Capítulo 1 - ◇Quem Vem Lá◇

Serra Branca, 1985

Ao sul do Brasil, em uma zona rural cercada por colinas suaves e paisagens que pareciam ter sido pintadas à mão, ficava a fazenda Ferreira Lima. A terra, reverenciada pela sua fertilidade, era um orgulho para os irmãos Jacó, Kelvin e Rosivaldo, que juntos carregavam o legado da família. O casarão de madeira pintada de branco, com janelas de venezianas verdes, erguia-se como uma fortaleza, imponente e acolhedora ao mesmo tempo.

Jacó, o mais velho, era um homem pequeno em estatura, mas grande em autoridade. A pele queimada de sol refletia anos de trabalho sob o céu inclemente, e sua calvície brilhava como um emblema de sabedoria e liderança. Ele era o coração e a mente da fazenda, tendo adquirido a maior parte das terras com suor e negociações habilidosas.

Na manhã daquele dia, Donana, esposa de Jacó, dobrava roupas no quarto do casal, enquanto o pequeno Daniel, de apenas dois anos, brincava com um cavalinho de madeira aos seus pés. O cheiro de sabão de coco impregnava o ar, misturado à brisa que vinha da janela aberta, trazendo consigo o aroma da terra molhada pela chuva da noite anterior. Donana era uma mulher de formas generosas, com cabelos castanhos presos em um coque desalinhado e olhos atentos que irradiavam força e ternura. A cada dobra que fazia, seus pensamentos vagavam pelas tarefas do dia, mas uma cena ao longe chamou sua atenção.

Pela janela, ela avistou a charrete da família surgindo como uma miragem na estrada de terra avermelhada. O veículo balançava ritmado, acompanhado pelo ranger das rodas e pelo canto distante de um pássaro solitário. Um sorriso involuntário iluminou seu rosto, e ela apertou o bebê contra o quadril. Kelvin, seu cunhado, voltava para casa depois de uma viagem de sete dias.

Kelvin tinha trinta e oito anos, um porte corpulento e cabelos ruivos que reluziam ao sol. Seus olhos castanhos claros, quase dourados, brilhavam com uma fé inabalável. Ao ver o casarão ao longe, retirou o chapéu e ergueu os olhos ao céu, murmurando uma prece de gratidão. O som dos cascos dos cavalos quebrava o silêncio da estrada ladeada por cercas de madeira recém-pintadas, que delimitavam pastos onde o gado pastava despreocupado.

No quarto ao lado, Lucas, o filho do meio de Jacó e Donana, jogava uma velha bola de tênis contra a parede. Aos doze anos, o garoto já mostrava traços de inquietação e sonhos que iam além das fronteiras da fazenda. Seus cabelos castanhos desgrenhados e olhos vivos refletiam a curiosidade típica de sua idade. A cada arremesso da bola, a mente de Lucas parecia viajar para lugares distantes.

Donana, ainda com o sorriso estampado no rosto, abriu a porta do quarto.

- Adivinha quem está chegando? - disse, com uma alegria que transbordava no tom de sua voz, enquanto equilibrava Daniel no quadril.

Lucas congelou por um instante, como se tentasse confirmar o que havia acabado de ouvir.

- Tio Kelvin! - gritou, e a bola caiu de suas mãos.

Sem esperar mais, Lucas calçou as botas em um movimento desajeitado, e o coração disparado. Passou por Donana tão rápido que quase a fez perder o equilíbrio. Ela riu do entusiasmo do menino, embora mantivesse o olhar vigilante sobre o pequeno Daniel.

Lá embaixo, Rosivaldo rachava lenha com movimentos precisos. Ele era um homem magro, com rosto fino e cabelos negros presos em um rabo de cavalo. Apesar de ser o mais introspectivo dos irmãos, seus olhos guardavam um misto de melancolia e sabedoria, como se carregasse um fardo invisível. Ao ouvir os passos apressados de Lucas, ergueu o machado e o apoiou no chão.

- O tio Kelvin chegou! - gritou Lucas, correndo em direção à estrada.

Rosivaldo estreitou os olhos, confirmando o que o sobrinho dizia. Por trás dele, Jacó surgiu na varanda, secando as mãos no avental. Seu sorriso era largo, um raro momento em que sua expressão severa dava lugar ao alívio e à alegria.

A calvície de Jacó brilhava sob o sol das dez da manhã, exposta poucas vezes que saía sem seu amado chapéu.

Na carroça, Kelvin segurou as rédeas com firmeza, com os músculos dos braços tensos, e os cavalos responderam ao comando, parando em um instante. O cheiro da terra molhada e do couro do arreio misturava-se ao ar fresco da manhã, trazendo uma sensação de nostalgia e renovação. Assim que avistou Lucas correndo em sua direção, Kelvin sorriu. Era aquele tipo de sorriso que só aparecia em momentos de verdadeira alegria, um sorriso que iluminava não apenas seu rosto, mas também o ambiente ao redor.

Ele estendeu a mão calejada, com pequenos cortes que testemunhavam dias de trabalho árduo, para ajudar o sobrinho a subir na carroça. Lucas agarrou-a com entusiasmo, e os dedos firmes do tio transmitiram calor e segurança.

- Sobrinho! Que bom revê-lo! - Kelvin falou, puxando Lucas para um abraço apertado, carregado de afeto. O cheiro de feno e suor impregnava suas roupas, uma lembrança tangível de sua jornada.

Lucas riu quando o abraço terminou, mas seus olhos ainda brilhavam de emoção. - Achei que não iria mais voltar!

Kelvin ergueu uma sobrancelha, intrigado. - E por que pensou isso? Demorei tanto assim?!

- Demorou um pouco.

Kelvin sorriu, compreendendo a ansiedade de um garoto que, para ele, representava sua própria juventude. - E então, como andam as coisas por aqui? Tudo em ordem? - perguntou, soltando um grito que fez os cavalos retomarem a marcha.

- Sim. Tudo como sempre. Deus ouviu nossas preces, e a chuva finalmente veio! - A voz de Lucas transbordava entusiasmo, como se cada palavra fosse um agradecimento silencioso.

Kelvin olhou para a estrada à frente, onde a terra úmida parecia reluzir sob o sol. - Sim, eu percebi. A terra está molhada! Deus nunca nos desampara!

Lucas hesitou por um momento, e um sorriso travesso tomou conta de seu rosto. - Tio Rós continua reclamando do trabalho...

Kelvin soltou uma gargalhada que ecoou pela estrada, cheia e contagiante. - Aquele ali não tem jeito, vai ser assim até morrer.

Ambos riram juntos, e por um instante, os problemas do mundo pareciam pequenos.

- A girolanda criou, e está dando cinquenta litros de leite! - Lucas anunciou, animado, com sua voz quase um grito.

Kelvin virou-se para ele, com os olhos brilhando com a notícia. - Mesmo?! Que maravilha! Uma excelente notícia!

- Sim. Papai está muito feliz. - Lucas respondeu, com o olhar agora fixo no casarão que se aproximava.

A visão do lar era reconfortante. Donana, Jacó e Rosivaldo esperavam na frente da casa, com seus rostos pintados de expectativa. Kelvin retirou o chapéu, um gesto quase solene, e acenou para a família. Sua presença, mesmo à distância, emanava algo magnético, uma força que parecia reunir todos em torno de si.

Donana, ao lado de Jacó, entrelaçou o braço ao do marido, sorrindo. O vento balançava o tecido simples de seu vestido floral, que ainda carregava o cheiro do amaciante caseiro. Rosivaldo, mais distante, permaneceu sério. Ele se apoiou no cabo do machado e, com uma expressão que escondia pensamentos profundos, cuspiu no chão.

A carroça parou com um ranger seco, o som das rodas mordendo a terra úmida. Os cavalos relincharam, inquietos, enquanto Kelvin segurava as rédeas com firmeza, com os olhos observando Jacó, que se aproximava com um sorriso caloroso. O cheiro da madeira da carroça misturava-se ao aroma da terra molhada e do almoço que escapava pela janela do casarão, um convite para um reencontro que parecia perfeito à primeira vista.

- Seja bem-vindo de volta, irmão! - disse Jacó, com sua voz carregada de afeto, embora seus olhos denunciassem um cansaço que a vida no campo impunha sem piedade.

Kelvin desceu com agilidade, com as botas pesadas esmagando pequenas poças na estrada de terra. - Ah, obrigado, irmão! - respondeu, logo abraçando Jacó e Donana, que esperava ao lado, o perfume suave de lavanda do vestido dela trazia uma sensação de lar.

Ele acenou para Rosivaldo, que retribuiu com um movimento curto de cabeça, sem tirar a expressão séria que parecia colada ao rosto.

- E então, como foi a viagem?! - perguntou Jacó, com os olhos brilhando, quase como um garoto recebendo boas notícias.

- Não poderia ter sido melhor. Vendi o gado por um excelente preço! - Kelvin abriu um sorriso que tentava mascarar o cansaço dos dias de viagem. Retirou do bolso uma nota dobrada, desgastada nas bordas, e a entregou a Jacó.

Jacó olhou para o papel com uma ponta de constrangimento. - Não precisa me entregar isso, eu confio em você... - disse, com a voz hesitante.

Antes que Kelvin pudesse responder, Rosivaldo cravou o machado em uma tora de madeira próxima, com o som ecoando como um trovão no silêncio momentâneo.

- Mas a mim sim... - interrompeu Rosivaldo, caminhando até Jacó e arrancando o papel de suas mãos com brutalidade.

A tensão cresceu, o ar ficou mais pesado, como se um fio invisível tivesse sido puxado ao limite.

- Não pode esperar a sua vez?! - Jacó perguntou, tentando conter a irritação que agora transparecia em seu rosto.

Rosivaldo franziu o cenho, com os olhos brilhando com algo entre desconfiança e frustração. - Se conseguiu esse valor e pagou a parcela do empréstimo, ainda lhe sobraram mil e quinhentos cruzeiros... divididos entre nós três, dá: quinhentos para cada um. Quero a minha parte aqui agora! - Sua voz soou como um tiro, seca e autoritária.

Kelvin sorriu sem jeito, um sorriso forçado que não escondia o desconforto. O ambiente antes cheio de alegria e risos agora parecia envolto por uma nuvem de tensão.

- Rós, Kelvin acaba de chegar, deve estar cansado. O almoço já está pronto, vamos almoçar e depois falaremos sobre isso. - Jacó tentou apaziguar, mas sua expressão refletia a preocupação que Kelvin já sentia.

- Não, irmão. Rós está certo. Realmente sobrou essa quantia, mas como amanhã é o aniversário de Lucas, achei que vocês não iriam se importar se eu usasse a grana para comprar um bom presente para o garoto... - Kelvin sorriu, tentando dissipar o clima, enquanto acariciava carinhosamente o cabelo do sobrinho.

- Você gastou nossa grana?! - Rós perguntou, indignado, com sua voz vibrando com uma raiva contida que parecia prestes a explodir.

Jacó interveio, com a voz mais firme. - Você fez bem. Não é porque ele é meu filho, mas ele merece uma boa recompensa. Nos ajuda como um homem aqui na fazenda. Por mim, está tudo bem.

- Mas para mim não! - retrucou Rós, cruzando os braços, com a postura rígida como a de um soldado em prontidão. - Eu não te autorizei a gastar a minha parte. Vou lhe dar uma semana para conseguir minha grana de volta!

Kelvin suspirou, com o sorriso amarelo surgindo como uma tentativa de apaziguar o irmão. - Tudo bem, irmão. Eu já sabia que não concordaria. Vou lhe pagar antes disso, fique tranquilo.

Donana, que observava a cena com um misto de curiosidade e preocupação, finalmente quebrou o silêncio. - Agora eu fiquei curiosa. Que presente valioso é esse que trouxe para o meu filho? - perguntou, com o sorriso tentando aliviar a tensão.

Rosivaldo não deixou passar a chance de destilar seu sarcasmo. - Uma pedra de diamante com certeza... - disse, com a ironia transbordando em cada palavra, enquanto cruzava os braços e encarava Kelvin com olhos julgadores.

Kelvin soltou um suspiro discreto, ajeitou o chapéu e respondeu calmamente. - Está na carroça, esperem, vou pegar... - disse, caminhando em direção à ela com um misto de determinação e cansaço.

O som abafado de cascos contra a terra seca interrompeu o leve murmúrio da manhã. Os grilos se calaram por um instante, e até mesmo o vento, que antes agitava as folhas das mangueiras, parecia conter a respiração. Um relinchar ecoou na paisagem, agudo e inconfundível, alertando os presentes. Todos voltaram os olhos para a trilha poeirenta onde um cavaleiro surgia. Ford voltava de mais uma de suas caçadas.

Ele se aproximou devagar, com os traços de exaustão claros em seu rosto. Embora tivesse apenas vinte e cinco anos, sua pele castigada pelo sol e pelas intempéries parecia pertencer a alguém mais velho. Rugas prematuras se desenhavam na testa e no canto dos olhos, e havia algo em sua postura - os ombros ligeiramente curvados, o andar pesado - que falava de uma vida que nunca lhe deu folga. Os cabelos pretos e lisos, volumosos, caíam em desordem por baixo do chapéu desbotado, e a poeira acumulada em sua camisa de algodão dava um tom acinzentado ao azul original.

Ele parou ao lado da carroça, onde o cheiro do ensopado de galinha começava a se espalhar, misturando-se ao aroma terroso do campo e ao leve odor metálico do javali morto amarrado na garupa de seu cavalo.

- Tio Kelvin! Chegou bem a tempo... teremos javali assado para o almoço! - Ford exclamou, olhando de soslaio para o animal abatido. A expressão de cansaço deu lugar a um sorriso enviesado, aquele tipo de sorriso que carrega mais desafio do que simpatia.

Kelvin desceu da carroça, segurando uma pequena caixa de papelão com furos nas laterais. O ruivo, de olhar atento e gestos controlados, riu alto.

- Que bela caça! Não seria nada mal, gosto da carne bem passada! - Brincou, erguendo a caixa levemente, como se o peso do objeto fosse insignificante.

Jacó, o pai de Ford, aproximou-se também, com as mãos sujas de terra e um lenço no bolso que parecia ter limpado mais suor do que deveria.

- O porco ficará para o jantar. O almoço já está pronto. Teremos ensopado de galinha. - Disse, lançando ao filho um olhar cansado, mas cordial. Ford retribuiu com um encolher de ombros, uma resposta silenciosa que dizia "tanto faz".

Ford desceu do cavalo, puxando-o pela rédea, e dirigiu-se à mãe. Donana, a mulher de semblante sério e voz que carregava autoridade, cruzou os braços ao vê-lo.

- Por onde você andou, hein?! Quer me matar de preocupação?! Dois dias embrenhado na mata sem dar notícias!

Ford revirou os olhos e respondeu com desdém brincalhão.

- Mãe, se preocupe com Lucas e com Dan, eu já tenho vinte e cinco anos. Não me trate como uma criança!

O tom leve e irônico contrastava com a carranca da mulher, mas ele sabia que a preocupação dela era tão constante quanto o calor do meio-dia. Antes que Donana pudesse continuar o sermão, Kelvin chamou a atenção ao se aproximar de Lucas com a misteriosa caixa.

O menino, de cabelos castanhos desalinhados e olhos brilhantes, pegou a caixa com ambas as mãos, com a ansiedade visível nos dedos que tocavam o papelão.

- O que você sempre desejou... - Disse Kelvin, com um sorriso de canto.

- Abra logo, filho! - Donana ordenou, mal conseguindo conter a curiosidade.

Os sons da fazenda pareciam se apagar ao redor enquanto Lucas retirava a tampa. Dentro, um filhote de pastor alemão, com apenas três meses, se mexia timidamente, como se ainda estivesse tentando entender o mundo ao seu redor.

- Não acredito! Obrigado, tio! - Lucas exclamou, abraçando o homem com força. - Olha, mãe! - Virou-se para Donana com entusiasmo contagiante.

- Sim, filho, ele é lindo! - Respondeu, acariciando os cabelos do garoto, que agora segurava o cãozinho com cuidado, como se fosse o bem mais precioso que já teve.

Mas a cena de ternura foi abruptamente cortada pelo som de passos pesados e uma voz grave.

- Não acredito que jogou nosso dinheiro fora em um cão! - Rosivaldo, o patriarca de temperamento azedo, esbravejou enquanto balançava a cabeça em reprovação. - Essa idiotice abriu ainda mais o meu apetite!

A tensão na família era palpável, mas Kelvin, sempre com respostas rápidas, desviou o assunto ao notar Ford cruzar os braços.

- E meu presente, tio? - Perguntou Ford, com um tom provocador, mas sem a leveza que usava antes.

- Quer um maldito cão também, Ford? - Rosivaldo perguntou, parando à porta da varanda e lançando ao sobrinho um olhar cínico.

- Não. Não... Eu prefiro um bom cavalo. - Respondeu Ford, sorrindo de maneira contida, quase desafiadora.

Kelvin, com a calma de quem já lidou com discussões familiares incontáveis vezes, respondeu:

- Esse cãozinho fará a alegria de todos, sobrinho!

Jacó, que até então havia observado em silêncio, interveio.

- Irmão, não acha que teremos problemas futuros com o vizinho quando o cãozinho atingir o tamanho adulto?

Kelvin deu de ombros, com o tom irônico em sua voz agora ainda mais evidente.

- Nós já temos muitos problemas com o senhor Dimas, irmão. Esse será apenas mais um...

Jacó riu, balançando a cabeça.

- Verdade! Vamos deixar esse para o futuro. Venha, vamos almoçar, a comida já deve estar esfriando. - Ele fez um gesto convidativo, e todos o seguiram.

- Antes, vou bater uma massa. Enquanto os biscoitos assam, vou comendo. Quero levar logo mais para distribuir entre as pessoas enquanto eu evangelizo - disse Kelvin, seguindo Jacó para dentro da casa. Evangelizar era como um rob para ele, sabia que Deus lhe daría a recompensa.

- Ah, sim, os famosos biscoitos da bênção! - Jacó respondeu com um sorriso, e a risada baixa escapou de seus lábios. - Como os chineses, com uma mensagem surpresa dentro de cada um. - Seus olhos, ligeiramente avermelhados, indicavam apenas um cansaço sutil, mas o brilho deles ainda carregava um toque de humor, misturado com uma leve amargura.

O ambiente na casa estava imerso em uma tranquilidade rústica, os ruídos do dia a dia e os aromas da comida davam um toque de aconchego àquela mesa de madeira maciça. O cheiro quente e terroso da sopa, misturado com o toque sutil do vinho tinto, preenchia o ar, enquanto as cadeiras de cedro rangiam suavemente sob os corpos que se acomodavam. O som do talher cortando o prato era interrompido apenas pelas risadas baixas e os murmúrios abafados de conversas dispersas. O lugar parecia viver em um ritmo próprio, à parte das inquietações do mundo lá fora.

Enquanto eles continuavam suas conversas, os detalhes do ambiente não podiam passar despercebidos. A madeira escura da mesa reluzia com os restos de molho e vinho. O vento lá fora, frio e distante, fazia as cortinas se moverem levemente, quase como se quisessem participar da conversa.

Logo, a atenção na mesa foi roubada por uma bomba, lançada por Rosivaldo.

- Já sabem do boato que circula na cidade? O coronel Rubens Currípato, em breve voltará para essas bandas!

A reação na mesa foi imediata, com os rostos se torcendo em surpresa e apreensão. Lucas, o mais jovem, fixou os olhos em Rosivaldo, com o coração acelerado, e algo nos seus olhos denunciava o que ele já sabia: a volta desse homem não trazia boas notícias.

- Ele já não está morto? - Kelvin perguntou, com as sobrancelhas levantadas com desconfiança, com a colher ainda suspensa entre o prato e sua boca.

- E vaso ruim se quebra? - Rosivaldo disse, com um tom de desprezo, com os olhos estreitados, e desafiadores.

E então, as palavras de Jacó ecoaram na cozinha, com uma força silenciosa.

- E que diabos ele quer por essas bandas?! Já não bastou tudo de ruim que já fez no passado? Quer atormentar o povo de Siena mais uma vez! - Citou a amada cidadezinha onde resolviam as coisas e vendíam seus produtos.

Havia tensão no ar. O cheiro do vinho não mascarava o desconforto crescente. O peso da história daquele homem pairava como uma sombra. As paredes da casa pareciam estreitar com o medo que se espalhava, enquanto os homens se preparavam para discutir as próximas jogadas. O som dos copos se enchendo novamente quebrava o silêncio, mas havia uma camada de apreensão sob cada movimento.

- Pelo o que eu soube, ele está querendo montar uma fábrica de cerveja na cidade. E bem pior que isso, quer expulsar os donos de sítios e fazendas produtivas como a nossa, e se apropriar delas! - Rós disse, estreitando os olhos. O ar de desconfiança e amargor tomou conta dele, como se ele estivesse preparando o terreno para algo mais sombrio.

- Ele que tente invadir essas terras, vamos o receber a balas! - Jacó falou, batendo a mão fechada com força sobre a mesa. O impacto fez os talheres tilintarem, como se quisessem fugir da violência do momento.

- Já estarei pronto o esperando! - Ford, o sobrinho, disse com um sorriso frio nos lábios, retirando um revólver da cintura e mostrando para todos com um gesto tranquilo, mas ameaçador.

- Guarde essa arma, sobrinho, nem tudo se resolve com violência! - Kelvin disse, com um tom de reprovação na voz. Ele era um homem de princípios, mas seus olhos, embora firmes, traíam o cansaço de uma vida de lutas silenciosas. Ele não gostava de armas, e não usaria uma, a menos que fosse uma questão de sobrevivência. O contraste entre ele e Ford era palpável, como a água e o óleo.

E então, o debate continuou, mas algo estava prestes a mudar. O tom de Rosivaldo se tornou mais impaciente.

- Ninguém consegue pará-lo, irmão, seu bando é enorme!

Jacó, com o olhar carregado de frustração, respondeu:

- E o que você sugere, que entreguemos nossas terras de mão beijada?!

Rosivaldo, com os dedos batendo na mesa, despejou sua visão.

- Não entregar, mas sim, vendê-la agora, antes que ele chegue e a tome de nós! Estou cansado de tanto trabalhar e não ser valorizado! Eles não valorizam nossos produtos! - Ele estava exaltado, com a pressão explodindo de dentro de si. O suor escorria de sua testa, e a tensão no ambiente era palpável, como se a própria casa estivesse sentindo a angústia dele.

- Não me vejo fazendo outra coisa a não ser cultivar a terra... - Jacó disse, com a voz firme, e o olhar determinado. Sua mão acariciou a madeira da mesa, como se pedisse à terra um apoio silencioso. - Plantar, colher... estar em meio aos animais. Cavalgar, sentir o ar no meu rosto, ter liberdade. Sim, liberdade sem limites! Aqui eu me sinto no paraíso, não troco essa vida por nada! - Ele sorriu, trocando um olhar com Donana, que lhe devolveu um sorriso cheio de cumplicidade.

A guerra de ideais estava instaurada na sala. O aroma dos biscoitos recém-assado parecia ter se perdido em meio à confusão de sentimentos e vontades opostas.

Mas foi o grito de Rós que estilhaçou tudo,

- Se querem acabar definhando nessas terras e morrerem pelo cano da arma do coronel, que assim seja, mas eu pretendo estar bem longe quando ele e seu bando chegarem! - Ele se levantou abruptamente da mesa, com os pés pesando no chão de madeira, como se estivesse tomando uma decisão irrevogável. - Quero a minha parte da fazenda, vou embora no próximo mês!

Aqueles momentos de silêncio, pesados e tensos, foram interrompidos pelas palavras de Jacó, que, com raiva e incredulidade, perguntou:

- O quê?! Não temos como lhe passar sua parte, essa terra é enorme, mesmo dividida em três partes o valor será exorbitante, onde vamos arranjar tanta grana?!

Rós, com o olhar frio e resoluto, respondeu:

- Dê o seu jeito, pegue um empréstimo, venda uma parte do terreno... uma quantia significativa está bom para mim.

E a mesa caiu no caos silencioso. O cheiro de terra, vinho e comida parecia não ser suficiente para apagar o gosto amargo da traição e da desunião.

[...]

Lucas brincava no carpete desgastado da sala, seus dedos pequenos acariciavam o pelo áspero e macio do cãozinho, enquanto o animal o lambia em resposta. A casa tinha o cheiro aconchegante de biscoitos recém-assados, misturado ao perfume suave de lavanda do bebê Daniel, que Donana trazia no colo. Ela caminhou com passos leves, e o rosto iluminado por um sorriso maternal.

- Pelo jeito, você amou o presente, não é, filho? - disse Donana, com a voz gentil, como uma melodia.

- Era tudo o que eu queria! Agora tenho um amigo! - respondeu Lucas, segurando o filhote no colo. O brilho nos olhos castanhos do menino contrastava com a luz fraca do abajur, que fazia sombras dançarem nas paredes.

Donana ajeitou o cabelo castanho preso em um coque e inclinou a cabeça.

- Já pensou em um nome? Ele precisa de um nome.

Lucas mordeu o lábio inferior, pensativo.

- Ainda não pensei nisso.

Ela sorriu, com um toque de travessura no olhar.
- Pois trate de pensar. Quando escolher, me avise pra ver se aprovo. - Piscou um olho e saiu em direção à cozinha, onde o cheiro dos biscoitos era irresistível.

Kelvin, com uma expressão satisfeita, desenformava os biscoitos dourados, colocando-os em uma vasilha plástica. O som metálico da espátula contra a forma ressoava suave na pequena cozinha.

- Humm... que cheirinho bom! - comentou Donana ao entrar, inspirando profundamente.

Kelvin ergueu uma sobrancelha, divertido.

- Claro, é a minha melhor receita!

- Ainda aprendo a fazer esses biscoitos! - disse ela, encostando-se à mesa.

- Você já faz, e faz bem!

- Sim, mas não sei o seu segredo.

Kelvin riu, com a luz do lampião dançando em seus olhos.
- Isso eu não conto! - Ambos riram juntos, era um momento breve de descontração.

Jacó apareceu pela porta da cozinha, com os ombros largos marcados pela poeira do dia.
- Já preparei seu cavalo, irmão. É só montar e partir.

- Eu lhe agradeço, Jacó! Você merece uma recompensa por isso! - Kelvin disse, entregando um biscoito ao homem, que aceitou com um sorriso.

- Não há maior recompensa. São deliciosos! - respondeu Jacó antes de pegar o bebê Daniel no colo. Ele começou a cantar baixinho, embalando o pequeno até que o choro cessasse.

Lucas, que brincava debaixo da mesa, surgiu de repente, ágil como um ratinho. Ele pegou um biscoito e correu em direção à escada, com os pés descalços fazendo um som abafado contra o piso de madeira.

- Duvido que me pegue! - gritou ele, provocando Kelvin enquanto subia os degraus.

Kelvin riu e balançou a cabeça.
- Ei, seu ladrãozinho, devolva o que roubou!

- Se quiser, venha pegar! - respondeu Lucas, parando no meio da escada antes de continuar a subir, com a risada ecoando pela casa.

Todos se divertiam com a inocente travessura do garoto. Porém, o som de risadas foi interrompido quando Rós apareceu no corredor do andar de cima, ajeitando seu chapéu. Vestido como sempre, impecável, com o perfume amadeirado que parecia inconfundível. Ele deu o primeiro passo para descer as escadas, mas parou subitamente ao ouvir o estrondo de um tiro.

A bala atravessou uma das janelas da sala, atingindo Lucas pelas costas. O menino congelou, com os olhos arregalados, o biscoito caiu de sua mão antes de ele desabar nos degraus.

- Lucas! - gritou Donana, já percebendo a tragédia.

Outro disparo ecoou, e desta vez a bala atingiu Donana na cabeça. Ela caiu sem resistência, mas foi amparada por Kelvin, que a segurou nos braços, com o rosto tomado pelo desespero.

- Donana! - gritou Jacó, incrédulo, com os olhos fixos na esposa ensanguentada.

Rós tentou segurar Lucas, mas não chegou a tempo. O garoto caiu rolando até o piso da sala, e a cabeça bateu contra o chão com um som seco. Ele ficou imóvel, enquanto um pequeno filete de sangue escorria de sua têmpora.

Vidros explodiam com o impacto de novos tiros, fazendo os homens se abrigarem às pressas.

- Rápido, peguem suas armas! - gritou Jacó, com a voz carregada de urgência e fúria.

Rosivaldo se abaixou atrás do corrimão da escada, com os olhos atentos.
- Como eu avisei, o Coronel chegou... e mais cedo do que eu esperava.

Enquanto se escondia atrás da bancada, Jacó olhou para o filho caído ao pé da escada, desacordado. O sangramento pequeno era um fio de esperança. Mas, ao olhar para a esposa, imóvel em uma poça de sangue, algo nele se quebrou. O ódio subiu como uma tempestade furiosa em sua alma.

Ele jurou que o responsável pagaria por tudo.











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