A Audiência do Rei
— Vamos só esperar. — Sussurra, e dá um sorriso aberto. O seu riso baixo é uma delícia de se ouvir, adoro esse som, curiosamente. Sinto-me estúpida, percebo que me sinto atraída por ele.
Adoro ouvi-lo rir, gosto muito de olhar para ele, ler as suas reações, perceber como ele funciona. É muito atraente aos meus olhos, quero aproximar-me dele, mas sinto-me uma criança cheia de vergonha, sem sequer conseguir controlar-me quando me toca.
A resposta para este mistério todo abre a porta em frente a nós, a Bell sai pela porta a passar as mãozinhas pelo seu vestido, todo o ato muito cuidadoso.
E logo atrás vem o Mateen, a esticar os braços para cima com preguiça.
Abro a boca surpresa, e o Kiell ri-se de mim.
Não tinha ideia de que gostavam um do outro, devem ter a mesma idade, embora não seja muito boa a adivinhar idades, mas são definitivamente mais novos que eu. Pensava que tinham uma relação de irmãos e não neste sentido.
— Precisavam de se despedir à grande, é isso? — Provoco o casal apanhado, a pequena Bell tapa a boca com as mãos, pensavam que tinham acordado primeiro que os outros, pensaram mal. Quem diria que estavam atraídos um pelo outro. O Mateen não parece minimamente envergonhado por ter sido apanhado, saltita até mim e senta-se ao meu lado, passa um dos braços grandes pelo meu ombro e sorri, está realmente feliz, mesmo sabendo que provavelmente não a verá mais.
— O coração manda. — Profere as palavras como se fosse algum poeta, toca no peito e fecha os olhos como se algo o ferisse. A Bell faz um sinal com o braço que lhe ordena que se cale, o que só o faz sorrir mais. — Vocês só levam um beijo. — Anuncia antes de colar os lábios à minha testa, e depois na testa do Kiell. Não tem qualquer problema em mostrar afeto em público, acho isso lindo dele, gosto que não tenha essa vergonha, tem orgulho em demonstrar o seu amor pelos outros, é um rapaz puro. Ele e a Bell fazem um par muito bonito, ou fariam, se isto tivesse pernas para andar.
Ele quase que voa quando o Helian sai do quarto, o último a acordar, e o último a levar com o beijo.
A diferença de altura é cómica, para mim o Helian é um rapaz alto, não tanto quanto o Kiell mas ainda alto, pelo menos mais alto que eu e que maior parte dos rapazes que já conheci. Mas o Mateen é incrivelmente alto, e tem que se baixar para beijar a testa do Helian, por alguma razão é das coisas mais engraçadas que já vi.
— Quero-vos preparados antes da refeição estar pronta. — Aqui está o Kiell mandão, já pronto para cozinhar enquanto nós nos vestimos.
Faço por obedecer, especialmente porque preciso urgentemente de um banho.
A água quente no corpo relaxa-me os músculos, depois deste tempo todo não sabia o quão tensa estava. É como se o corpo estivesse constantemente em alerta e só agora é que estivesse realmente a descansar. A água torna-se castanha quando cai ao chão, tenho o cabelo com areia, e o corpo cheio de suor. Quando saio sinto-me uma mulher nova, uma pessoa diferente, pronta para tudo. É como se, por uns segundos, não tivesse missão, estou apenas numa cabana onde marquei as minhas férias num país diferente. Uma humana normal, numas férias normais, num sítio normal.
Tenho roupas em cima da cama quando saio da casa-de-banho, as calças brancas novas e tão confortáveis, mas desta vez posso vestir uma túnica como a do Kiell, esta é de um rosa bebé adorável, e não é como se gostasse muito de rosa, mas não desgosto de me ver num conjunto destes.
Quando saio do quarto estou quinhentas vezes mais calma e confortável em cada movimento, tenho a parte das costas também cortadas, pena que não tenha asas para poderem sair e apavorar todos os humanos lá na Terra, iam todos chamar-me de anjo, ou talvez demónio.
Acho que passei muito tempo no banho porque já estão todos à mesa. Surpreendo-me ao ver o Helian com as mesmas vestes que eu, o seu robe é vermelho vivo, conseguiria vê-lo ao longe. Ficam-lhe incrivelmente bem, é como se tivesse nascido para usar essas roupas. Tem o cabelo molhado quase a cobrir-lhe os olhos, mesmo assim consigo ver o azul a fitar-me. O grupo está todo igual, todos a vestir o mesmo. Uma mistura de cores misturadas com o branco das calças.
Sento-me com eles e como o que restou de ontem, mais uma tigela do que vou chamar arroz azul, que é extremamente insosso, e só ganha sabor misturando com a comida de ontem. Encho a barriga num instante, já me dou por sortuda por ter conseguido comer o pouco que comi, o nervosismo normalmente não me deixa comer.
E neste momento sinto que tenho algo a tapar-me a garganta.
Aquele momento de calma passou rápido.
Antes de sair, despeço-me da cama suspensa, da mesa onde comemos, e passo a mão pelos desenhos cravados no lado de fora da casa uma última vez. Nunca mais os verei, mas prometo que mal chegar a casa vou desenhar os símbolos o melhor que me lembrar para guardar tudo para o futuro.
Novamente de fatos cinza vestidos preparamo-nos para uma caminhada que só sobe até à residência do Rei. Com a mesma ordem de sempre, um Kiell na frente, de braços cruzados e olhar superior, o novo casalzinho no meio e eu e o Helian na traseira, como soldados obedientes que somos.
O Kiell diz-nos que o caminho não é muito distante da sua casa, e eu acredito porque não precisamos de virar muitas esquinas para ver o grande edifício.
Nada parecido com os castelos que tenho na minha cidade, onde antes vivam reis e rainhas. Isto é completamente diferente, tem o telhado pontiagudo parecido com a casa do Kiell, mas é cinco vezes maior, de um vermelho tão brilhante quanto a túnica que o Helian usa debaixo do seu fato. Quando chega à ponta do telhado ramos multiplicam-se e seguem caminhos diferentes, criam espinhos, como se fossem algum tipo de planta, mas consigo ver que foram esculpidos assim.
Tem vários andares, todos de paredes verdes como uma floresta, com desenhos de flores e árvores espalhados por toda a casa. As portas na frente são vermelhas como o telhado, mas de um tom mais escuro, são enormes, pelo menos três vezes maiores que eu.
Para chegarmos à grande mansão que se estende muito para além do que vejo, temos que passar por um arco vermelho, neste arco os ramos são da mesma cor e tentam fugir para cima, como se estivessem a crescer cada vez mais.
Todo o lugar parece-me hostil, as cores berrantes, os ramos pontiagudos que parecem querer atacar-me, os guardas que se encontram tanto no arco como pelo muro que o protege dos dois lados, assim como nas escadas que levam à porta gigante.
O Kiell deixa-nos para trás para poder falar com um dos guardas que se encontram no arco, não usa um fato como o nosso, nem um uniforme como os que vimos no rio, os que aqueles homens usavam quando nos atacaram.
Estes usam um fato de corpo inteiro preto, colado ao corpo, nota-se que tem algumas partes protegidas porque sobressaem. O tecido brilha e parece ser desconfortável, como se estivessem todos a usar fatos de latex. Por cima de todos aqueles uniformes têm armaduras reluzentes de um metal azul, sobre o peito, ombros, pernas e pés. Parecem impenetráveis, o Kiell disse que o Norte não se dava muito bem com o Sul, mas não sabia que o Rei estava assim tão em perigo para eles se vestirem desta forma.
— A partir do momento em que entrarmos não vamos conseguir sair. — A voz do Helian soa ao meu lado, falha como se estivesse extremamente nervoso. Não consigo vê-lo por baixo do fato e da viseira, pergunto-me o que estará a pensar.
— Não é esse o objetivo? Queremos ir para a Terra.
— Não foi isso que quis dizer, se tivermos que fugir. — O pescoço vira de um lado para o outro talvez a analisar os guardas que nos rodeiam. Está com medo, posso senti-lo, medo que tudo corra mal e tenhamos que fugir, ele é uma pessoa de planos, vai sentir-se claustrofóbico lá dentro, sem saber a rota de escapatória. — Tem cuidado.
O Kiell faz-nos um sinal com a mão para que avancemos. Passamos pelo grande arco e caminhamos pela terra até às escadas. Não vejo muita gente aqui, para além dos soldados. O Rei devia ter empregados, certo? Estarão todos lá dentro? Não poderão sair?
Ele faz-nos parar em frente às portas que agora ainda parecem maiores, percorre-nos um a um e, quando chega a mim carrega-me no cinto.
O fato retrai, revelando as minhas roupas, e a minha identidade.
O Helian reage ao meu lado, e o Kiell levanta-lhe a mão, pedindo calma.
— Não temos que nos esconder a partir daqui. — Avisa, e espera que o resto do grupo se livre dos fatos que veste. Viemos todo este caminho escondidos, com medo que soubessem que somos de longe, porque agora estamos seguros? Será que sabem da nossa chegada? Estarão habituados a ver pessoas de outro planeta porque vivem com o Rei?
As instalações são ainda maiores do que pensava, parece um labirinto, aqui dentro as paredes parecem não ter qualquer tipo de proteção, não são da mesma pedra que encontramos lá fora. Comparo-as com um papel grosso, acho que conseguia rasgar a parede com um dedo. Vejo sombras a passar de um lado para o outro, apressadas, movendo-se para longe nós.
As pessoas que passam por nós fazem-no de cabeça baixa, nenhuma delas levanta o pescoço para olhar para mim.
Vários cheiros invadem-me as narinas, algo intenso que me irrita o nariz, não são alimentos a ser preparados, são perfumes. Cada divisão tem o seu cheiro.
Paramos em frente a umas portas pretas, um homem com o mesmo uniforme que os da entrada encontra-se no centro. Do lado esquerdo estão umas dez mulheres, e do direito outras dez. Todas de joelhos, cabeça baixa, em silêncio.
Cada vez fico mais confusa, serão empregadas à espera de ordens? Com esta gente toda só posso supor que o tal Rei se encontre do outro lado da porta preta de correr.
O Kiell gira nos calcanhares e vira-se para nós.
Olha para cada um de nós, a sua expressão a mais séria que já vi.
Depois vira-nos as costas, estica o pescoço para o lado, depois para o outro, roda os ombros para trás e suspira.
Acho que o ouço dizer alguma coisa, não consigo entender que palavra é.
E a porta desliza.
O salão é enorme, cinco vezes maior do que a minha casa inteira, toda ela escura, as paredes são pretas, como a porta. Existem muitos quadros nessas paredes, telas do meu tamanho de homens sentados numa cadeira da mesma cor que as paredes, com os espinhos ondulados à volta.
No fundo da sala, está a cadeira, larga e majestosa, quase perigosa.
E lá sentado, o Rei.
O Kiell anda em passos largos para o centro da sala, e nós seguimo-lo obedientes. Mete as mãos por dentro das mangas largas e mete-se de joelhos. Depois leva aos mãos aos ombros, estica-as para o céu e desce-as até estarem a apontar para o homem no seu trono.
Ficamos de pé, embora ache que devíamos imitar os seus movimentos. Como ninguém do meu grupo se mexe eu não vou ser a primeira a fazê-lo.
O homem sorri, com uma mão em cada lado do seu trono. Tem o cabelo grisalho, e umas vestes parecidas com o que estamos a usar agora. Mas noto uma diferença, no seu robe amarelo, existem desenhos dourados.
Os desenhos que vi na casa do Kiell.
O monstro e a flor.
É isso que eles querem dizer? Que são os símbolos do Rei?
Por baixo dos olhos que me parecem negros tem uma tatuagem, um triângulo ao contrário. E nada mais.
Não é velho como esperava, deve estar nos seus cinquenta anos. O Kiell disse que ele estava no leito da morte, pensava que era idoso, afinal deve estar só doente.
O Kiell levanta-se depois do que pareceu ser prestar os seus respeitos ao Rei.
— Que me vens pedir? — A sua voz propaga-se por toda a sala, ouço-o por todos os lados, arrepia-me o corpo inteiro.
— Sabe o que estou aqui a fazer. Não terá escolha senão libertá-la. — Olho para os outros, que parecem tão confusos quanto eu.
Olho à minha volta, tem mais empregados como os que estavam à porta do salão. Do lado direito, estão quatro rapazes, todos vestidos de amarelo, vestimentas iguais aos do Rei, com os mesmos emblemas. Serão os seus filhos?
— Porque haveria de o fazer?
— Precisa deles. Precisa deles urgentemente. — Nós? Está a falar de nós?
Nesta altura o Helian já me segura pelos braços firmemente, e começa a recuar o passo.
— Já estão aqui, posso só ficar com eles.
— Não foi esse o acordo. Fiz-me digno, eles estão aqui, se não os tomar eu mato-os. Não os poderá usar. — O Rei endireita a coluna, enraivecido. — Entregue-ma, e eles serão o meu presente.
— Kiell, o que foste fazer. — O murmuro saiu mais alto do que pretendia, nem queria falar sequer mas acho que a boca manda, está a processar tudo muito mais rápido do que a mente.
Por uns segundos, e uns segundos apenas, vira a cabeça para mim, os seus olhos negros caem em mim e eu sinto a tristeza, a pena, a revolta.
— Desculpa. — Não ouço um único som sair, disse-o apenas com os lábios, mas eu percebi o que queria transmitir. Como pode estar a desculpar-se enquanto faz isto? Não nos vai deixar ir? Não podemos ir para casa? — A vida deles por ela.
O movimento que ele faz é rápido, a espada sai das suas roupas e é erguida para mim, para o meu peito. A ponta raspa-me nas roupas, poderia corta-me se ele quisesse.
Porquê a mim? Porque me escolhes para amedrontar, Kiell? Sou assim tão inútil? Fui nada para ti? Não signifiquei nada?
Quem é ela? Adoraria saber se a minha vida está a ser trocada por ela.
O corpo de Helian mete-se à minha frente, para me proteger do ataque que poderá vir. Agarro-me ao seu braço, sem saber o que fazer ou o que dizer.
Jusalm
Foi essa a palavra que ele disse, foi o que murmurou antes de entrar neste salão.
Disse-nos que significava que morreríamos por aqueles que amamos, era isso que ele estava a dizer? A ganhar forças para entrar no salão para nos entregar? Sabendo que nos vai trocar pela vida da mulher que ama?
Devia saber, devia desconfiar que nunca iria para casa, que era demasiado bom para ser verdade.
Acabamos nas garras deste traidor.
— Podem levá-los! — Toda a gente que vi no palácio toma isso como deixa para entrar no salão, todos os soldados vêm para pegar em nós.
— Vai correr tudo bem. — O Helian vira-se para mim enquanto eles se aproximam para nos prender. Agarra-me os ombros e depois dá-me as mãos, aperta-me com força, está assustado, assim com eu, mas tenta passar-me calma. Afastam-nos bruscamente, os guardas imobilizam-nos, prendem-me as mãos e as pernas e transportam-me em direção à saída.
E eu grito, grito em plenos pulmões, o mais alto que consigo, não me importa se fico com dores de garganta. Berro o seu nome, vezes e vezes sem conta, quero que ele sinta a minha voz como se fossem estaladas na cara. Debato-me o melhor que consigo, e mesmo sabendo que lhes estou a dificultar a tarefa não tenho muito efeito na parte de escapar.
Tenho o corpo levantado, só consigo ver o teto, mas faço para que, com a cabeça ao contrário, os meus olhos cheguem a si.
Quero matá-lo, quero fazê-lo sofrer, confiei no meu amigo imaginário, não acreditei nas palavras de Helian, vi-as como exageradas, como algo que nunca ia acontecer. Não vi os sinais.
Embora os outros continuem em silêncio não paro os gritos até o meu rabo cair no chão de pedra negra.
Se vir aquele rapaz de novo, em vez de lhe furar as orelhas, faço-lhe um buraco no peito.
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