O Anel

O grito do Helian ao meu lado faz-me tremer, perde completamente a cabeça quando está assustado, quando se sente preso.

Todos os presentes estremecem, menos o rapaz, o que traz as más noticias.

— Desculpa, eu não sei o teu nome. — Começo, sabendo que a partir daqui, se não arranjar uma solução, o Helian não aguentará muito tempo sem partir alguma coisa. Dirijo-me ao rapaz, pondo-me no meio dos dois, para comprar algum tempo.

— Kiell. — Revela, ainda de olhos postos no moreno possuído atrás de mim.

— Kiell. — Repito sorrindo, sentindo que finalmente posso dar um nome ao rapaz do meu passado, o que saltou comigo para o meu mundo, para aquele tubo que me aterrorizou durante tanto tempo em pequena. O tubo ao qual regressei em adolescente e em adulta na esperança de ver o círculo voltar, de o ver novamente. — Podes explicar isso melhor? Antes que ele se passe?

Ele abana com a mão, convidando-nos a sentar, não tem qualquer receio do rapaz que quase arreganha os dentes. Qualquer pessoa estaria com medo, o Helian consegue ser assustador quando quer, falando ou com o seu silêncio, tem várias maneiras, mas este rapaz pouco se interessa com pessoas irritadas, quer que todos se sentem primeiro para poder começar a falar. Como se não tivesse tempo para birras.

Agarro no Helian pelo braço, não com medo que ele ataque ou algo do género, ele só age quando acha que deve fazê-lo. Mesmo que as pessoas olhem e pensem que ele é violento, eu conheço-o e sei porque está a mostrá-lo desta maneira, está preso, sente-se sem escapatória, claustrofóbico.

Obrigo-o a sentar, prometendo uma explicação.

Sento-me ao lado do rapaz laranja que neste momento está mais preocupado com a explosão do Helian do que comigo.

— Temo que isto tudo seja um erro. — Kiell começa, sorrindo tristemente. — Os anéis são criados cuidadosamente, apenas utilizados para casos extremos. Mas ultimamente têm aparecido mais, e em sítios aleatórios.

— Estávamos a discutir isto quando vocês apareceram lá em cima. — O miúdo ao meu lado informa, com um sorriso nos lábios. Quando pestaneja de novo tenho que me controlar para o corpo não reagir com estranheza. — Mateen. — Diz quando repara que estou a observá-lo há demasiado tempo. — O meu nome. — Pensa que esta demora foi uma espera pela revelação do seu nome quando estava apenas fascinada pelo seu rosto. É a vez dele de me fitar com curiosidade, esperando pelo meu nome.

— Tam. — Toco no ombro do Helian e sinto-o saltar. — E este é o Helian. — Mateen abana a cabeça como um cumprimento, o seu sorriso parece genuíno, e algo no seu olhar mostra-me uma ingenuidade sincera, toda a simpatia parece real. Decido gostar dele de imediato.

— Aquela é a Bell, conhecemo-nos a meio do caminho para aqui. — A graciosa Bell abana com a mãozinha sem dedos, é como uma conchinha azul cheia de brilhantes doutras cores.

— Vocês estão bem? — O Helian pergunta, enojado com as nossas introduções amigáveis. — Eu quase morri lá em cima, não conheço este sítio, quero sair daqui. — Ele espera uma reação, espera que lhe dê razão e depois deixa-se cair na cadeira, levando as mãos ao cabelo já descontrolado. Está a perder a paciência.

— Desculpa. — O Kiell pronuncia-se desolado. — Mas a culpa disto é do nosso Rei, está no leito da morte e não consegue controlar-se. — Levando com olhares confusos, continua. — O Rei é o único que consegue criar estes portais, foi o Anel que lhe deu este poder, para que possa governar as nossas terras.

— O Anel?

— Vocês ainda não foram lá fora, pois não? — A Bell brinca, com a pequena mão por cima da boca, escondendo o seu sorriso. Sabe bem que não, mas traz-nos alguma curiosidade, não me lembro de ver um Anel lá fora, e ele fala dele como uma religião, como um Deus.

— Podemos mostrar-lhes? — É a vez do Mateen perguntar, cheio de entusiasmo. Não espera por uma permissão, corre até as portas enormes atrás do Kiell e abre-as, gesticulando para que o sigamos.

Não sinto uma pitada de medo, levanto-me num salto e corro lá para fora, para o sol quente.

Vejo um jardim enorme, cheio de flores azuis e pretas, uma combinação de cores que combina com tudo o que vi até agora. Tento não as pisar, mas agacho-me para poder vê-las mais de perto, pétalas dobradas sobre si, tentando fugir das suas irmãs. Nunca vi nada parecido, mesmo assim, acho-as as flores mais bonitas que já vi. As casas que vi do terraço encontram-se mais em frente, como casas tradicionais antigas, mas feitas de pedra preta, blocos e blocos de pedra preta, parece tudo tão escuro, tão sombrio.

E só depois é que vejo o Anel.

Não é uma coisa que possa tocar, não é uma estátua, uma pintura, uma espécie de animal. Não é um Deus, não é algo transparente ou que possa sentir.

Está lá em cima, no lugar de uma lua ou uma estrela.

Um grande Anel à volta do planeta, como se estivesse em saturno. É a coisa mais linda que já vi na minha vida, não tenho a minha lua, mas tenho um anel gigante, lá ao fundo, tão, tão brilhante. É branco, com pedaços reluzentes, pequenos pontos parecem acender e desaparecer, como se fossem feitos de espelhos partidos.

Ouço os sons de exclamação e adoração atrás de mim, eles vieram atrás, estão a ver o mesmo que eu, a beleza maravilhosa que são estes Anéis. Como será vê-los quando está realmente tudo escuro? Com certeza refletirá mais luz que a lua. Aposto que conseguiria ver tudo normalmente mesmo que estivesse de noite.

O Kiell quer dizer que este Anel deu o poder ao seu Rei de criar portais entre universos, talvez entre planetas? É nisso que eles acreditam?

— O Anel dá poderes? — Vejo um pequeno sorriso formar-se nos seus lábios, o Kiell parece tão orgulhoso do seu planeta, do que tem e do que pode mostrar-nos.

— Então isso quer dizer que temos que ir ao teu Rei? — Helian finalmente chega a essa conclusão, vejo-o logo atrás de mim, como se me quisesse proteger, continua de pescoço para cima, para observar o Anel, noto que também está maravilhado, nunca tinha visto nada assim parecido. Realmente parece ser algo retirado de um sonho.

— Se querem voltar a casa, sim. — Kiell responde ao nosso lado, pelo menos dá-nos uma alternativa. — Infelizmente está nos Grandes Ventos, a Sul daqui. Se formos, temos que nos apressar antes que morra.

— Se ele morrer, não podemos voltar a casa? — Bell pergunta alarmada, está de joelhos com uma flor na mão.

— Terão que lidar com o filho escolhido, isso pode não ser tarefa fácil. O poder passará para um único herdeiro, nunca se sabe quem será. — Explica de cabeça baixa, vejo dor no seu rosto, talvez a história do passado desta gente não seja repleta de paz. — Será uma viagem atribulada, mas se querem voltar, é a nossa única escolha.

Tudo no rosto de Kiell me diz que nos vai custar muito.

— Quero ir para casa. — Bell admite com uma voz sombria, a forma como se mantém no chão entre as flores é quase como se lhe custasse levantar.

— Vão ter que ir equipados. — O Kiell informa depois de nos fitar durante um tempo, acho que está a planear tudo com cuidado na cabeça, é engraçado como ele é tão fácil de ler. — O clima não é assim tão estável como aqui.

— Não podemos esperar que outro portal se abra? —A Bell levanta-se e quando o faz, o seu grande vestido tenta fugir com o vento, é estranho chamá-lo de vestido quando faz parte do seu corpo, coberto de poros, provavelmente é por aí que respira, suponho. O Mateen, ao seu lado, agarra-lhe o pulso, os seus pés parecem levitar por apenas uns segundos. 

— Não sei quando se abrirá Bell, a única vez que abriu para o planeta dela, tinha metade do tamanho. — Dirige-se a mim, ele lembra-se bem do nosso encontro em pequenos, lembra-se tão bem quanto eu. — A nossa melhor escolha é ir, são só uns dias, e se tivermos cuidado não haverá problema com o clima, nem com as pessoas. Alguma objeção? — Ele espera por alguma reação, algum não, mas duvido que haja. A única escolha para além de ir onde ele quer é ficar, e eu preciso de ir para casa, preciso de ir buscar os sacos, trocá-los por dinheiro e pagar as minhas contas, mas mais importante, tenho que levar o Helian para casa.

Ninguém responde ou se queixa. Sabem o que têm que fazer.

O Kiell conduz-nos para dentro de novo, parece já ter um plano em mente. Aproveito enquanto os outros esperam diante da grande mesa para seguir o Kiell para o piso de cima. Já sabe o que tem que pegar para lá chegar.

— Estes Grandes Ventos, ficam muito longe? Já lá foste? — Ele para o que está a fazer, agachado sobre a cómoda, e olha para mim, não esperando que o seguisse. Por momentos parece olhar para mim como se fosse burra, acho que o que disse foi uma estupidez.

— Desculpa, esqueço-me que não és daqui. — Ele sorri abertamente, como foi assim tão fácil fazê-lo sorrir quando esteve sério até agora? O seu sorriso é lindo, como eu me lembrava tem os caninos um pouco maiores do que os meus e uns lábios finos. Gostava de tomar mais tempo para o poder analisar melhor, ver os seus olhos mais de perto, tocar na sua pele. — Uma pessoa daqui não faria essa pergunta.

— Porquê? — Ele faz um movimento com a mão giratório, apontando para si mesmo.

— Porque sou o único que parece diferente. — Faz uma pausa para mudar aquele sorriso, para o fechar. Tem muitos momentos em que recorda tempos passados, tempos que o deixam mal. — Eu nasci no Sul. Fui trazido para aqui em pequeno. — É algo que lhe traz muita dor, consigo perceber isso.

— Porque vieste para aqui?

— Problemas familiares. — Ele tira da cómoda uns cintos prateados e atira-os para os meus pés. — Veste. — Ainda confusa, pego no cinto e meto-o à volta da cintura, quando não descubro como se aperta, vendo apenas um pedaço de tecido grosso e levanto o olhar é que reparo que ele se aproxima demasiado rápido.

Com os olhos postos no cinto, leva as mãos à minha cintura, pega no cinto e com um agitar de pulso ouço um clique.

Posso notar na sua altura, em como o seu cabelo tem um tom tão bonito de cinzento, é longo o suficiente para lhe cair pela testa. A sua pele, a que vejo tão perto, o pescoço e o seu rosto, não tem escamas como a do Mateen, é como a minha, embora pareça mais rija, mais grossa, como se fosse áspera ao toque.

Mesmo sabendo que não tem nada a ver comigo acho-o extremamente atraente à sua maneira, e incomoda-me que ele não se sinta desconfortável com esta proximidade, não me vê como alguém que tenha que se sentir mais tímido? Não sei se deva ficar feliz com esta intimidade ou não. Queria vê-lo nervoso como eu me sinto agora que ele está tão perto, é estranho.

Os seus olhos pretos batem nos meus, apanhando-me na minha observação atenta. Não vejo diferença entre a íris e a pupila, é tudo completamente negro, acho que isso só torna o seu olhar ainda mais intenso, como se estivesse nua à sua frente, sinto que me devia encolher.

— Não te assustes. — Avisa, e um segundo depois faz um movimento brusco com o cinto que quase me faz perder o equilíbrio. O cinto multiplica-se, começa a cobrir-me o peito e as coxas, até estar completamente coberta até aos pés. Quando chega ao pescoço cria-me uma máscara na cara. Cobre-me por completa. — Em caso de emergência roda o pulso. — Ele pega-me no braço e mostra a única parte do pulso que roda, embora todo o fato seja cinzento, quando ele o gira muda de cor, de amarelo, para laranja, para vermelho e aí para. — Todo o tipo de emergência. — Explica quando estou prestes a perguntar que tipo de situação seria considerada emergência. Isso deixa-me ainda mais nervosa, eu conheço os perigos do meu planeta, tubarões, leões, plantas, aranhas e cobras venenosas. Aqui não sei o que existe, não faço ideia do que seria uma emergência, nem sei o que devia esperar.

— Gostei de te ver outra vez. — Mal ele se vira para sair do quarto com os cintos para os outros deixo que os meus sentimentos me tomem. Passei muitos anos com ele na cabeça, a perguntar-me se ele realmente era real ou fazia parte da minha imaginação, mas eu senti o portal, eu senti a dor das queimaduras e senti as suas mãos a curar-me. Eu trouxe-o para o meu mundo, e ele trouxe-me de novo para o seu.

—É recíproco. — E até as suas palavras soam tristes quando fala sobre me ver novamente, embora seja mau não poder voltar como fiz há anos, devia ser bom ver-me, como ver um amigo de infância. Mas mesmo dizendo uma coisa bonita, não parece feliz em dizê-lo, oferecendo-me apenas um sorriso pequeno que não lhe chega aos olhos.

Os outros ficam de olhos esbugalhados quando me veem usar o uniforme que supostamente me vai proteger, examinando-me dos pés à cabeça, completamente coberta. O Kiell distribui aqueles cintos pelos restantes e explica como abri-los, que tipo de tecnologia tem não sei, mas parece ser algo bastante comum no seu planeta, para ter tantos na cómoda do quarto.

— Quando partimos? — Mateen pergunta com demasiado entusiasmo. Não sabe o que vai enfrentar, devia estar assustado, como eu estou agora.

— Está quase a anoitecer, devemos ir agora, a pé.

— Qual é o plano? — O grande controlador Helian senta-se à mesa, tocando no tecido que o envolve, de olhos postos no Kiell.

— Por agora, atravessar a floresta onde encontrei o Mateen e chegar ao rio.— O olhar de julgamento é intenso, o Helian não quer acreditar nele, não quer fazer o que ele diz, mas é a nossa única escolha. Por muito que lhe custe confiar em alguém, vamos ter que depositar alguma no Kiell.

Acho que o Kiell faz de tudo para se mostrar confiável, sabendo bem que o Helian não está nem um pouco convencido, explica-nos que temos que nos manter de cabeça baixa, que pessoas daqui não seriam amigáveis para pessoas como nós, que o tempo pode não nos favorecer, mas a roupa que usamos fará maior parte do trabalho. Por fim, entrega-nos uma pequena mochila com provisões e avisa que teremos que partir.

Quando já está de noite saímos para a nossa jornada e, como esperava, os Anéis iluminam-nos o caminho, são tão brilhantes que consigo ver exatamente onde piso. Não tem nada a ver com a nossa noite, com o nosso escuro.

Passamos pelos grandes jardins com as flores maravilhosas e fazemos o trajeto até às habitações que, agora que olho para trás, é que vejo que não têm nada a ver com a que estive até agora. Nenhuma delas tem os dois andares que esta casa tem, o material parece muito melhor e mais resistente, coberta daquelas flores e bichos que vi cravados na mesa. Completamente diferente das outras simples e pequenas casas a uns metros de nós. Será que ele é alguém importante? Talvez seja rico.

— Fila de dois atrás de mim. — O Kiell manda enquanto se mete à nossa frente, ainda veste as mesmas roupas, não usa um fato como nós, obviamente porque não precisa. Quando o Mateen e a Bell passam por nós para que fiquemos na última fila é que noto que a Bell tem duas braçadeiras agarradas aos tornozelos.

— Para não flutuar. — O Helian sussurra-me ao ouvido quando nota na minha expressão confusa. Por isso é que ela, quando estava cá fora, ficava tão rente ao chão? Tem medo de voar para longe? Pergunto-me como será o seu planeta, se lá ela não precisa de andar ou correr, se pode simplesmente voar para onde quer, talvez o seu lindo vestido a impulsione para ir onde quer. A imagem que me vem à cabeça é curiosa, e faz-me rir.

O Kiell toma outra posição quando entramos realmente nas ruas, olha para trás, talvez para verificar que estamos todos no nosso devido lugar. De repente põe as mãos atrás das costas e endireita a coluna. Vejo-o abanar com a cabeça, como se se estivesse a preparar mentalmente para o que aí vem.

E posso dar a razão toda ao que ele disse no seu quarto.

Ele é o único que é diferente. 

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