Cartas à Imaginação

Olá, caro leitor...

Aqui quem vos fala é a companheira das crianças, amiga dos solitários, a esperança dos criadores e a consolação para a mente. Ou pelo menos é o que eu costumo ser para a maioria deles.

Meus companheiros favoritos são as crianças. Elas usam e abusam da imaginação ao longo do seu crescimento e eu costumo ser uma fonte muito promissora nestes períodos, uma criança é capaz de espantar o sentimento de solidão apenas usando sua criatividade em imaginar universos e histórias diferentes do comum.

Mas existe uma garotinha em especial que me chamou a atenção desde a primeira vez que lhe servi de companhia, na verdade eu fui mais que isso, eu era tudo o que ela tinha. E é a história dela que eu quero lhe contar...

Quando conheci Milena ela tinha apenas sete anos, havia perdido a mãe recentemente e estava morando com o tio, um homem cuja face eu vi apenas uma vez assim como a pobre garotinha. Ele era ausente e não costumava ver ou falar com ela.

A menina vivia trancada em seu quarto, suas refeições eram servidas por uma empregada que a visitava três vezes ao dia e trocava nada mais que cinco ou seis palavras com ela. Todo o resto do tempo Milena passava solitária, sem companhia ou alguém para conversar, nem mesmo podia estudar. O único que ela tinha era uma enorme pilha de brinquedos no canto do quarto para se distrair.

Ela passou cinco meses assim antes de me ter como amiga. A primeira vez que ela se comunicou comigo foi num dia de verão, o dia estava ensolarado e Milena se lembrou que costumava brincar na rua com os amigos. Ela sentia falta de alguém com quem brincar, ficar ali solitária estava se tornando uma tortura.

Do terceiro andar da casa onde ficava seu quarto ela não conseguia ver o que tinha logo abaixo e nem quem costumava passar por ali, mas na esperança de encontrar alguém para conversar Milena escreveu uma carta se apresentando e falando brevemente sobre si e depois à jogou pela janela pedindo ao seu leitor que mandasse uma resposta passando a carta por debaixo de sua porta, sem ao menos pensar se isso seria possível.

Dois dias depois eu a respondi e agora seria sua mais nova amiga. Tão solitária a pobre criança se encontrava que contentou-se em ter apenas a mim como remetente. Eu estava tão presente na vida de Milena que era capaz de ser o que ela tanto precisava e agora eu já não a via mais triste e infeliz.

Nós conversávamos todas as manhãs e isso deixava Milena feliz pelo resto do dia, que era quando ela me escrevia novamente contando o que fez ou do que brincou. Ela se referia a mim como Minny e eu acredito que ela gostava especialmente deste nome.

Nós falávamos sobre tudo. Milena gostava de conversar sobre qualquer coisa e eu nunca me importei em ajudá-la com isso, na verdade me sentia honrada em poder ser uma parte realmente importante em sua vida. A minha amizade e minhas cartas à ela tinham grande valor em seu dia a dia e era o que a motivava a não se sentir mais só.

Com um certo tempo eu já conhecia Milena como cada parte da minha utilidade, eu sabia que ela gostava de brincar de pique-esconde e que sorvete de menta é bem refrescante, ou que ela amava as aulas de balé e odiava ter que estudar matemática nas férias. Eu sabia que Milena adorava passear no parque aos domingos com a mãe e visitar sua avó em Las Vegas, ou do dia do seu aniversário de seis anos onde ela visitou o Cristo Redentor no Rio.

Eu sabia o quanto ela achava desnecessário e confusa ser mantida no quarto com a porta trancada ou que Nana não parecia se importar com ela. Como sua mãe fazia uma enorme falta e estudar também, mesmo que no começo achasse bom não ter que ir à escola. Milena me dizia absolutamente tudo e eu sempre estava lá para ouvir e responder cada uma de suas necessidades e desabafos.

Milena sempre dizia que gostaria de me conhecer pessoalmente e eu sempre lhe disse que isso era bem difícil, coisa que a deixava desanimada por um tempo, mas ainda disposta a conseguir isso.

Ela lutava para fazer a empregada descobrir quem realmente lhe escrevia para ter a chance de conversar pessoalmente algum dia, mas isso era difícil de explicar e algo impossível de acontecer. De tempos em tempos ela insistia para que a mulher lhe ajudasse neste processo, mas de nada adiantava, a empregada nada podia fazer.

- Por favor, Nana - insistiu Milena, antes da mulher partir.

- Menina Milena, já lhe disse que ninguém veio aqui deixar carta para você.

- Nana, eu juro que é verdade, eu recebo toda manhã.

- Deixe que eu as veja então - pediu a empregada, já sem paciência.

- Não posso - afirmou Milena, desanimada.

- Eu perco todas elas - completou Nana junto as palavras da menina, já acostumada com aquela mesma resposta que havia decorado cada palavra.

- Quando uma nova carta chega, some a outra.

- Você já está ficando louca aqui dentro, vou falar com seu tio.

- Ao menos deixa a porta destrancada para que eu possa ver quem me escreve quando a carta chegar - implorou a menina, agarrando o braço da mulher.

- Eu não posso... E pare de me atormentar com isso, aqui não tem ninguém que possa lhe escrever, isso só pode ser fruto da sua imaginação - garantiu a mulher, antes de trancar novamente a porta.

Nana não deixava de estar certa, eu era de fato a amiga escritora e remetente das cartas que Milena acreditava receber toda manhã embora ela não soubesse disso.

A solidão e o descaso que Milena fora vítima na casa do tio era algo realmente cruel, nenhuma criança deveria passar por isso. A sorte desta pequena notável foi ter uma amiga para trocar cartas neste período e isto realmente lhe fizera bem. Milena já não era mais triste e passava os dias contente em poder compartilhar comigo tudo o que fazia ou pensava.

A doce menina viveu desta forma por longos dez meses antes de finalmente ter o pai localizado na França, para onde ela foi imediatamente levada após ele saber sobre a morte de sua mãe.

A minha mais fiel amiga me mandou uma carta de despedida e sentiu certa tristeza em ter que me deixar, mas ela partiu junto ao pai para a França onde vive bem melhor agora que tem um novo lar e companhias verdadeiras. Seus outros dois irmãos a receberam com todo o amor e atenção de que precisava, tornando seus dias muito mais completos e recheados de emoções.

Nunca mais ela precisou escrever carta alguma para mim e de certa forma me senti um pouco triste por isso, mas poder ver Milena finalmente feliz e ao lado de amigos verdadeiramente reais me deixaram mais contente do que eu poderia imaginar.

Até hoje eu me lembro de cada trecho da sua gentil carta de despedida deixada a mim pouco antes de pegar sua pequena mala de viagem e desaparecer porta a fora naquele carro preto rumo a uma nova vida. Milena dizia assim:

Querida Minny...

Eu estou indo embora com meu pai para minha nova casa na França. Lá eu tenho outros irmãos e eu quero muito brincar com eles.

Eu queria ter te conhecido antes de ir embora, você é uma boa amiga.

Vou sentir sua falta.

Nunca vou esquecer de você.

Com amor... Milena.

Certa tarde Nana saiu para limpar os arredores do lado de fora da casa, a temporada de chuva havia acabado e as paredes tinham ficado lambuzadas de terra. Neste dia ela encontrou as cartas que Milena escrevia para mim todas abrigadas dentro de um velho latão, bem abaixo do quarto onde a menina ficava.

Tão profunda foi a tristeza e o arrependimento que Nana sentiu após ler todas aquelas cartas e se dar conta da cruel infelicidade que Milena vivera durante sua estadia ali que mal pôde conter suas lágrimas.

- Senhor, o que eu faço com estas cartas? - perguntou Nana, ao patrão.

- Desapareça com isto - respondeu aquele homem cruel.

- Quer mesmo que eu o faça, senhor?

- Você conseguiu descobrir quem respondia as cartas? - questionou, visivelmente irritado.

- Eu nunca vi carta alguma que não sejam estas... Não tinha quem pudesse respondê-las... Eu acredito que ela tinha uma espécie de amiga imaginária ou algo assim - afirmou Nana, recolhendo as cartas de cima da mesa.

- Tem razão... Esqueça isso e desapareça com tudo como lhe ordenei.

- Mas, senhor...

- Nana... Suma daqui com estes papéis ou demitirei você.

- Tudo bem... Eu já estou indo.

Nana guardou em uma caixinha de papel em seu minúsculo quarto todas aquelas cartas, talvez como uma forma de se lembrar de jamais repetir tais atitudes novamente com qualquer outra criança que cruzasse seu caminho.

Milena de fato me surpreendeu. Ela sobreviveu a tudo isso, cresceu e aprendeu diversas coisas. Hoje em dia é este ser humano iluminado que está sempre disposta a ajudar o próximo e que para minha felicidade se esqueceu dos momentos solitários que viveu na casa do tio naquele período.

Ela não se lembra muito de mim e de nossas conversas, eu virei algo como uma vaga lembrança que se pode confundir com um sonho, daqueles que você não sabe se foi real ou imaginário.

Vez e outra eu a visito. Ela não precisa mais de mim como amiga, mas ainda tem minha ajuda todas as noites quando coloca seus dois filhos para dormir e conta a eles uma nova história para que peguem no sono.

Suas histórias são tão incríveis que até mesmo eu, a própria imaginação, sou capaz de me admirar com o talento de Milena em criar novas possibilidades.


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