Grandes Ventos
— Chegamos. — Kiell anuncia. Acho que só o faz porque não quer falar mais, fugindo do assunto como sempre faz. Já é bom saber que ele é capaz de amar alguém, depois de todas as suspeitas contra as suas intenções posso dizer que ele tem coração, duvido que nos ponha em perigo. — Coloquem os fatos. — Avisa, clico no cinto e todo ele me envolve, até ao capacete me tapar a cara. Precisamos de passar despercebidos, como fizemos na aldeia.
O Anel está quase em cima de nós, parece gigante, lindo, brilhante, não me admira que estas pessoas lhe deem tanta importância.
Finalmente chegamos à fortaleza de pedra escura, ao fundo, onde uns portões grandes se erguem estão dois homens, daqui parecem apenas dois pontos. Mas noto nas suas asas, iguais às do Kiel. Estão ambos presos ao chão pela cintura, vejo o cordão grosso que vai de encontro à terra.
Será para não serem levados pelo vento? Se já vi casas em ruínas e pedras pesadas a voar pelo ar eles seriam um peso que rapidamente seria levado. E se alguma daquelas pedras os atingirem, têm alguma proteção contra isso?
Pergunto-me se a distância era assim tão grande, passaram apenas algumas horas, acho, não sei quanto tempo dormi. Sei que nos movemos rápido, ou pelo menos este veículo fê-lo, mas o caminho não pareceu tão longo quanto isso.
A estrutura inteira parece cada vez maior, mais assustadora, mais claustrofóbica, os edifícios parecem cada vez mais, e mais colados entre eles.
É mesmo aqui que o Rei vive? E como chegaremos lá?
Esta cápsula ambulante para diante dos guardas, apenas dois, e confirmo que realmente estão presos ao chão. Andam até nós enquanto o Kiell abre a janela amarela para podermos sair.
Em vez de nos deixar subir para terra saltam para dentro, connosco, com cabos pretos atrás deles.
Começam pelo Kiell, enrolam-lhe o cabo à volta da cintura e das pernas e de repente o cabo grosso cheio de rugas fica fino e parece mais forte. Um salto sem esforço dele e já está fora do veículo, como se o cabo tivesse feito a força toda, está a mantê-lo suspenso, controla o peso do seu corpo.
Os dois seguranças fazem o mesmo connosco, os tubos tornam-se firmes à minha volta e, quando agarro a mão do Kiell para sair não preciso de fazer força nas pernas, aquilo apenas me puxa para cima.
Quando ando, quase como se a gravidade não tivesse poder sobre mim, salto metros atrás de metros chegando ao fim da proteção que a janela amarela nos dava do vento. E aí é que sinto, o vento mais forte que alguma vez senti, o tubo faz com que não me mexa, imobiliza-me o corpo para que não vá com o vento assim como os pedregulhos. Vou atrás do Kiell até às portas construídas de um metal estranho e rugoso.
Quando olho para trás, onde o grupo se junta a nós, vejo vários detritos a voar na nossa direção, mas quando batem nas paredes, estas não parecem reagir, não porque acho que sejam fortes, mas porque há algo que as protege.
— Têm uma barreira de proteção, cortesia do nosso Rei. — Um deles explica quando vê o seu trabalho como feito, já nos levou em segurança até aos portões, e viu-me a olhar assustada para os grandes pedaços de pedra a voar pelo ar.
Sem esta proteção bem que podiam estar todos mortos, é assim que eles vivem? Graças ao Rei? O que o faz tão especial? Quem lhe deu estes poderes todos de criar portais para outros mundos e civilizações no meio de um ambiente hostil?
Porque alguém quereria viver aqui? Porque um Rei gostaria de viver no meio de pedras que voam e edifícios escuros que quase não dão espaço para as pessoas se deslocarem?
As portas de metal abrem para nos deixar passar e a quantidade de pessoas a andar pelas ruas assusta-me, são demasiadas para o espaço que há.
São todos como o Kiell, o mesmo tom de pele, não estão com as asas armadas, mantêm-nas para dentro, como ele, não são como os daquela aldeia. Todos de cabeça baixa, curvados, concentrados no que estão a fazer.
Carroças passam de um lado para o outro, pessoas com sacos na cabeça e nas costas, vejo um animal parecido com uma vaca passar por mim. Também às manchas, mas um misto de cinzentos com pretos estranhos, o focinho é mais para dentro, com um nariz achatado e uma cauda felpuda.
Nenhum deles usa a vestimenta que o Kiell usa, usam roupas escuras, castanhas, amareladas ou pretas, o tecido está gasto, dá para ver que as usaram muitas vezes, noto que maior parte deles, mesmo os homens, usam o cabelo grande, apanhado na parte de trás da cabeça. Nada parecido com o cabelo relativamente curto do Kiell. O tecido que ele usa é muito mais sofisticado, suave, parece novo.
São claramente o povo da classe mais baixa, parecem muito desnutridos e infelizes.
Sinto-me numa idade medieval estranha.
Fazemos caminho pelo meio do movimento, todo o grupo de fato vestido menos o Kiell, que continua o seu caminho com as suas vestimentas na nossa frente, de braços atrás das costas, assim como estava quando saímos da casa dele. Como se fossemos os seus lacaios, os seus seguranças.
Vejo muita da população olhar para nós com curiosidade, mas não acho que nenhum deles o reconheça. Acham apenas estranho que uma pessoa esteja a vestir roupas diferentes, sabem que ele tem algum poder pelo que veste. Não o olham com nojo como os outros, querem saber mais.
As ruas são realmente estreitas e maior parte delas são as subir, as casas não têm largura suficiente, são construídas em altura, como se cada secção estivesse separada por andares.
O dia de todos está muito atarefado, no entanto, abrem caminho ao nos ver, sabendo que ele é de um escalão superior. Andam colados pelas paredes, cochichando entre eles, perguntando-se quem será este jovem rapaz.
Fazemos o trajeto pelas ruas íngremes até chegar ao que me parece ser a parte mais rica do grande labirinto, aqui as casas já não se amontoam, estão distribuídas pelas ruas, mas todas protegidas por grandes muros.
Não sinto nem uma aragem fria desde que passei pelos portões, eles são protegidos pelo ambiente lá de fora, aqui o ar é húmido, quente, estranho.
Sinto o meu corpo encharcado em suor quando finalmente os passos do nosso chefe cessam, o Kiell para em frente a uma propriedade, da qual só conseguiremos ver quando as portas gigantes se abrirem.
— Passaremos a noite aqui, ao amanhecer fazemos caminho para o Rei. — Anuncia o Kiell, com a chave longa e castanha nas mãos. As portas abrem com um rugido, provavelmente já não são usadas há muito tempo. O caminho para a casa é feito por pedras quadradas, um caminho estreito rodeado por terra. A casa em si é baixa, sem andares como vi as casas lá em baixo, mas é larga o suficiente para perceber que é espaçosa.
Lá estão as gravuras de criaturas e flores. Aproximo-me das paredes, e analiso-as agora com mais cuidado.
Reconheço as flores que vi no seu jardim, aquelas azuis e pretas, as pétalas que se enrolam, sobem do chão até a minha cintura, e por cima, até ao telhado, a criatura que me atacou, uma minhoca com ventos à sua volta, outra com metade fora e a outra metade dentro da terra. Imagens atrás de imagens cravadas na casa, como se contassem uma história. Porque tem ele estes símbolos? Lembro-me de vê-los na grande mesa, na sua casa no Norte, e agora nesta. O que quererão dizer?
Nenhuma das outras casas que vi têm estas marcas.
Toda a casa é diferente do que alguma vez vi, as pedras azuladas e pretas, o telhado com telhas verde-escuras, cada canto afunila e acaba com uma ponta longa. É construída num "U", e no centro tem uma mesa baixa.
Ao longo do "U" existem várias portas, cada uma vai levar a um quarto, não existe entrada, não existe uma sala de jantar ou corredores, todas as secções vão dar cá fora, onde está a mesa.
O Kiell abre as portas e diz para que escolhamos onde dormir, vejo que uma das portas dá para a cozinha e que cada quarto tem a sua casa de banho. Quando entro no meu quarto depois de deixar que todos os escolham vejo que é muito parecido com o quarto do Kiell, a mobília verde, a cama não toca no chão, está suspensa e balança quando lhe dou um encontrão.
Já escurece quando nos preparamos para o jantar, uns homens apareceram com caixas de comida, dão-nos algo com a textura e tamanho de uma batata, mas laranja com raízes a crescer-lhe, algumas garrafas de um líquido amarelo que o Kiell usa antes de colocar a comida no grande jarro castanho que está ao fogo, e outras coisas que posso dizer que vieram da terra porque ainda estão literalmente cobertas por ela. Também temos água para dar e vender.
É estranho ver todos atarefados, o Mateen com uma tentativa falhada de descascar a comida, a pequena Bell ao seu lado a explicar as técnicas, a descascar como se fosse a coisa mais fácil do mundo. O Helian trata de pôr os pratos côncavos e copos minúsculos na mesa do centro, e eu e o Kiell cozinhamos.
Confesso que não faço muito, mas porque ele não me deixa ajudar. Ele é que coloca tudo naquele jarro enorme, junto com o líquido amarelo, deixa que os alimentos fiquem dourados até juntar muita água e depois vai experimentando com especiarias com cheiros fortes que estão espalhados pelas estantes na cozinha.
— Tens jeito para a coisa. — Comento, sentada num banco, enquanto o observo provar o seu cozinhado. Faz uma careta e coloca outra coisa lá dentro, mexendo de novo. — Mas seria melhor se me deixasses ajudar.
— Já estás a ajudar. — Ele começa a cortar pedaços de carne vermelho escura. Pergunto-me se será daquele animal que vi quando aqui entrei, a que comparei a uma vaca, parecia gorda o suficiente para eles aproveitarem a carne para comer e não só para carregar.
— Ajuda moral? — Levanto as mãos e abano-as, como se tivesse pompons e fosse da sua claque. — Força! — Vejo-o sorrir com as minhas figuras, depois suspira, talvez esteja cansado. Abana a sua túnica azul-escura, com calor, depois de tanto tempo em frente ao fogo. — Pelo menos deixa-me mexer, ou cortar a carne. Senta-te. — Por alguma razão ele obedece, deve estar mesmo cansado, também eu estou depois do que passamos hoje. Senta-se, cruza os braços e observa-me enquanto corto os pedaços de carne em cubos e os atiro para o que posso chamar de panela, por agora.
— Acho que és a que parece menos assustada, deles todos. — Ele abana com a cabeça lá para fora, onde ouço os três a conversar. A Bell repreende o Helian por estar a desperdiçar comida, também está a tentar descascar. Sei que o Helian cozinha muito bem, mas para a Bell estar a ensiná-lo é porque esta tem bastante experiência.
Paro o que estou a fazer para olhar para o Kiell e tento perceber se está a falar a sério.
Acho que sou a pessoa mais assustada do grupo inteiro.
— É a parte em que piscas o olho. — Digo, incrédula. A sua sobrancelha levanta com a confusão. — Quer dizer que é uma brincadeira, que estás a mentir. — Alinhando com as minhas palavras ele pisca os dois olhos com força e controla o sorriso que lhe quer crescer nos lábios. Dou um passo em frente, mais perto dele, e aponto para o meu olho esquerdo, piscando-o. — Tens que piscar só um. Dizes a mentira e piscas.
— Mas estou a falar a sério. — Ele imita-me na perfeição, piscando apenas um olho.
— Isso quer dizer que não estás. — O Kiell acompanha-me na risada demasiado histérica. É estranho ele não saber os nossos costumes, como os dois beijos na cara para cumprimentar, o aperto de mão, o cruzar os dedos para dizer mentiras. Coisas tão simples, tão naturais que todos sabemos, para eles são estranhos. Com certeza ele tem hábitos que desconheço.
— A Bell vive agarrada aos pés com medo de flutuar para longe, o Mateen está paranoico com medo que alguém o ataque e o Helian não confia em nada que o rodeia, comigo incluído. — Agora mais sério, cruza uma perna em cima da outra e suspira, frustrado.
— E eu não te pareço assustada? — Abana com a cabeça, negando. - Mas estou.
Não sei como não é óbvio ver isso, entrei em pânico quando vi aqueles tornados de areia, fiquei com medo quando atacaram o Mateen, assustei-me com as marcas no meu corpo, com as pedras que batiam no veículo barata e na muralha, até com as pessoas.
Se há coisa com a qual eu vivi desde que cheguei aqui, é com medo.
— Amanhã estará tudo no passado. — Conclui, levantando-se para provar de novo. — Podes voltar para a tua Terra com lua e água.
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