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Novembro, 14

Descemos para o espaço onde ficava o auditório. Diversas cadeiras acochadas em alturas diferentes estavam preenchidas por pessoas mais aleatórias possíveis. Havia até mesmo fotógrafos com câmeras gigantes, possivelmente para gravações também, iluminadores e tudo o que uma produção tinha direito. Em cima do palco propriamente dito, alguns seres também se faziam presentes, mas eu não conhecia a cara de ninguém.

Cadê Genesis Roux?

Ainda não havia tido a chance de capturá-la na minha visão. Sabia que, assim que a enxergasse, todo o meu foco seria perdido. Em duas esbofeteadas silenciosas. Ela não precisaria dizer nada para que meu coração se desregulasse. Eu teria de me segurar bem em uma das cadeiras se não quisesse destruir o resto de planejamento que tinha, pois a vontade de avançar seria maior. Apenas saber que estávamos no mesmo ambiente deixava tudo fodidamente intenso. Sentia até mesmo o suor se impregnando na minha testa.

Stephen Gorst também parecia suar frio, mas o seu filho, por mais que eu jamais suspeitasse de sua calma conosco, direcionava o grupo para os lugares devidos. Eu esperava que não houvesse marcações nos assentos, senão os verdadeiros donos poderiam chegar e acabaríamos chamando muita atenção para sair. E ninguém queria aquilo no momento.

Acomodei-me entre Hunter Gorst e Genevieve. Os outros, muito atentos, sentavam na mesma fileira. Seria imprudente manter uma distância próxima, pois podiam fazer conexões depois, mas, talvez, eles não houvessem conseguido outros lugares para nos dividirmos. Eu precisava me contentar com os locais afastados do palco principal.

— É tipo um RPG — Hunter murmurou em meu ouvido. Eu o olhei, pedindo com minhas pupilas loucas que ele prosseguisse, porque eu ainda achava tudo fora da realidade normal. — Eu sou o Carisma, sabe? Meu pai, por sua vez, é a Percepção. Um cara muito para frente e observador. Sabe onde nos colocar. A querida Esther é a Força, porque sempre nos defende usando o punho e já foi presa por agressão por validar seus dotes. D’Angelo é a Destreza. Já viu como dirige? Ele é um mago que faz automóveis flutuarem.

— E eu e Genevieve? — falei, perdendo a paciência. Gorst mais novo acabaria descobrindo cedo demais que eu também podia validar meus dotes usando o punho. — Onde nos encaixamos? 

— Genevieve Welch é a Constituição. Ela te manteve viva, mesmo de longe. E está querendo continuar no papel. Agora esperamos que trabalhe em grupo. — Hunter prosseguiu, olhando para Genevieve na última parte. — E você é a Inteligência, Bewforest, mas precisa abrir margens para deixá-la fluir.

O que ele sabia sobre mim? Estava me chamando de estúpida elegantemente? Eu esperava que o seu pai viesse me dizendo o que fazer e aprofundasse nas explicações, afinal parecera bem certeiro quando me perseguira por aí, sem hesitar. Percepção. Mas o jovem, embora parecendo um pouco desengonçado e atento demais nas próprias vestes como se fosse fútil, demonstrava ter bastante experiência com aquela lábia toda. E era um pouco assustadora a situação.

— Você deveria me caracterizar como Pesadelo, Hunter, porque tudo isso só me faz querer torcê-lo até ouvir uma verdade — expus em tom de ameaça. 

Genevieve se afundava em sua cadeira. Ela estava nos ouvindo, mas seus olhos se prendiam no palco. O telão já mostrava a imagem da professora, Margot Hitt, ao lado dos seus colaboradores. Ela estava com os cabelos loiros enrolados para o lado sem nenhum fio escapulindo. Seus olhos, levemente arredondados, transbordavam bondade e sabedoria, mas se ela estava envolvida com Roux, coisa boa não podia fazer. Uma máscara usava.

Hunter Gorst pareceu não ligar para o que eu dizia, porque também pôs o palco em sua atenção. A mesma mulher da foto se apresentava na frente de todos. Havia uma bancada na frente com outras pessoas, possivelmente professores, mas nada de Genesis Roux. Eu teria de ficar o dia todo para ter o primeiro vislumbre dela?

Em poucos minutos, toda a cacofonia cessou, mas a boa simpatia se perpetuava entre a plateia. Todos estavam verdadeiramente ansiosos para o início da palestra. “Era renascentista e o avanço da ciência” era o que se lia no telão naquele momento. Eu crispei meus lábios e olhei para Stephen, a Percepção. Ele sorria como quem dizia: “é sua área, Maddie, então aproveite”. Eu sempre aproveitava algo do gênero, mas não quando meu maior temor estava no mesmo ambiente.

Meio dia e três.

A palestra se iniciou à medida que meu corpo entrava em combustão. Genesis Roux causava o fenômeno apenas estando no mesmo ambiente, mas sem ser vista. Eu já nem sabia se queria encontrar seus olhos, pois o contato poderia paralisar todos os meus órgãos. Mas eu era o tipo de pessoa que procurava ouvir e ver o que me machucaria. Eu passava tempo demais nas redes sociais de quem eu gostava só para sofrer por aquilo depois. Então não era de assustar — muito — que eu desejava vê-la face a face. Já havia feito aquilo anteriormente, não?

A voz de Margot Hitt era muito bonita. Jovial, doce, entusiasmada. Sua abordagem inicial instigou todos nós, inclusive eu, que havia caído naquele espaço de paraquedas. Ela abria sua introdutória falando acerca dos métodos em base do sobrenatural, abordagens feitas anteriormente na medicina, nas quais a maioria dos eventos era classificada como obras de demônios e de espíritos. Eu imergi nas primeiras linhas, esquecendo-me temporariamente da minha “missão”.

Sequer sabia quando deveria me intrometer. A roda de perguntas em breve seria aberta, mas eu já deveria me expor assim? Nem sabia o quanto me conheciam, por tudo que já havia feito na medicina. O nome da professora, por exemplo, era familiar. E se ela, sendo muito mais experiente, tivesse o meu nome na ponta da língua? Eu não queria entrar naquilo tão rápido.

A professora, sem a ajuda de qualquer outro da bancada, prosseguiu com seu discurso. A mão de Genevieve veio para cima da minha. Ela realmente era a Constituição, porque me sentia revigorada só com o toque singelo. Seus olhos sabiam de toda a verdade também, e eu nem podia inventar uma outra cara para ela não descobrir o que se passava dentro das minhas vértebras, porque Genevieve captava todas as sutilezas como uma mestre em expressões faciais.

Eu ouvia toda a palestra como se nunca houvesse lido sobre, percebendo que eu, assim como os professores da bancada, podia ser considerada uma especialista. Ainda que eu não possuísse uma oratória excelente como a da Prof. Hitt, ou um vocabulário extenso de inveja, sabia que estava em casa naquele assunto. 

A minha inspiração aumentava. A agitação deliciosa começava internamente e ultrapassava o epimísio em dois segundos. Destroçava o meu osso em uma onda violenta, fingia que músculo algum existia, tampouco tendões. Em compensação, as camadas da minha pele dobravam-se de tamanho, fundindo-se ao suor predominante daquela agonia profana.

E sabíamos que ciência era arte ou que arte era ciência. O período renascentista veio justamente para comprovar aquilo. Prof. Hitt, aprofundando no assunto, citou algumas das setecentos e cinquenta ilustrações que Leonardo da Vinci deixara em Terra acerca do corpo humano. O artista fazia uso da dissecação a fim de lapidar os seus conhecimentos artísticos. Michelangelo Buonarroti, por outro lado, trocava seus trabalhos de outrora por cadáveres. Os coveiros, sem saber, ajudavam-no em suas próprias dissecações à luz de velas, que vieram a completar os estudos sobre anatomia humana. 

Em parceria, médicos e artistas da época, focados na expansão de conhecimentos, partilhavam daquilo que sabiam em encontros em boticários e afins. Havia uma grande mudança tanto na medicina, quanto na arte. Ambas as áreas viam-se em período histórico. 

Eu não precisei de muito para lembrar de Frankenstein, romance gótico de Mary Shelley, o qual era considerado como o primeiro livro de ficção científica. E não seria uma junção da arte e da ciência, afinal? Eu só conseguia me comparar, ironicamente, ao próprio experimento que havia dado errado no livro. Genesis Roux havia criado um monstro tal como Victor Frankenstein. Será que ela demoraria para reparar que, na realidade, ela apenas havia feito um retrato de si mesma?

E cadê a dita cuja?

Apertei a mão de Genevieve em expectativa. Havia sido muito inconsciente. A professora continuava em seu percurso de fala, mas naquele instante também chamava os demais professores para contribuírem com o desenvolvimento. Eles completavam seus pensamentos e abordavam novos textos teóricos. Quanto mais a palestra chegava ao fim, mais ansiedade brotava, como se houvesse uma cobra esperando para explodir de algum orifício do meu corpo. 

Eu tinha de organizar minhas perguntas, porque a hora estava chegando. Deveria chamar a atenção de Margot Hitt e seus colegas de trabalho, mas nada de especial ou grandioso surgia para me ajudar. A minha cabeça estava muito nebulosa. Sentia como se, de repente, as paredes daquele auditório estivessem se fechando. Eu estava claustrofóbica. Talvez não conseguisse prosseguir com aquilo. O que eu poderia dizer? Começaria falando, mas gaguejaria a ponto de precisar fugir, antes de vomitar nos meus próprios pés.

Eu não fazia ideia de onde tanto pânico havia brotado. Uma caixa de Pandora estava sendo aberta dentro do meu peito. Sem pedir licença, quase caindo entre as pessoas, levantei-me em agonia e passei naquela fileira cheia de gente esquisita sentada. Genevieve Welch disse algo que não pude ouvir, visto que meus tímpanos davam voltas em uma sinfonia macabra. 

Eu sabia que viriam atrás de mim, mas eu não conseguiria me explicar. Então entrei no primeiro elevador que vi aberto, enquanto sentia o solo se mexer em compasso das minhas pernas. Parecia gelatina. Entrei no cubículo maldito e apertei qualquer botão, impressionada com a quantidade de andares que eu não havia reparado antes. 

O elevador subiu sem destino, enquanto minha pressão o acompanhava.

Eu precisava me acalmar. Não havia explicação para um ataque daqueles. Eu não duvidava das energias negativas, mas meu lado espiritual era menor do que o meu tangível, logo precisava descartar qualquer possibilidade do universo aprontar comigo naquela dimensão. 

Mas, como eu poderia, em qualquer estado, explicá-la?

Genesis Roux, inesperadamente, entrou como um furacão no elevador. Eu estava apertando outro andar qualquer naquele instante, mas travei com minha mão próxima ao painel, sem conseguir trazê-la de volta. A mulher, exatamente como eu havia visto no Showverse, alcançou meus olhos com os seus diabolicamente azuis. 

— Oitavo andar, por favor.

A voz. O sotaque francês impregnado. Lábios carnudos se movendo para formar os morfemas, as palavras. Seus cabelos, pretos como matéria escura de um universo distante, vinham libertos em cima dos seus ombros. Ela era tão bonita e perversa que parecia ter vindo do inferno.

Eu apertei todos os botões sem querer antes de enfiar o indicador no correto. A minha respiração já nem era mais regulada, de forma que não entendia como ainda estava em pé, raciocinando — ainda que de forma ridícula e preocupante.

Lancei meus pés para trás à procura de distância. Ela estava virada para porta, muito indiferente para mim, mas talvez não houvesse captado minha imagem. Algo me dizia que ela sabia exatamente quem eu era, por Deus, mas ela era boa atriz demais para mostrar algo em suas retinas. Em seu rosto atraente e perigoso.

Encostei-me com força na parede e desejei afundar-me dentro dela. Eu podia muito bem ser engolida pelo concreto para não ter de lidar com a enxaqueca latejante que rebolava em toda a minha cabeça. Pisquei umas três, quatro vezes, passando a mão pela face que pingava de suor. Tudo estava em câmera lenta. Eu estava presa. Ela estava me prendendo. Minhas pernas já não encontravam suporte para se manterem firmes, tampouco conseguia me forçar à inércia para não voar no pescoço de Genesis Roux e sufocá-la até a morte, consolidando a justiça que eu procurava.

Abaixei a cabeça e fechei os olhos, pronta para desmaiar ali mesmo, sem distinção. Sacudi os ombros e cocei entre os olhos, apertando a região para me manter consciente. Prendia minha palma sobre o suporte na frente do espelho, a barra de ferro fodidamente gelada, mas segura. Eu não cairia se me mantivesse bem naquela posição. Roux, daquela vez, podia escapar. Eu a alcançaria depois.

— Você está bem? — A rouquidão alcançou meus ouvidos novamente.

Eu queria gritar. Parecia que uma bomba havia explodido a poucos metros de mim. O sino, que se perpetuava no espaço perto de mim, não estava disposto a cessar seu ruído irritante. 

— Não me toque! 

Falei muito de prontidão. Genesis Roux nem mesmo havia quebrado a distância entre nós duas, mas eu já a obrigava ficar exatamente onde estava. Tampouco quis erguer meus olhos e constar o que ela estava pensando, mas eu duvidava que veria algo em seu semblante senão pura maldade.

— Abrace seu corpo. A circulação diminui — Roux falou. 

De acordo com a distância do som da sua voz, sabia que sua cabeça estava voltada para mim, ambos os olhos captando o desespero que me sugava. 

— Eu sou médica.

— Abrace seu corpo.

Se fosse qualquer outra pessoa do bem que visse alguém passando mal, as agitações para ajudá-la seriam evidentes. O tom de voz de Roux, entretanto, assemelhava-se ao deserto de tão seca. Ela não estava nem um pouco preocupada. A situação era irrelevante. Mas, de alguma forma, aquilo me acalmava. Se o meu estado não a havia alertado, partindo da ideia que ela já me conhecia, então eu não era tão importante assim para a escritora multibilionária. 

— Você sabe quem sou eu? — Tive coragem de subir meus olhos para trazê-la em minha visão. A adrenalina me fazia falar, mas não era nada bom aquilo. Eu estava me expondo com a curiosidade, e, caso ela não houvesse me reconhecido antes, agora tomaria nota do meu sobrenome.

— Não — falou, mas seus olhos azuis como ciano dançavam em minha face toda. — Eu deveria saber? 

— Sim. — Sim, porque seu castigo é vitalício, e minhas mãos são feitas de brasa. — Eu me formei na Universidade de Glasgow.

— Você está sangrando — Roux alertou. 

Ela havia me ignorado totalmente, mas a sua deixa me assustara de imediato. Pus a mão sobre o lugar que fazia cócegas, um pouco acima dos lábios, e constei o líquido carmesim escorregando das minhas narinas. A porta do elevador se abriu, e eu, procurando pelo ar, atravessei o espaço e entrei em açoite me aproximando de Genesis Roux. Mas a liberdade era boa demais para não ser aproveitada. Graças ao azar que me acompanhava desde a Fazenda Bewforest, a mulher veio atrás. 

— Aqui — Roux falou de novo.

Eu dei dois passos para trás como se ela fosse me matar. E como poderia? Eu nem precisava erguer a cabeça para notar as câmeras em pontos estratégicos, mas ela era a dona de tudo e o medo persistia. Visualizei com cuidado seus olhos e sobrancelhas crispando-se, enquanto me entregava um lenço amarelo. Devia custar mais do que todo o meu conjunto de roupa. Eu ainda estava com a mão sobre o nariz que continuava pingando sem parar, e apenas por causa do rio vermelho que se formava em minha palma que precisei aceitar o agrado. Deitei minhas narinas molhadas sobre o tecido macio.

— E você sabe quem sou eu? — Roux, na provocativa, imitou-me. Ela realmente não falaria nada sobre a minha formação? Aquilo me fazia querer suspeitar. Tudo para que minhas teorias batessem.

— Genesis Roux — disse. Ela sorriu de canto, um sorriso altamente presunçoso, mas belíssimo. Seus lábios carnudos estavam muito bem desenhados pelo batom vermelho. — Escritora e empresária. Fundadora da Alquimia Roux.

— Você andou estudando. — Seu sorriso intrincado me devorava. 

— Você não sabe quanto.

Genesis Roux praticamente me afundou em sua contemplação e atingiu minha carne utilizando de seus olhos profundos. Eu sabia quando uma pessoa estava desejando salientar outro argumento, mas Roux não se dava ao trabalho, embora seus lábios quisessem se abrir e fechar por singelos milésimos. Ela não era burra para não ter entendido as minhas entrelinhas, mas ela também não estava disposta a entrar naquilo. Ainda.

— Você se formou na Universidade de Glasgow? — perguntou. Seu casaco cinza estava sob um cachecol que combinava com o tom dos seus lábios. Ela se movimentava para ficar de frente a mim. 

— Medicina — repeti. Havia dito que era médica, mas podia ser que ela não acreditara, considerando que não me conhecia. Mas eu penso que sim. — E agora vou ingressar em História. 

Por que eu estava contando tudo aquilo? E por que eu estava, estranhamente, melhor? Ainda sentia umas fisgadas e meu nariz, como um chafariz, liberava diversas gotas de sangue. No entanto, o medo de outrora, toda a ansiedade, haviam desaparecido. Eu não esperava pela sua aparição e o nervosismo nem devia ter tido tempo de aparecer completamente.

Agora era uma conversa amigável. Tornando o inimigo íntimo.

— Você é muito nova para ter se formado em Medicina. E o segundo curso é igualmente interessante.

— Acha que estou mentindo? 

— De forma alguma. Achei curiosíssimo. — Genesis Roux permanecia sorrindo, muito aberta à conversa, diferentemente daquilo que havia pensado. Não era aquele o primeiro contato que eu pensava que teríamos. Ela trocou o peso dos pés. — E qual o seu nome? 

— Madison Bewforest.

E o seu sorriso acabou. Ela não vacilou como seria normal de fazer quando se levava um susto, mas também já não forçava a simpatia. 

Eu sabia que ela me conhecia.


O que esperavam disso? Finalmente o encontro, a troca de palavras delas. Demorou, mas chegou. Roux será um pouco mais presente nos próximos capítulos, e, em breve, muito mais rsrs. Tem que criar o suspense, né?

Quem leu Hello Darkness, pus uma pequena referência nesse capítulo. Quem achar, manda um emoticon hehehehe.

Eu quero opiniões! Digam-me o que estão achando. Não esqueçam de comentar, votar e compartilhar.

Até sexta-feira!



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