faz tudo por rebeldia e mesmo sabendo isso, é por essa razão que fiz amizade com ele.
O olhar não dura muito tempo, mas deixa a marca habitual, começa por falar com o homem, poucas palavras, nenhuma inútil.
Acabo por conseguir pelo menos o dobro do que ele me ofereceu no início, tudo por sua causa. Claro que lhe ia pedir para vir, os resultados são melhores. Saio da loja satisfeita e com o bolso cheio. Conto com cuidado o dinheiro, separo um terço e entrego-lhe.
— A tua parte. — Encontro uma mão fechada e o mesmo olhar de sempre. — Encurtei-a desta vez, para não te sentires tão mal. — Sorrio com uma simpatia que ele sabe ser genuína, embora rara. Ele continua a andar pela rua fora, virando a cabeça para ocasionalmente me congelar. Não está feliz. Dou-lhe uma cotovelada e sorrio novamente, recebo um rolar de olhos.
— Não vou repetir. — Está aborrecido, como fica das outras vezes que lhe ofereço uma parte do dinheiro que fazemos. Ele pode fazer a maior parte do trabalho, mas eu recebo tudo o que ganhamos. No fundo sei que é justo, afinal, ele não precisa. Mas sinto-me mal se não oferecer. Decido não insistir mais, as notas voltam ao bolso onde terão bom uso. — E eu não pareço um empregado. — Comenta, provando que realmente o incomodou, lembrar-lhe que não pertence a este mundo, que não devia estar ali. — Tenho um trabalho para amanhã, ficas lá em casa? — Nem precisa de perguntar, o que eu não daria para poder passar todas as noites no seu apartamento de luxo, já tenho o meu próprio quarto que ele me deixa decorar como quero. Se pudesse mudava-me para lá, e não é como se não tivesse sido oferecido, o orgulho é que não deixa. Por agora. Porque a cada dia que passa a paciência vai esgotando.
— Precisamos de ir a tua casa? — Pergunta quando faço a esquerda em direção a minha casa. Abano com a cabeça e ele percebe imediatamente o que quero dizer, preciso de deixar algum dinheiro em casa, vim à loja por essa mesma razão, precisava dele. Ele caminha ao meu lado sem protestos, já está habituado. Começa a dobrar a camisa até aos cotovelos, não sei como ainda não morreu de calor vestido assim.
— O que foi hoje? Almoço de família? Talvez uma reunião para ver quem herda o casarão? — Outro suspiro frustrado, odeia que fale da vida que tenta esconder.
— O meu avô está doente. — Responde nada animado, mas sem forças para começar uma discussão.
— Qual das sanguessugas vai atacar primeiro? — Refiro-me aos seus irmãos. Demasiados para eu ter alguma vontade para os contar. Não há resposta, como previa, porque haveria de responder quando sabe que só o quero picar? — Lamento pelo teu avô. — Já perdi os meus, e não é por haver muito ou pouco dinheiro que vai ser menos doloroso. Só não sei é se ele tem uma relação com o avô ao ponto de ficar triste, se tenta fugir dessa vida, é porque se calhar não haverá muito amor.
Abro a porta de casa e ele segue-me, conhecendo o caminho que fez tantas vezes. Sigo para a sala, rezando mentalmente para que ela não esteja.
Não sou bem-sucedida.
— Helian! — Um grito demasiado alto e entusiasmado vindo da mulher pálida com faces encovadas. Sempre o adorou. — Já não vens aqui como antes. — Queixa-se com uma careta.
— O trabalho não deixa. — Desculpa-se, escondendo o nojo que tem por ela, o homem desmaiado ao lado dela não ajuda. Deixou de entrar em minha casa porque ela sempre foi demasiado assanhada com ele, nunca vi o Helian tão desconfortável como vejo com a minha mãe.
— Sei o trabalho que fazes. — Ataca, os seus olhos vagueando dos sapatos até ao cabelo cuidadosamente penteado. Ela, ao contrário do Helian, não esconde o nojo que sente ao vê-lo com aquela vestimenta toda. Embora seja o facto de que ele tem dinheiro que faz a graxa acontecer. Entrego-lhe algumas das notas e vejo-a sorrir, satisfeita por mais um mês em que não tem que trazer dinheiro para casa, esse trabalho recai sobre a filha desde que o pai foi embora.
Fico-me por esse simples contacto caminhando até ao quarto para pegar algumas roupas e coisas necessárias para passar a noite fora. Saio sem me despedir.
— Aquela mulher dá-me arrepios. — Confessa o que já sabia. Se pudesse tinha corrido de lá. É engraçado vê-lo tão desconfortável, conhecendo-o como conheço, sempre tão confiante, inabalável.
— Admira-me que te tenha chamado pelo nome, normalmente usa o cunhado. — Convencida que o meu plano é fisgar Helian pelo seu dinheiro, se fosse ela já teria tentado, interesseira como é. Acho que o assunto já não é bem-vindo, ele permanece em silêncio.
Finalmente vamos para a sua casa, o grande apartamento com janelas enormes, mobília bonita e escura e camas fofas. Agora que anoitece deixo que o Helian cozinhe o jantar.
— O que é desta vez? — Começo quando percebo que ele não o faz. Parece mais nervoso que o costume.
— Vou tentar ir sozinho. — O sangue ferve-me nas veias.
— Estás louco? Queres acabar na cadeia? Temos a ajuda do Sesh pela proteção, sozinhos...
— Estou preparado, já não preciso de ajuda. — Está mesmo decidido, para tudo o que está a fazer para olhar para mim, para que possa ver nos seus olhos que está a falar a sério.
Durante anos ganhamos dinheiro neste negócio, enganar, manipular, roubar. Mas nunca ganhei só para mim, quem arranjava essas artimanhas não éramos nós, mas sim Sesh, o homem manhoso que pede sempre uma parte em troca das ideias e a ocasional proteção, os seus contactos com os superiores já nos safaram várias vezes.
Ir sem ele é deslealdade, é perigo.
Olho para ele e só vejo confiança, pensa mesmo que consegue fazer isto. Aquele cabelo penteado já se descontrolou há muito tempo, caindo-lhe sobre os olhos. Já se parece um pouco com o rapaz sem juízo que conheço.
— Como esperas fazer isso? — Ele espera a pergunta, e atira-me com a resposta para cima da mesa.
— Interfere com os sistemas de segurança. — Aponta para um comando preto e branco retangular. — Fui eu que o fiz, já o testei, arranjei o alvo e marquei a data.
Então ele está a planear isto há muito tempo, sem nunca tocar no assunto, decidiu apenas falar sobre isto hoje, no dia anterior. Quando está tudo resolvido.
Este comando quer dizer muito mais do que ele pensa. Pelo menos para mim, é sinal que não vai parar, que este sentimento de poder vai crescer, que ele se vai querer tornar em algo maior, tão perigoso como os cães grandes que sabemos que nos temos que afastar.
Faço as perguntas que acho necessárias e nada mais, não lhe quero dizer o que estou a pensar ou teria que levar com o seu mau humor. Embora ache isto uma ideia estúpida, uma rebeldia desnecessária, alinho, porque acredito nele e porque preciso do dinheiro. Acordamos os detalhes antes de ir para o quarto, quero descansar um pouco antes de termos que sair.
Subo as escadas, ouvindo-o lá em baixo, movendo-se lentamente, bufando alto de vez em quando. Aquela cabeça deve estar a rever o plano quinhentas vezes. Não quer falhar, não quando tem algo a provar.
O meu quarto é o último no extenso corredor, obrigatoriamente tenho que passar pelo de Helian. Normalmente nem me atrevo a olhar, está sempre escuro, janelas fechadas, tudo perfeitamente arrumado no seu lugar, não há uma roupa fora do armário, um vinco na colcha, uma caneta fora do sítio. Não sei se é a sua escuridão ou simplesmente medo de, se olhar, alguma coisa salte do lugar e tenha que o ouvir falar sobre como as coisas deviam estar no seu lugar, mas o seu quarto sempre me deu arrepios, como se algo me olhasse de volta se espreitasse.
Costumo acelerar o passo quando passo a porta aberta.
Mas desta vez há algo que me leva a tentar o destino.
A escuridão não me olha de volta, em vez disso é um brilho na minha visão periférica.
Os segundos que tenho para analisar não são suficientes, o brilho desaparece como se fosse por minha causa. Era como uma luz azul, talvez roxa, uma mistura de cores que a cabeça não consegue assimilar com rapidez. Procuro um projetor, um telemóvel, o que for que criou aquele brilho. Não há explicação para a luz, talvez a minha mente esteja a pregar-me partidas de mau gosto. A inventar luz num quarto sempre escuro para afugentar o receio.
Quando volto à realidade já me fechei no meu quarto, com aquela sensação de que algo me observa bem longe. Tenho que me convencer de que ela foi embora, senão não conseguirei dormir.
Cubro-me com os cobertores até à cabeça, o Helian aparece, como sempre faz quando vai dormir. Abre a porta e analisa-me por um momento, entra no quarto, puxa o lençol para cima, depois a colcha, dobra o lençol sobre a colcha e aconchega-o debaixo do meu queixo.
— Confia em mim. — Sussurra já perto da porta. Não é costume dele falar, apenas vê se estou confortável e sai, às vezes existem estes pequenos gestos a que chamo de amor, sem uma única palavra, apenas ações que o mostram. Depois tende a fugir.
Desta vez pede-me para confiar nele, pede-me que acredite nele como nunca ninguém acreditou.
Custa-me ter que o fazer quando a minha liberdade está em risco, mas é o que farei, porque se há pessoa em quem acredito, é nele.
Ele acorda-me ainda de noite, consegui dormir umas boas horas e embora não me sinta muito bem-disposta, estou pronta.
A casa fica a uns bons 45 minutos de sua casa, não tem muitas mansões, mas esta é a maior delas.
As dúvidas estão a começar a chegar.
— Helian...
— O dono está fora, é um amigo do meu pai. Vamos. — Sai do carro com a mochila às costas, temo que esta confiança toda seja arrogância e isto seja demasiado.
Andamos até ao grande portão e circundamos o muro, construído à volta da mansão. Encontro um sítio que possa escalar e com a ajuda do Helian subo, puxo-o pelo braço e ajudo-o a vir para o meu lado. Antes de saltar para o outro lado, espero. Faço um barulho com a boca, como um estalido baixo, mas suficientemente alto para que me ouçam. O nosso alvo ouviu-me, vejo a luz ao fundo acender com o sensor de movimento e os três cães correm até nós. Atiro os lanches especiais que o Helian preparou e passados uns minutos os bichos de pêlo preto estão desmaiados.
Vejo-o carregar no comando e a luz na primeira câmera, fixada em cima da grande porta, desliga-se. Suponho que as outras tenham seguido o seu exemplo e salto para a propriedade. O quintal é enorme, apressamo-nos para a porta de trás por ser a que parece mais simples de arrombar.
Usa o pé-de-cabra na porta e, mesmo que ele já tenha entrado pela casa adentro, espero.
Será mesmo seguro? Conseguiu fazer com que todo o equipamento de segurança se tenha desligado? É mesmo possível fazermos isto sem sermos apanhados graças a algo que ele diz ter construído?
Dou-me apenas uns segundos de dúvida antes de entrar, não há sons ou movimentos suspeitos, e se vim tão longe, é para cumprir.
Meto o que posso dentro da mochila, deixando o Helian no primeiro piso, e subindo para o segundo, os quartos, onde encontro pelo menos duas caixas com jóias lindas e brilhantes. Apanho tudo o que me parece valioso e encho a mochila num instante. Existem pelo menos sete quartos neste andar, mas apenas três estão em uso, o que me parece ser de uma adolescente, um rapaz e dos pais.
Quando desço percebo que o Helian já se encontra pronto para sair, controlamos bem o tempo sem realmente olhar para ele, sabemos que temos que nos despachar e não nos distrair.
Pelo caminho para fora de casa tenho o coração a palpitar, a respiração acelerada e as mãos doridas. A este ponto só quero a minha cama para descansar desta ansiedade.
Voltamos para o mesmo sítio, o muro onde subimos.
Só quando saltamos para o mundo lá fora é que sinto o vómito na boca.
O único sistema de segurança que aquele comando parece não conseguir desligar, uma pessoa.
O homem olha-nos como se fôssemos monstros gigantes com dentes afiados, não sabe bem o que fazer ao ver dois ladrões. Tento perceber, através do escuro, se ele é algum tipo de vigilante e se se encontra armado, ou é apenas alguém a passear o cão ou numa corrida. Parece usar roupas normais e não vejo arma alguma nas mãos ou bolsos.
Atrás de mim, o Helian, acabado de saltar para a erva, puxa-me a mochila para cima, com um aviso que conheço tão bem.
"Corre"
Aqui estou eu com um livro novo, agora completamente diferente do que costumo escrever kkk
Preferi seguir um pouco o caminho da fantasia.
Primeiro vamos conhecer a vida dela e do Helian na nossa Terra. Depois descobrimos outros mundos e... outras pessoas interessantes kkk
Espero que gostem dos personagens kkk fiz por os desenvolver bem e tive muita pesquisa sobre planetas 😂 haha
Espero que gostem deste meu livrinho novo!
Vão dizendo o que acham, as vossas opiniões são muito importantes para mim e fazem-me continuar.
Até ao próximo!
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