Fuga

Tudo parece acontecer em câmera lenta, a minha mão que levanta para poder sentir a tatuagem, e a mão dele que a puxa para si. Não tenho como ver o meu reflexo, e não sei se deva acreditar nele. Se o Rei a tinha, eu com certeza não a terei, não tenho nada a ver com aquele homem, ele é que tem.

Entrelaça os seus dedos nos meus e começa a correr, levando-me de arrasto. Passamos pelo Rai, que é também puxado pelos robes das costas para o nosso encontro, é quase chicoteado para o nosso trajeto, mas percebe o que o Kiell quer fazer. Desiste imediatamente da batalha que travava com o irmão e corre ao nosso lado.

Noto na surpresa dos restantes irmãos, o que lutava com o Rai quer chegar até nós, o Cadio tem os olhos postos no corpo ainda quente do pai, parece realmente afetado, como se o plano nunca fosse matá-lo. Era ele quem parecia mais dedicado a levá-lo à morte, tanto o pai como o irmão, porque parece tão traumatizado por tudo isso?

O que o Kiell deitou ao chão, o Ery, já está de pé, mas está longe demais, ainda tenta descobrir como as pernas funcionam. Ficou mais ferido do que pensava.

Chegamos à porta que nos levará para a saída, o Rai faz para nos passar à frente para poder abri-la primeiro, como se soubesse que algum monstro estaria do outro lado. Se houve uma pessoa do lado do Cadio que nos fechou cá dentro, com certeza terá inimigos do lado de fora.

Quando o Rai abre, o Kiell está preparado. A mão que não me agarra estica, já guardou a espada à cintura, está pronto. Os homens amontoam-se na entrada, prontos para a defender, tentando seguir as ordens do Cadio. Todos eles falham numa questão de segundos, e como o Ery, afundam.

Espero ouvir o baque atrás de mim, como ouvi com o seu irmão, mas nada acontece.

O que quer isso dizer? Que ele foi apenas projetado para um sítio diferente, e estes foram para mais longe? Estarão mortos? A meia dúzia de homens desaparecem debaixo do círculo azul, que se fecha mal o último cai.

A corrida continua, espero os ataques, mas não quero olhar para trás, quero continuar, sair daqui.

Mal saio, o portal aparece novamente, em frente à porta, para que nenhum dos que estão dentro consigam escapar. Se saltassem seria um risco, o anel é demasiado grande.

O que está cá fora tira-me o fôlego, se o que aconteceu lá dentro me marcou, o que vejo agora magoa-me. A fileira das mulheres que provavelmente serviam o Rei estão mortas, os seus corpos espalhados pelo chão, tenho que calcar mãos e pernas para poder passar.

Foi isso que a ordem do Cadio fez? Os soldados ficariam do lado de fora e impediriam quem quisesse entrar ou quem quisesse denunciá-los? Estas pessoas foram mortas a seu comando?

Vidas perdidas, por caprichos, por desejos de poder.

O Rei deles morreu, e os seus filhos é que o orquestraram.

O Rai corre em frente, parando abruptamente quando nos vê a fazer a curva em direção às celas onde os outros estão. Não preciso de pedir para os ir buscar, ele sabe o que quero, e não me força a ir para a saída, para fugir com o seu irmão. Ele corrige o seu andamento e continua a correr atrás de nós, de espada colada ao corpo, só para o caso. Vai olhando para trás, parece assustado, com receio que alguém nos ataque.

Enquanto isso o Kiell continua agarrado a mim, como se tivesse medo que eu fuja. Parece determinado, não pergunta, apenas corre e faz-me correr com ele. Vamos mesmo salvá-los? Depois do que ele nos fez? Como pensou sequer nos outros?

Ganhou-nos algum tempo quando criou aquele portal, pergunto-me quanto durará. Espero que seja o suficiente para os tirar de lá.

— Para onde vamos? — Pergunto mal chegamos às celas, eles ouvem-me, reconhecem a minha voz e começam a bater nas portas.

— Vou tirá-los daqui. — O Rai dispensa os dois soldados sentados em frente a uma mesa minúscula, mais aborrecidos que surpresos por nos ver. Antes de saírem pede-lhes as chaves e começa a abrir as celas.

— Não é essa a minha pergunta. Vais mandar-nos para o nosso planeta ou vais manter-nos aqui para nos capturarem mais tarde? Eu não vou a lado nenhum contigo. — As minhas palavras parecem causar um efeito nele, acho que espetei onde queria. Sabe que já não há confiança, não há nada que possa ser salvo agora. Estamos todos contra ele, o melhor que pode fazer é mandar-nos para casa.

— Aquele anel não vai durar muito mais tempo, eu tenho que vos tirar daqui.

— Força, manda-nos para casa. — Está mesmo a insistir que fiquemos aqui? Não fico mais nenhum segundo neste planeta.

Está exasperado, não sabe o que fazer, pensava que todos nós o íamos seguir até ao fim do mundo, pela porta de saída, para sua casa ou talvez para as suas terras e que esperaríamos mais uns dias.

Não volto a cair nesse erro, é agora e já.

Ouço os barulhos acima de nós, conseguiram sair do salão, estão a chegar. Estarão aqui em pouco tempo. Ele tem que agir.

A Bell já saiu, quando caminha até mim, com uma cara desesperada e cansada, o Mateen agarra-a num abraço apertado, devem ter sentido muito a falta um do outro. Sofremos todos o mesmo, sozinhos e com frio, de barriga meia cheia, meia vazia, sem esperanças e ideias do porquê de termos sido presos.

O meu corpo é levantado, a mão que agarrava a de Kiell é afastada. Os rodopios deixam-me tonta, só quando me pousam no chão é que percebo que é o Helian. Ele aperta-me contra si e com a outra mão quase que empurra o Kiell para o chão. Está furibundo, e com razão, não sabe o que aconteceu, neste momento só sabe pelo que passou. Reconheço aquele desejo de o matar, a única coisa que pensei durante todas aquelas horas.

Ele deve estar a segurar-se muito para não o esfolar neste momento.

— Precisamos de ir, age. — Aperto as roupas do Helian, com medo que ele lhe salte para cima, não posso perder a chance de ir para casa se o Kiell estiver inconsciente ou morto. Aviso-o, mas ele parece não compreender o que digo. Aproximo-me dele, ouvindo a comoção lá de cima intensificar. Estão aqui. — Kiell, temos que sair daqui, agora.

— Vai com eles. — O Rai intromete-se, o seu irmão olha-o, chocado. — Eles vão te matar, Kiell. Voltarás mais tarde, é o teu dever. Por enquanto, esconde-te. — Ele está em conflito, os olhos fechados com força, como se estivesse com muita dor. Não sei o que estará a pensar. — Não é vergonha nenhuma, irmão.

O Rai toca-lhe no ombro, para tranquilizá-lo. É esse o problema? Tem vergonha de fugir do seu planeta, tem vergonha de parecer um cão assustado? De não lutar?

— O importante é a tua vida. — As palavras que saem para o reconfortar deixam-me um sabor azedo na boca, não as queria dizer e, mesmo assim, saíram. Sinto nojo depois de as dizer, porque no fundo, quis que ele se sentisse mais calmo, quando nem sequer lhe devia passar cartão. Devia estar a atirá-lo ao chão, a obrigá-lo que me deixe ir para casa. Em vez disso estou a dar-lhe doces, a tentar deixá-lo bem, eu é que sou uma vergonha.

Kiell endireita as costas, parece ter ouvido e interiorizado as palavras, sabe que temos que sair daqui o mais rápido possível. Nós os quatro estamos quase colados uns aos outros, sabemos que só podemos confiar uns nos outros, eles é que ainda não sabem da história toda, senão estariam agarrados ao pescoço do Kiell.

A sua mão levanta, no mesmo gesto que já o vi fazer, e na parede atrás de nós aparece o círculo, tão reluzente como sempre, até o odor a flores me atrai.

— Como sabemos que não é outra maneira de nos enganar?

— Eles estão a tentar matá-lo, precisa de fugir tanto quanto nós. Se nos trouxer para este planeta de novo, morre. — Explico, e apenas a última parte é que convence o Helian, se isto for outra cilada farei de tudo para o fazer pagar. Mas no fundo sei que não o será, ele precisa de nos tirar daqui, tanto por nós como por ele.

O Helian passa em frente a toda a gente e, sem qualquer vestígio de medo, passa pelo portal, não deixando que ninguém vá primeiro, fá-lo para nos proteger. Gastamos os poucos segundos que temos para esperar algum sinal do Helian e, só quando vejo o seu braço passar de novo para este lado com o polegar para cima é que deixo que a Bell passe.

Eles chegam quando é a vez do Mateen, temos que nos apressar. Empurro-o em direção ao portal, que o suga rapidamente.

— Obrigada, Rai. Vemo-nos por aí. — Tenho que lhe dizer algo, embora ache que ele não é flor que se cheire, porque pertence a este planeta e faz parte da realeza, tenho que lhe agradecer o que fez por mim. Nunca foi violento, e no meio daquela confusão toda correu até mim e protegeu-me. Devo-lhe, nem que seja pouco. Ele sorri, um sorriso genuíno.

E o que faz depois surpreende-me, mãos nos ombros, a apontar para o céu, e depois, lentamente para mim.

Foi o que o Kiell fez quando o chegamos ao salão, e o que o Cadio fez quando me levaram lá pela segunda vez. Parecia como uma saudação, um gesto de respeito para com o Rei. Porque está a usá-lo comigo?

A distração e falta de pressa são as culpadas por deixar que a faca me atinja.

Embora não o conheça, sei quem me atingiu mesmo antes de levantar o olhar para ele. Ery, o rapaz que atirou para o pai e o matou, o que o Kiell mandou pelo portal e caiu desamparado. Parece que o seu corpo já está recuperado, e a sua pontaria também.

A lâmina perfura-me de lado, na barriga.

O corpo não sente nada por enquanto, mas a cabeça entra em pânico, fica ansiosa, nervosa, cheia de medo. Quero gritar quando vejo o que tenho espetado na pele, quero agarrar-me a alguém e berrar o mais alto que consigo.

Em vez disso mantenho-me em silêncio, os meus olhos colados no homem alto com um sorriso satisfeito.

O Kiell tem razão, sou um alvo, talvez tenha mesmo a marca no meu rosto. Estão a tentar matar-me.

O sangue escorre-me para as calças, molha-me as pernas, é tanto, parece ser tanto.

Não sei o que fazer, nenhum som me sai da boca, e o corpo parece não querer mexer. Sinto a visão a ficar turva, só consigo cheirar o odor a flores.

O Kiell agarra-me com força e atira-se comigo para o portal.

Tenho uma vontade incrível de vomitar, o ser sugada foi como um abanão na minha cabeça, sinto que andei às voltas durante horas. Não conseguiria andar em linha reta se me pedissem, nem acho que consigo andar sequer.

Caio no chão duro, com o Kiell ao meu lado. Escolho deixar-me ficar no chão, estou demasiado tonta e temo que a qualquer momento possa deitar o pouco que tenho no estômago para fora. O Kiell salta e fica de joelhos, tudo para me examinar, não tem problemas quando me tira o robe rosa e me deixa de roupas íntimas para verificar a ferida.

— Não sinto nada. — Digo, acho que mais para acalmar a sua respiração acelerada do que outra coisa. Sinto o ar fresco da noite bater-me no corpo e arrepio-me. Estamos no chão duro e frio, mas onde?

— Não tens nada. — Está ainda mais assustado agora. E quando me sento para verificar o que diz, também fico. Não tenho um único vestígio que a faca esteve ali.

— Curaste-me? — Abana a cabeça, negando. Como é possível? Os outros reúnem-se à minha volta, preocupados. — Atacaram-me. Estou bem.

— A ferida desapareceu. — O Kiell explica, abismado. Acho que nunca viu algo assim acontecer, nem eu. Será que o portal me curou? É algo que pode fazer?

Tenho as calças manchadas com sangue, está aqui a prova de que algo aconteceu, que não imaginamos. O buraco na barriga é que evaporou, e com ele foi a faca.

Olho à minha volta, está escuro, estou com frio, mas não muito. Tento analisar o mais que consigo do meu ambiente, não sei para onde é que ele nos trouxe. Estamos no seu planeta ainda?

— Onde estamos? — O Mateen pergunta enquanto me ajuda a levantar. Ajeito o robe e cubro-me. O Helian pega-me na mão, e por uns segundos sorri. Está feliz, aquele sorriso é raro. 

Depois vejo as paredes de tijolos que nos rodeiam, sinto o cheio a erva cortada, ouço passarinhos a cantar. Vejo um carro a passar na rua.

Suspiro de alívio quando reconheço as ruas.

Tenho o mesmo sorriso estampado na cara quando revelo:

— Estamos no meu planeta.

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