vinte e um

— Eu vou morrer — Sally declarou. — Se a gente não parar por dois segundos, eu vou morrer.

Lino estancou na beira da estrada, a testa brilhando de suor. Sally até tentou acompanhar seu passo, mas era difícil andar quando você não conseguia nem respirar. Por isso ela se apoiou nos joelhos e tentou acalmar o ritmo acelerado do coração.

— Se a gente continuar parando assim, nunca vamos chegar lá — Lino disse, mas voltou até lá. — Você tá legal?

O cabelo de Sally estava grudado na nuca, seu cérebro parecia prestes a derreter no asfalto e ela tinha certeza que não estava exalando o melhor dos odores debaixo daquele sol ardente. Mas, ao invés de dizer tudo isso, ela olhou para o garoto que mal conhecia e disse:

— Estou ótima.

A frase era tão carregada de sarcasmo que Lino franziu as sobrancelhas.

— É melhor a gente continuar andando. Mesmo devagar.

— Eu preciso de água.

— Se você não quiser beber a do mar, a nossa melhor opção é a loja de conveniência.

Sally o olhou aborrecida, mas o que podia fazer? Angelino estava certo. Ela precisava continuar.

Ela se endireitou e respirou fundo, então deu um passo de cada vez no acostamento.

— Fico pensando no que os meus amigos diriam se me vissem agora — ela deixou escapar no silêncio que se seguiu. Aquele pensamento, de ser vista naquela situação, a aterrorizava mais do que a possibilidade de morrer desidratada no asfalto.

— Está com medo de ser vista comigo?

Ela ergueu a cabeça depressa para o rapaz ao seu lado. Lino era brincalhão – ela já tinha percebido isso – e mesmo agora tinha um sorriso travesso nos lábios. Mas a pergunta era sincera, Sally podia dizer isso com certeza.

— Você não pode estar falando sério... — ela disse, ácida.

— O quê? É verdade! Aposto que sua turma do Rose e de Malibu nunca esperariam ver Sally Lopez andando com alguém que não fosse do grupo.

— Sério, Lino? Você me acha tão mesquinha assim?

Ela não o conhecia direito e gostava de pensar que não dava a mínima para o que os outros pensavam ou deixavam de pensar dela, mas naquele instante Sally desejou saber a verdade. Desejou que ele a visse de maneira diferente.

— Não, é claro que não! Me desculpa se isso saiu da maneira errada. Mas é só que... — ele hesitou. — Você sabe que se não fosse por toda essa situação com Isla, a gente não andaria junto. Até poucos dias atrás, você nem sabia da minha existência.

Era verdade. Cada palavra dele. Do que adiantava negar?

— Você tá certo — Sally admitiu, olhando para o mar e as gaivotas ao longe. — Eu não andaria com vocês em uma situação normal. E eu sei como isso me faz parecer.

Lino não respondeu, apenas continuou andando ao lado dela.

— As coisas parecem ser bem intensas entre você e o Luke — ele disse então, mudando subitamente de assunto. Sally fechou a cara.

— É. Eu sei.

— Vocês eram namorados?

— Pode-se dizer que sim. — Sally se voltou para ele. — Você ouviu a nossa conversa em Malibu?

— Todo mundo ouviu. Pelo menos alguns pedaços. As janelas estavam abertas. Não dava para evitar.

Sally suspirou, cansada.

— Eu poderia ter feito tudo diferente — admitiu, cedendo aquele pequeno segredo para ele, porque estava com calor, com sede e seus miolos já tinham fritado há bastante tempo.

Lino encolheu os ombros.

— Sabe, se lamentar nunca adianta.

— Como assim?

— Tem um ditado em espanhol que diz: a lo hecho, pecho. Basicamente quer dizer que devemos enfrentar as consequências do que fazemos e seguir em frente. Se nem você consegue se perdoar pelo que aconteceu entre você e o Luke, acha mesmo que ele vai?

Lino parecia tímido, como se não acreditasse que tivesse falado tanto.

Sally, por outro lado, o encarava de boca aberta.

— Você fala espanhol? — ela perguntou. Sim, porque de toda aquela lição de moral, foi aquele detalhe que chamou sua atenção.

Lino brincou com os cachos do cabelo.

— Um monte de gente fala espanhol.

— Mas não como um nativo. — Ela riu. — Você é descendente de mexicanos?

— Não. Minha mãe é espanhola. Minha família se mudou da Europa quando eu era pequeno.

— É mesmo?

— Por que está sorrindo?

— Porque eu sou mexicana.

— Sério?!

Y no eres el único que habla espanol.

Lino olhou para ela com tanta surpresa que Sally riu.

— O que foi?

— Como eu nunca soube disso?!

Sally deu de ombros. Seu sorriso desmanchou um pouco.

— Meu pai era imigrante. Ele não gosta de falar sobre suas origens. Acho que ele era bem... simples, antes de conhecer a minha mãe. Ela nasceu em berço de ouro e meu pai precisou suar muito para dar certo na vida e ganhar a aprovação dos meus avós para casar com ela.

— Nossa, parece história de filme.

— Eu sei. É romântico, até. Tirando a parte de que a única coisa que meu pai parece se importar desde o dia em que eu nasci é se passar por mais americano possível. Além do dinheiro, é claro, e do bom nome na Ilha da Rocha.

Sally não pretendia soar tão amarga, mas foi impossível evitar. Ali, numa rodovia, sozinha com um garoto que não fazia parte do seu ciclo de amizades e que ela não precisava se preocupar em impressionar, as coisas saiam bem mais fácil de dentro dela.

— Parece uma droga, Sally — Lino disse, e ela olhou para o menino ao seu lado, a pele negra reluzindo, os olhos castanhos grandes e brilhantes muito mais verdadeiros do que os dela podiam um dia sonhar em ser. — Eu não sabia que era assim. Não fazia nem ideia.

Sally deu de ombros outra vez, desviando o rosto depressa.

— Bem, o dinheiro é legal. A popularidade também. Não vou mentir e dizer que não gosto dessas coisas.

— Tudo bem.

— E eu tenho orgulho de ser parte mexicana, por mais que não fale muito sobre isso. Insisti que meu pai me ensinasse espanhol e sei bastante sobre o México.

— E sobre a Espanha?

Sally olhou para Lino com um sorrisinho mordaz.

— Colonizadores filhos da mãe.

Lino gargalhou. Ela riu também, riu tanto de toda aquela situação ridícula que cambaleou pelo acostamento.

— Olha, Sally, acho que chegamos!

Lino apontou para a loja de conveniência aninhada entre as montanhas. Era como um oásis. Uma miragem no meio do deserto.

— Ah, Deus, só pode ser um sonho.

Eles correram como loucos até lá. Sally estava prestes a se lançar pelas portas abertas quando sentiu Lino segurar sua mão.

— Talvez você devesse entrar sozinha — ele disse baixinho, enxugando o suor da testa com o antebraço. — Toma, pega o dinheiro. Eu espero aqui fora.

— Mas lá dentro deve ter ar condicionado!

— Sally...

Ela não estava entendendo. Por que ele não queria entrar com ela?

— Lino, tá fazendo sei lá quantos graus aqui fora.

— Sally, olha para mim. Tô suado e pareço ter corrido duas milhas para chegar até aqui.

— E o que tem? Eu também não estou com a minha melhor aparência. Sou muito mais bonita que isso. Além do mais, a gente não conhece ninguém aqui.

— É diferente. Você não tá entendendo.

— Não tô mesmo.

Lino lançou para ela um olhar desesperado, como se implorasse para que ela não o obrigasse a explicar. Então Sally entendeu. Pelo receio nos olhos dele, pelo olhar desconfiado do casal de meia idade bebendo milk-shakes em um banquinho do lado de fora da loja, pela expressão atenta do balconista de uns cinquenta anos que observava Lino parado do lado de fora da loja, a mão a centímetros do telefone fixo.

Pela primeira vez, Sally levou um soco de realidade bem no meio do estômago.

Ela olhou para a mão dele segundo a dela.

Sim, Sally estava parecendo uma louca mal arrumada que andara por horas para chegar até ali, assim como Lino. Mas as pessoas não a olhavam como se ela estivesse prestes a tentar furtar uma lojinha de beira de estrada. Não a olhavam desse jeito porque ela era branca.

Lino percebeu o olhar de Sally para as mãos deles e fez menção de soltá-la, mas Sally segurou com mais força.

Ela jogou a cabeça um pouco para trás para olhar bem nos olhos de Lino, através da lente dos óculos e dos cachos abundantes que caíam sobre sua testa. Quando falou, sua voz era firme, mostrando toda a confiança que ela sempre esbanjava por ali.

— Se alguém disser algo, se alguém insinuar algo, eu faço o maior barraco que o estado da Califórnia já viu. Eu chamo minha família e a ótima equipe de advogados do meu pai. Então esse lugar vai fechar antes do sol se pôr. Entendeu?

Lino a olhou sem piscar.

— Sabe, não é assim que a maioria das coisas funcionam.

— É assim que as coisas funcionam comigo.

E, sem esperar por uma resposta, Sally o puxou para dentro da loja de conveniência.

Enquanto eles andavam pelas prateleiras, o balconista branco que usava uma peruca torta não tirava os olhos deles. Dele na verdade.

Sally pegou garrafas d'água, uma braçada de doces e porcarias. Lino também se divertiu, pegando balas, biscoitos e salgadinhos das prateleiras. Eles despejaram tudo no balcão com sorrisos enormes.

O atendente, que também parecia ser dono do lugar ao julgar pela foto desbotada em que ele aparecia cortando uma fita vermelha de inauguração pendurada na parede, olhou para eles com o nariz franzido.

— Algum problema? — Sally soltou, irritada.

— Espero que vocês tenham como pagar por isso.

— Não, na verdade, a gente estava pensando em assaltar — ela disse, cheia de sarcasmo e ódio borbulhante. Então pegou sua bolsinha onde tinha a carteira e jogou uma nota de cinquenta na pilha de produtos. — Pode ficar com o troco.

— A minha amiga está estressada hoje, senhor — Lino tentou intervir, educado.

— E eu falei com você, garoto?

Sally se adiantou para mais perto, mas foi impedida pelo aperto de Lino em seu pulso. O homem lançou um olhar de desprezo para os dois, mas começou a colocar tudo em sacolas.

Quando terminou, ergueu a nota contra a luz bem na frente deles.

Sally perdeu a paciência de vez.

— Pode ter certeza que a nota não é mais falsa do que esse seu cabelo — ela disse. — Dá próxima vez que for usar uma peruca, senhor, pelo menos se certifique de que ela não está caindo para um lado.

— Sua...

Mas Sally mostrou o dedo do meio para ele, pegou na mão de Lino e saiu com a cabeça erguida.

Eles conseguiram manter a pose até chegarem na rodovia, mas então, como em um acordo tácito, Sally e Lino olharam um para o outro e riram tanto que caíram sentados no asfalto.

— Você é doida! — Lino exclamou, tirando os óculos para enxugar os olhos. — Já pensou se aquele cara faz alguma coisa?

— Ele que tentasse! Além do mais, você dá dois dele. Tenho certeza que me defenderia.

— E você é o tipo de garota que precisa de proteção?

— Nem pensar.

E eles riram mais. Riram e riram e depois se forçaram a levantar e continuar andando. Lino e Sally conversaram sem parar durante todo o caminho de volta para Mônica.

Dean estava escorado na janela da Kombi. Ele encarava a rodovia sem nem piscar enquanto batucava o volante do carro.

Zack podia ignorá-lo. Podia mesmo, se os seus malditos fones sem fio não estivessem sem bateria.

Às vezes ele odiava a modernidade. E também odiava a si mesmo por ter trocado os confortáveis fones antigos por aqueles aparelhinhos que só funcionavam por uma hora e meia longe do carregador. Carregador esse que ele tinha deixado na casa de Luke em Malibu.

Mas ele podia segurar a língua. Podia aguentar firme.

Tum-tum. Tum-tum. Tum-tum.

Dean continuava batucando o volante. O calor infernal fazia com que ele quisesse tirar a jaqueta jeans. Estava suando. Estava com sede. Quanto tempo mais demoraria para Luke e Isla voltarem com a gasolina?

Tum-tum. Tum-tum. Tum-tum.

— Dá para você parar?! — Zack explodiu.

— Se está incomodado, desce do carro — Dean rebateu na mesma hora, como se estivesse esperando há séculos para ele falar alguma coisa. — Aproveita e dá um passeio pela praia. Às vezes você chega até Malibu a nado.

— Não adianta ficar puto. Foi você que não lembrou de checar a gasolina.

— Se a porra do carro é meu, eu posso fazer o que eu quiser. Cala a boca.

— Qual é o seu problema? — Zack se virou para Dean, com tanta raiva que sentiu o calor subir pelo pescoço. — Tá agindo como um idiota. Quer dizer, mais do que o normal.

— Você me irrita, Turner.

— Eu sei. Você me odeia desde o dia que eu apareci naquela droga de cidade. Por quê?

Dean parecia ter um milhão de respostas na ponta da língua, mas na hora de soltar tudo, não conseguiu. Porra, não conseguiu.

Ele voltou a olhar para a estrada, o corpo inteiro vibrando com sentimentos que faziam tudo ondular a sua volta. Era melhor ficar em silêncio. Era melhor ignorar a presença dele antes que...

— Eu vi você — Dean disse, acompanhando o movimento dos carros da rodovia, das ondas quebrando na praia, nas nuvens que se mexiam devagar... Tudo, menos no garoto sentado no banco perto do seu. — No píer. Eu vi você.

Dean não estava olhando, mas percebeu o movimento pelo canto do olho quando Zack se endireitou.

— Me viu? — ele disse baixinho, a voz sibilando. — Me viu fazendo o quê, exatamente?

O rosto inteiro de Dean queimou. Ele viu seu reflexo no espelho retrovisor, a coloração escarlate ainda mais visível nas orelhas.

— Você sabe — ele disse, odiando que Zack o forçasse a falar. — Te vi com aquele menino.

— E o que que tem?

Dean olhou para Zack. Zack estava tentando ser durão, tentando não ceder à vontade de se afastar e se esconder. Ele encarou os olhos verdes de Dean como se não tivesse nada a perder, como se não temesse nada na Terra inteira. A raiva queimava dentro de si.

— E agora? — Zack disse, em um dos raros momentos em que deixava aquele sentimento sair, se transformar em palavras. — Do que você vai me chamar? Bicha? Viadinho?

— Eu não...

— Não esquenta, não é como se eu não tivesse escutado a mesma coisa um monte de vezes. Mas se quiser ser original, vai ter que se esforçar. Bicha e viado, já tá batido.

— Para com isso. — Dean tinha se virado para ele agora, a postura de indiferença se desfazendo. — Para de... se chamar assim.

Zack revirou os olhos.

— Do que adianta? É como a maioria das pessoas me vê mesmo.

— Eu não. Aposto que nem Luke.

— De todo jeito, por que você se importa?

Dean não respondeu. Claro que não.

Zack deixou o cabelo comprido esconder o rosto quando ele se virou para ir para os fundos da Kombi. A vergonha queimava seu corpo inteiro.

Por que ele tinha beijado aquele menino no píer? Ele nunca se sentira seguro o suficiente para se mostrar daquele jeito em público, mas naquele dia quisera tanto se provar. Queria ser ousado e confiante, queria aproveitar o fato de estar longe dos pais e do colégio para ser ele mesmo.

Ele sabia que Dean estava assistindo. Soubera o tempo todo. E fizera mesmo assim. Porque queria que ele visse.

Seus pensamentos estavam em turbilhão. E estava calor demais. Demais.

Talvez devesse sair da Kombi. Porque não conseguia respirar e suas roupas grudavam no corpo. A jaqueta parecia uma camisa de força.

Os fundos da Kombi perdeu o foco, o carro pareceu tombar para o lado.

— Turner?

Zack tentou se agarrar ao banco, mas não conseguiu. Só precisava se sentar por um minuto.

— Zack!

Dean o segurou pelos ombros e o virou para ele. Zack viu seus olhos verdes, o cabelo loiro.

— Você tá suando pra caralho. E tá branco que nem um fantasma.

Dean o fez sentar em um dos bancos e correu para abrir mais as janelas. Revirou a Kombi de cabeça para baixo até achar uma garrafa de água pela metade. Estava quente, mas era o melhor que tinha.

— Bebe isso.

Zack bebeu. Maldito calor da Califórnia. O Alasca era melhor. Era solitário e triste, mas pelo menos possuía um clima decente.

Dean estava xingando, mas Zack estava tonto demais para prestar atenção nas palavras.

— Você é doido de usar essa coisa. Anda, tira isso.

Zack não protestou quando Dean arrancou sua jaqueta. A blusa azul por baixo estava grudada de suor.

— Isso também.

Dean começou a puxar a barra da blusa.

— Não!

Zack voltou à realidade de súbito, se afastando com urgência das mãos de Dean.

— Turner, fica quieto. Acho que a sua pressão caiu. Você precisa se refrescar.

— Dean...

Mas Zack estava fraco demais para protestar, e Dean, como era de se esperar, nunca perdia uma discussão. Ele ajudou Zack a despir a camisa e a jogou no outro banco. Ele parecia prestes a procurar mais alguma coisa para ajudar quando seus olhos foram atraídos para o corpo de Zack.

Para as marcas nele.

Havia pequenas queimaduras pelo tronco e na parte superior dos braços. E hematomas. Hematomas grandes e desbotados que não estavam ali por tempo suficiente para desaparecer por completo.

— Zack, o que...

Mas ele empurrou Dean pelos ombros, tentando se afastar e se cobrir ao mesmo tempo.

Mas Dean era maior e mais forte. Ele segurou um dos pulsos de Zack para que ficasse quieto. Os olhos dos dois se encontraram.

— O que é isso? — Dean perguntou baixinho.

Os olhos de Zack queimavam de ódio e mágoa. Mas ele não se escondeu quando disse:

— Meu pai.

Dean engoliu em seco, os olhos passeando pelas queimaduras e machucados.

— Seu pai fez isso com você?

Zack se desvencilhou, colocou a cabeça para fora da Kombi e tentou respirar.

— O bom e velho papai não gosta nada de ter um filho gay. Acontece.

Dean cerrou o maxilar, as mãos se fechando em punhos.

— Essas queimaduras...

— Cigarro — Zack explicou, a voz indiferente. Era como se ele estivesse longe demais dali. — Meu pai fuma. E, quando está com raiva, quando não finjo ser a porra de um filho normal e bem comportado, ele explode. Era pior antigamente. Mais um pouco e eu vou ser mais forte que ele.

Dean passou os olhos pelas marcas roxas. Eram muitas, e se não fosse pelo óbvio aspecto de carne queimada e cicatrizada, poderia se passar por picadas de mosquito. Os hematomas eram mais óbvios, espalhados por todo o peito e costas. O verão tinha começado há pouco tempo, o que queria dizer que ele não estava longe de casa por tempo o suficiente para as marcas desaparecerem.

— As queimaduras vão ficar, mas os hematomas vão sumir até o fim do verão. — Zack disse quando olhou para Dean e viu que ele o analisava.

— E depois?

— Eu vou sair de casa. Já decidi tudo. Sou maior de idade e vou tentar me virar longe deles.

Era como se um peso invisível tivesse caído no estômago de Dean. Ele não conseguia pensar direito, não conseguia raciocinar...

Zack se levantou e tentou pegar a blusa, mas Dean o impediu.

— Não. Você não precisa mais esconder. Não aqui.

Zack abriu um sorriso sarcástico.

— Não é nada confortável ficar sem camisa perto de você.

— Por que não?

— Sei lá, só é estranho.

Zack passou a camisa pela cabeça e se sentou no banco de novo. Fisicamente ele parecia um pouco melhor, pelo menos.

— Seu pai é um babaca — Dean declarou quando os dois ficaram em silêncio por um longo tempo.

— Eu sei.

— Ele merecia apanhar. Apanha para caralho.

— E do que isso adiantaria?

— Eu não sei. Mas eu me sentiria melhor dando uma surra nele.

— Pelo amor de Deus. Eu não quero que você me defenda.

— Cala a boca, Turner. Você não tem que querer nada.

Ele soltou uma risada abafada, como se aquilo tudo fosse ridículo.

— Zack?

— O que foi?

— Não faz diferença nenhuma — ele disse baixinho, porque precisava deixar aquilo claro. — Você ser... Você sabe.

Zack revirou os olhos, mas estava sorrindo de leve.

— Vai matar se você disser a palavra?

— Você é insuportável mesmo, hein? Puta merda. — Dean o empurrou para o lado. Zack riu. — Não faz diferença você ser gay. Algumas pessoas são idiotas e outras são monstros, como o seu pai. Mas elas não entendem. Não entendem que não faz diferença.

Dean não era bom com palavras. Nunca tinha sido. Mas lá estava ele, precisando desesperadamente delas. Queria dizer a coisa certa. Queria pegar aquela Kombi, dirigir para Los Angeles e quebrar a maldita cara do homem que tinha feito Zack se acostumar com a dor a ponto de falar sobre aquelas coisas horríveis como se tivessem acontecido com outra pessoa.

— Não parecia que não fazia diferença para você — ele disse de repente, chamando a atenção de Dean. — Você ficou puto depois que beijei aquele garoto.

— Não fiquei, não. Eu só... — Dean mordeu o interior da bochecha, esfregou os tênis no chão da Kombi e olhou para o teto. — Eu só estava surpreso, só isso. Me... desculpa se fui um babaca.

O queixo de Zack caiu.

— Espera um pouco, você acaba de pedir desculpas por ser um babaca? Por favor, repete.

— Não força a barra, Turner.

— Não, é sério. Eu tenho que gravar isso. Se contar para os outros, ninguém vai acreditar.

— Conta e eu quebro a sua cara.

— O que foi? Está com medo de as pessoas pensarem que você tem algo parecido com um coração?

— Quantas vezes vou precisar falar para você calar a boca?

Zack riu. Dean também, depois de uma série de outras implicâncias.

— A gente ainda se odeia, só para deixar claro — Dean disse depois de um tempo.

— Claro. Eu te detesto. Isso não vai mudar agora.

— Não mesmo.

— Ótimo.

— Perfeito.

Eles se sentaram em lados opostos da Kombi. Mas continuaram conversando. E continuaram sorrindo.


— Prontinho — Luke disse depois de encher o segundo galão de gasolina. Isla estava sentada em um banquinho alto ali por perto, balançando as pernas no ar. — Isso vai dar para encher o tanque.

Luke usou a barra da camisa para enxugar o rosto suado, deixando exposta uma parte do abdômen. Isla sentiu a boca seca ao ver os músculos bem definidos. Ele malhava. É claro que malhava...

— O que foi? — ele perguntou com um sorriso quando a pegou olhando. Isla sentiu as bochechas arderem, mas falou mesmo assim:

— Luke Mosheyev tem um tanquinho. Impressionante.

Ele riu e puxou a camisa de volta.

— E você estava olhando?

— Só de relance. — Isla pulou do banco, querendo ser ousada e confiante, mas falhando miseravelmente. — Quem pratica surfe precisa fazer muitos exercícios?

— Se você quiser dar o seu melhor na água, sim. — Luke colocou a bomba de gasolina de volta no lugar e arrolhou os galões. — Mas não são só treinos para ganhar massa muscular. Em Los Angeles, eu consegui contratar um treinador especializado às escondidas e fugia para a academia quatro vezes por semana. No surfe, você precisa de equilíbrio, flexibilidade, força e um bom controle da respiração.

— Você é mesmo apaixonado por isso, não é?

— Você pode usar a palavra obcecado. Não tem problema.

— Sabe, eu comecei a assistir o campeonato mundial de surfe. Por sua causa.

Os olhos de Luke brilharam.

— E você está gostando?

— Sim. Principalmente porque a maioria dos atletas no topo do ranking são brasileiros. A gente tá dando uma surra nos outros países.

Luke riu e ergueu as mãos na frente do corpo.

— Não vou te contradizer. Os brasileiros são bons mesmo no surfe. A maioria dos meus ídolos no esporte são do Brasil.

— Acho que vou entrar em um dilema quando você começar a competir na World Surf League... Quer dizer, devo torcer para os meus conterrâneos ou para meu ex-namorado de mentira?

— Para o ex-namorado de mentira. Sempre.

Eles riram e Isla pegou um dos galões de gasolina enquanto Luke pegava o outro. Ele tentou tirar o dela da sua mão, mas Isla deu um tapinha no seu pulso e se afastou rindo pelo acostamento, de volta para a Kombi.

— Você vai estar lá, não vai? — Luke perguntou enquanto eles caminhavam devagar. Tinha tentado pedir carona na rodovia, mas todos os carros passavam rápido demais, e aqueles que os viam não pareciam querer ajudar dois adolescentes mal arrumados.

— Lá onde?

— Na final do campeonato, em Huntington Beach.

— Eu vou — Isla prometeu. — E vou usar uma faixa escrito Luke na testa.

Ele riu.

— O campeonato vai ser televisionado, sabe? Fico imaginando o que meus pais vão dizer quando descobrirem...

— Essa coisa do surfe não é negociável mesmo entre vocês?

O semblante de Luke mudou, ficando mais fechado de repente.

— Acho que é tão negociável quanto a sua vontade de sair da ilha para o seu pai.

Isla encarou o asfalto, o sol quente queimando a nuca.

— Minha mãe não gostaria disso. Não gostaria que eu vivesse presa.

— Minha avó também não.

Eles se entreolharam. E se entenderam. Os dois tinham perdido pessoas que achavam que, se estivessem ali, os entenderiam e apoiariam.

— O que você vai fazer quando cumprir a lista da sua mãe? — Luke perguntou. — Quando o verão terminar?

Isla encolheu os ombros.

— Trabalhar na floricultura, talvez. Estudar para ser aceita na faculdade da ilha e ser professora de alguma coisa como as minhas outras irmãs. Talvez eu adote um cachorro. Daqui uns anos, posso comprar um barco para navegar por perto. Nunca ir muito longe.

Luke olhou para ela.

— Isso é o que o seu pai gostaria que você fizesse, não é? Não o que você quer.

— Não — Isla admitiu, triste. — Não mesmo. — Ela suspirou. — Quero sair por aí. Ser uma dessas pessoas viajantes que compartilha a vida na Internet. Eu amo fotografia. Seria legal trabalhar com isso e ganhar dinheiro com essa ideia de alguma forma. Eu não preciso de muito. Só quero ser... livre.

O coração dela bateu acelerado quando Luke pegou sua mão. Isla parou no acostamento, os carros zunindo pela rodovia. Luke estava de costas para o mar, o sol brilhante fazendo com que ele se tornasse uma silhueta contornada pelo oceano.

— Um surfista viaja o tempo inteiro. Nunca fica parado muito tempo em um lugar só, principalmente durante os campeonatos. Mas um atleta que quer ser notado precisa de um portfólio legal. Se você investir nessa coisa de fotografia, se eu me mostrar ser bom o suficiente, quem sabe...

— Esse parece um daqueles sonhos de meninas, que querem crescer e dividir um apartamento dos sonhos na cidade grande. Parece possível, mas não é.

A verdade doía, mas Isla já tinha dezoito anos. Sabia que raramente a vida segue os nossos planos.

E aquela ideia de Luke... Era um sonho. Um sonho lindo e inalcançável demais.

— Nada é impossível para nós, Isla da Ilha — Luke sussurrou. Eles estavam mais perto, a mão dele em seu pulso fazendo disparar uma descarga elétrica pelo corpo dela. — A gente pode fazer isso se quiser.

Ela baixou os olhos, os cílios tocando as maçãs do rosto.

— Você tem uma cicatriz pequena, bem aqui — disse, porque cada detalhe do rosto dele estava perto demais para não ser notada. Ou tocada. Isla deslizou o dedo pela marca quase invisível na bochecha. — Como conseguiu essa?

— Tentei libertar um passarinho da gaiola quando era pequeno. Era de um vizinho da minha avó em Malibu. Eu vi o homem colocá-lo lá dentro, provavelmente depois de conseguir capturar. O passarinho não cantava e às vezes se jogava desesperado contra as grades. Eu tinha nove anos. Me esgueirei pelo jardim da frente, peguei um banco e fiquei na ponta dos pés. Consegui abrir a porta por um triz. O passarinho saiu voando, mas eu me desequilibrei. — Luke abriu um sorrisinho. — Tentei me segurar na gaiola pendurada, mas ela se soltou e o ferro bateu com tudo no meu rosto quando caí. Levei alguns pontos.

— Meu Deus, Luke... — Ela passou o dedão pela marca. — Você foi corajoso. E ganhou uma marquinha por fazer a coisa certa.

— Essa foi a primeira — ele disse.

— Primeira o quê?

— Cicatriz.

— E quantas você tem?

— Três.

Isla pensou na cicatriz na nuca e naquela pequena na bochecha. Faltava uma, mas ela não perguntou sobre ela.

Isla não tinha se dado conta de que os dois estavam tão perto. Ela deslizou a mão pelo rosto de Luke até soltar, e sua respiração ficou presa na garganta quando ele tocou o rosto dela de volta.

— Você tem mesmo muitas sardas.

Isla ficou vermelha e riu.

— Valeu.

— Mas são lindas. Você sabe que são.

— Não quando estão espalhadas pelo seu rosto inteiro como se tivesse catapora.

— Não é nem um pouco como catapora.

Ela só podia estar imaginando coisas. Não podia ser verdade que as pupilas dele tinham se dilatado. Não era verdade que ele continuava acariciando de leve seu rosto e que seu olhar tinha ido dos seus olhos para a sua boca.

A mão suada de Isla escorregou do galão de gasolina. Seu corpo inteiro ardeu.

— Isla... — a voz dele estava rouca, sua respiração se misturou com a dela. — E se...

Ela se afastou bruscamente, sem esperar para ouvir o resto da frase.

— A gente devia andar mais depressa — ela disse, prendendo uma mecha do cabelo atrás da orelha e desviando o olhar. — Os outros já devem estar esperando.

Se ficou confuso com a reação dela, Luke pareceu fazer o possível para não demonstrar. Ele assentiu e sorriu de leve.

— Claro. É melhor a gente ir.

Eles continuaram conversando pelo caminho, mas não sobre coisas intensas como o futuro, a vida e as marcas nos rostos de cada um...

Isla se sentia fraca, trêmula, e era quase impossível disfarçar. O momento não passou de um delírio para os dois, e tanto ela quanto Luke tentaram parar de pensar no quanto queriam que aquela pouca distância entre eles tivesse sumido.

Porque aquilo era loucura.

Só podia ser.

______________________❤️__________________

Dedicado à garotaafanfiqueiraa

Oii, gente!!!
Como vocês estão??

Eu estou louca pra saber o que acharam desse capítulo! Eu amei escrever e foi bem legal me aprofundar um pouco mais na história desses personagens!
Me contem, qual das três partes vocês gostaram mais???

Vejo vocês em breve,
Ceci.

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