1 - Um tênis esquecido
Algumas horas antes
O chute acertou a garota bem na nuca, o que a fez acordar em um salto.
— Opa — uma voz masculina falou acima dela — perdão, menina.
Ela não teve tempo nem de lhe lançar um olhar feio, pois, quando o localizara, o homem engravatado já estava longe.
Menina olhou ao seu redor, piscando o olho várias vezes para se acostumar com a luz do sol que já começava a aparecer por entre a selva de prédios da Avenida Paulista.
Já devia ser umas seis ou sete horas da manhã, a garota notou, pois o movimento estava aumentando a cada segundo, mas felizmente, agora que ela estava sentada, ninguém mais tropeçou nela.
Com um suspiro, Menina se levantou do chão sujo e deu alguns tapinhas de leve na calça jeans alguns números acima do dela para tirar as pedrinhas que a incomodavam.
Ela olhou para a senhora ao seu lado ao mesmo tempo que esta abriu os olhos, desperta pelo barulho crescente dos trabalhadores. A mulher devia estar na faixa dos cinquenta anos, apesar de ter parado de contar seu aniversário havia muito tempo.
Pela falta de cuidado, ela tinha muitas rugas em volta dos olhos e as marcas de expressão ficavam ainda mais visíveis pela sujeira preta.
— Vou ir na cafeteria — anunciou ela à senhora, que já se sentava na calçada.
— Traga algo pra mim, Menina — disse, com a voz rouca.
Ela anuiu com a cabeça e saiu na direção oposta à que as pessoas estavam indo, que com certeza era em direção ao metrô mais próximo.
Menina gostava muito da Avenida Paulista, pois tinha sua cafeteria favorita, mais comida e restos generosos de doces, que Menina fazia questão de escondê-los de Tatá para que pudesse apreciar aquelas preciosidades sozinha. Ela se sentia um pouco mal por esconder algo da mais velha, mas... o que ela poderia fazer? Tatá já ficava com a maior parte da comida. Um pouco menos de doce não faria mal a ela.
Fora que apareciam muitos estrangeiros a noite por lá. Menina gostava muito de estrangeiros — eram sempre os mais generosos com ela.
Silenciosa, Menina contornou a cafeteria e se dirigiu à porta dos fundos, onde, logo ao lado, havia uma enorme lixeira verde; tão grande, mas tão grande que Menina era apenas um palmo mais alta do que ela.
Ela esperou alguns minutos, escondida, até a porta dos fundos se abrir e um funcionário com um boné cáqui descarregar os primeiros sacos de lixo do dia na lixeira verde.
Os olhos de Menina brilharam e, assim que ouviu a porta ser fechada novamente, ela pulou para dentro do paraíso verde, abrindo os sacos e vasculhando restos de alimento relativamente frescos que os clientes apressados jogaram fora.
Ela achou um pedaço de pão com manteiga, uma garrafa d'água com dois dedos faltando e...
Ela piscou duas vezes, para se certificar de que aquilo não era apenas sua imaginação. Aquilo era mesmo um bolinho de chocolate?!
Com suas pequenas mãozinhas, ela pegou o doce e o cheirou, soltando um suspiro de satisfação pelo cheiro doce que entrou em suas narinas.
Sim, era mesmo de chocolate. E estava quase inteiro! Ela agradeceu mentalmente a alma que o jogara fora e comeu todo o docinho em apenas duas mordidas.
Era realmente muito bom. Tinha um leve gosto de velho, notou, percebendo que talvez fosse isso que fizera o cliente querer jogar fora. Mas, para Menina, aquilo estava uma maravilha!
Ela se deixou apreciar o gosto doce que ficara em sua boca por mais alguns segundos antes de continuar sua missão de procurar o seu café da manhã e o de Tatá.
Por experiência, sabia que Tatá comia quase três vezes a mais que ela, mas Menina sabia que era porque ela era uma adulta e, Tatá ensinou, "adultos precisam de muita energia para se manterem em pé, diferentemente das crianças, como Menina, que precisavam de pouca". Quando Menina perguntou o porquê, Tatá apenas apontou para a cabeça da garota e em seguida para a dela própria. "Olhe o seu tamanho e olhe o meu".
Menina aceitou a explicação e passou a procurar o triplo de comida que geralmente pegava para ela própria quando estava sozinha.
Como era o primeiro lixo do dia, a tarefa durou mais tempo do que era seguro, mas, ainda anestesiada com a felicidade do sabor doce em sua boca, Menina perdeu a noção do tempo enquanto procurava comida e ia colocando em sua bolsinha gasta.
TUM.
A garota olhou por instinto na direção do som, o coração subitamente acelerado, já sabendo o que era antes mesmo do cérebro lhe enviar a mensagem: "CORRA".
Era a porta dos fundos se abrindo para provavelmente mais um descarregamento de lixo.
Com sua agilidade infantil, Menina pulou para fora da lixeira bem a tempo de um homem gordo de avental verde aparecer na porta. Ele olhou para ela, analisando-a de cima a baixo antes de soltar o saco preto que carregava e apontar um dedo muito grande para ela.
— AH RÁ! Então é você a ratazana que andou revirando meu lixo essa semana, hein? – o homem gordo exclamou com sua voz extremamente grave, que desconcentrou a garota em fuga.
Seu tênis era muito grande pra ela, o que a desiquilibrou no meio da corrida, fazendo-a cair. Desesperada, ela tirou o sapato do pé e se arrastou pra longe do homem.
Ele deu um passo em sua direção.
— Uma garotinha ainda! Cadê a sua assistente social? — o cérebro de Menina ativou outro aviso ao ouvir a palavra "assistente social". Não, ela não podia ir pra nenhum lugar que dizia ser seguro. Ela tentou se levantar, mas o homem, com uma velocidade absurdamente enorme para alguém do seu tamanho, agarrou seu braço magrelo com tanta força que a garota gemeu de dor.
Ele a observou por breves segundos antes de franzir o cenho.
— Hum... estranho... nunca vi nenhuma criança de pedigree revirando lixo — disse, mais para si mesmo do que para Menina, que inutilmente tentava se desvencilhar do aperto. — Ei, cadê teus pais?
— Não sei — disse, inclinando o corpinho para trás, ainda em sua tentativa de fuga. — Me solta!
O gordo arqueou uma das sobrancelhas, pensativo. Se estava fazendo qualquer tipo de força para manter a garota presa, ele não demonstrava.
— Bom, venha comigo, então. Vou ligar para a polícia. Eles saberão o que fazer e...
— NÃO! — Os cabelos de Menina se arrepiaram como se estivessem com estática. Sua voz aumentou alguns decibéis, o que fez o homem recolher sua mão com o susto. Não, ela não poderia ir com a polícia. Das últimas vezes que fora abordada por policiais, ela acabara naquelas casas horríveis da assistência social.
Ela sempre fugia, mas não era uma tarefa fácil. Seu lugar era com sua amiga Tatá, a única em quem ela confiava. Ela definitivamente não iria para lugar algum.
Suas mãos tremiam com a adrenalina. O homem, recuperando-se do susto, estendeu a mão para segurar seu braço novamente, mas a lixeira convenientemente explodiu atrás dele, dando o espaço de tempo perfeito para Menina dar meia volta e correr para longe, deixando apenas seu tênis e um homem assustado para trás.
[Cada estrelinha que tiver aqui é um pratão de comida pra Menina e pra Tatá]
E então temos nosso primeiro capítulo! Peguei um pouco pesado? Peguei...
... mas se eu não pegasse, meu nome não seria Julie Sachs, né?
Enfim, quero ouvir a opinião de vocês! O que acharam?? Me contem tuuuudo!
Funfact: eu passei 7 fucking horas na Paulista procurando os lugares para esse livro. Me perdi pra caramba porque não sou natural da Capital, MASSSSS todos os lugares desse livro existem de verdade! Então, se algum dia você passar por lá, poderá encontrar as ruas por onde Menina andou... e apanhou.
Nossa, tô sendo muito negativa.
Bom, é isso, queridos! Até a próxima!
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