Capítulo VI
Um rapaz chamado Cardo
@Montezuma3691
Cardo contemplava o Sol alto. Naquele canto solitário, as abelhas saltitavam entre as flores silvestres, que beiravam o caminho de cimento pouco frequentado e com pequenos pedaços soltos, marcas da falta de manutenção da zona. Os arbustos cresciam selvagemente, misturados com cardos em flor. Que planta resistente, que até na seca florescia! No meio das ervas desidratadas, com uma tonalidade dourada, Cardo sempre vira a espinhosa do seu nome surgir entre a adversidade e a dificuldade. Caule grande, culminando numa fascinante flor roxa, era assim a planta com a qual o haviam denominado. Certa era a relação de semelhança entre o ser não-humano e o rapaz sentado numa cadeira de rodas, castigado por uma doença qualquer que se mantivera brilhantemente camuflada durante longos anos da infância.
Cardo fechou os olhos, deliciando-se com a fresca brisa que, de vez em quando, tocava o seu rosto, balanceando o típico calor do fim da Primavera. Ao fundo, ouvia-se um escasso ruído das risadas e dos guinchos dos miúdos mais novos, que se mesclava com o burburinho das conversas dos adolescentes. O rapaz, distante de tudo, contentava-se com a segurança, o sossego, a calma e o conforto que aquele espaço lhe oferecia. Enquanto discussões agitadas se levantavam entre os seus colegas, motivadas por namoros e batatas fritas, Cardo desfrutava do canto dos pássaros, do zunir dos abelhões e do cantar dos gafanhotos.
Perturbando o harmonioso equilíbrio da Natureza, uma figura felpuda avançava por entre a erva alta, com as suas patas pesadas. De cauda a abanar e língua de fora, o animal aproximou-se do adolescente, desatando a lamber-lhe as palmas das mãos.
- Carvão! - Exclamou o rapaz, dando uma festa na cabeça do grande Labrador de reluzente pelagem negra.
Os olhos cor-de-chocolate do cãozinho enchiam-se de ternura. Apoiou levemente o queixo no joelho do menino, cujo coração irradiava carinho pelo bichinho.
Permaneceram assim durante alguns instantes, até que uma segunda figura avançou misteriosamente por entre os arbustos.
- O que foi isto? - Cardo estava confuso com os sons de pisadas nas ervas. Se o seu cão estava ali, quem seria? Talvez fosse um pássaro ou algum outro animal que corria assustado. Mas os passos eram demasiado pesados e profundos para o silencioso saltitar de uma ave passeriforme.
O Retriever mantinha uma postura alerta, com o focinho apontado na direção do estranho barulho. Uma das patas estava ligeiramente levantada, as orelhas desencostadas da cabeça, o corpo hirto e o olhar atento e protetor.
Subitamente, de detrás das herbáceas, apareceu uma rapariga com um telemóvel e uma tesoura na mão. Nas costas, levava uma mochila que não aparentava estar muito pesada.
- Ah! Cardo! Cardo, sim, Cardo, acho que é assim o teu nome. O que estás aqui a fazer? - Quis saber a intrusa.
- E tu, o que estás aqui a fazer, com uma tesoura na mão? E sim, o meu nome é Cardo.
- Eu? Vim fazer uma recolha fotográfica de espécies vegetais para o projeto do Clube Ambiental.
- Isso não explica a tesoura...
- A tesoura? É para cortar algumas partes das plantas encontradas para construir um herbário. Sabes, nós secamos as flores e as folhas, legendamos, e depois pedimos ao Clube de Informática - não, espera, acho que é ao Clube de Multimédia - que digitalize as páginas do herbário para criarmos um site interativo. Acho que aqui é que pedimos ajuda ao Clube de Informática... Ei, de onde é que essa coisinha fofa saiu? - Perguntou a menina, reparando finalmente no cão de grande porte.
- Não sei, deve ser daí, possivelmente conseguiu saltar a vedação. Agora tenho de ir. - Declarou o rapaz, movendo as rodas da cadeira para o caminho de cimento degradado que seguia para os edifícios da escola.
Vendo-se seguido pelo canídeo, ordenou:
- Vai para casa, Carvão! Vai para casa!
No entanto, estas exclamações não escaparam à rapariga de longos cabelos negros encaracolados e de pele de uma bonita tonalidade escura.
- Como é que sabes o nome dele?
Cardo ficou incomodado com a interrogação da miúda.
- Já apanhaste as flores todas que precisavas, não já?
- Não respondeste à minha pergunta.
- Olha, Acácia, eu sei que animais são proibidos dentro da escola, mas o Carvão faz-me muita companhia nas horas de almoço. - O rosto do rapaz exibia uma expressão de preocupação e de aflição.
- Então, ele é teu? Anda cá, coisinha gira! - Chamou a menina, acariciando meigamente o cão.
- É. Eu moro aqui perto, lá em baixo, naquelas vivendas. - Disse Cardo, apontando para um complexo habitacional. - A minha mãe costuma ir almoçar a casa e deixar o portão aberto, para depois poder sair logo com o carro. O Carvão aproveita e vem ter comigo.
- E como é que ele entra na escola?
- Há ali uma fresta no gradeamento, por onde ele passa. Entretanto, já a alargou com o uso.
- Fazes companhia ao Cardo na hora de almoço, é, pequenino? - Acácia falava carinhosamente para o Labrador.
- Ele tem sido uma grande ajuda para mim, desde que a doença se manifestou. Foi uma médica da clínica que mo ofereceu. Uma amiga dela que treina cães de assistência tinha recolhido uma ninhada de cachorrinhos que encontrara numa caixa de cartão ao lado de um caixote do lixo. Tratou de arranjar donos para os cãezinhos, mas reparou que havia um cachorro que mostrava uma grande capacidade de obediência e que aprendia muito depressa. Esse cachorro viria a ser o Carvão. Os irmãos foram adotados e ele ficou para ser treinado como cão de apoio.
Ao saber da minha condição degenerativa e do enorme desgaste psicológico que a doença me causou, essa senhora decidiu entregar-me o Carvão. E a verdade é que ele tem sido um grande suporte emocional para mim.
- Então, passas sempre as tuas horas livres aqui, com o Carvão?
- Geralmente sim. Só quando chove muito é que fico lá dentro.
- E já almoçaste?
- Não, não tenho fome. - Respondeu o rapaz.
Instantaneamente, Acácia pousou a mochila no chão e abriu-a, tirando um delicioso pão com fiambre, com um toque de farinha na côdea.
- Toma. Era para o meu lanche, mas depois eu compro qualquer coisa no bar.
- Não, deixa estar. Não me apetece.
- Toma. Tens de comer. - Insistiu a rapariga.
Ao ver a sandes, o Retriever começou a lamber os beiços. Sentou-se, de cauda a abanar e com um ar suplicante, emitindo pequenos ganidos.
- Se não comeres, acho que o Carvão aceita ficar com o fiambre.
Quase que por obrigação, o adolescente deu uma dentada no pão que a colega lhe oferecia.
- Como tem sido a tua adaptação? Estás a gostar disto aqui? Não sentes saudades da tua terra-natal? - Interrogou Cardo, tentando meter conversa com a aluna africana.
- O clima é um pouco diferente, não é tão quente nem tão seco. Mas todos me têm aceitado muito bem e são muito simpáticos. Inclusive, a Papoila, delegada da nossa turma, convidou-me para fazer um discurso sobre "inclusão" nas comemorações do final do ano letivo, onde eu falarei da minha integração e da minha experiência num país diferente.
- Que bom! - Felicitou o miúdo.
Porém, havia nos olhos do rapaz um certo desalento. A sua expressão era de frustração e de desânimo, apesar da alegria que demonstrava pelo convite que a miúda havia recebido.
- O que foi, Cardo? Está tudo bem?
- Sim, não se passa nada. - Apressou-se a dizer o dono do cão que, com as orelhas arrebitadas, escutava atentamente a conversa dos jovens.
- Passa-se alguma coisa sim. Disso tenho a certeza. Não te vai fazer melhor guardar só para ti.
- É por causa das comemorações do final do ano. - Começou lentamente o adolescente.
- Sim...? - A rapariga incentivava-o a continuar.
- Vão decorrer torneios para angariar fundos para a viagem de finalistas.
- Claro, no Dia da Prática Desportiva! Vai ser muito giro, com todas aquelas modalidades e o elevado nível competitivo que as equipas da nossa escola têm. - A menina sonhava com o evento tão ansiado pelos alunos do nono ano. - Mas qual é o problema?
- É que eu não vou poder participar.
- Mas porquê? Não estavas inscrito no Boccia?
- O Antúrio e o irmão dele eram os meus colegas de equipa. Há cerca de um mês, eles mudaram-se e foram transferidos para outra escola. - Explicou, tristemente, o menino.
- Olha, Cardo, este é o nosso último ano nesta escola. Além disso, no próximo Setembro, cada um vai seguir o seu rumo e estar num curso diferente, para cumprir os seus sonhos. Nunca mais estaremos juntos enquanto turma. Por isso, tu vais-me prometer que não te deixarás afetar por essa negatividade, está bem?
- Mas toda a gente vai participar nos torneios menos eu. - Lamentou-se o rapaz.
- Quem te disse que não vais participar? Acabaste de encontrar alguém disposto a substituir os antigos elementos da tua equipa.
- A sério? Jogas Boccia comigo no Dia da Prática Desportiva?
- É claro! Sempre achei o Boccia um desporto engraçado e esta é a minha oportunidade de experimentar e, ao mesmo tempo, ajudar um colega. E de certeza que me lembrarei de mais alguém interessado para completar a equipa.
- Muito obrigado, Acácia!
Os dois adolescentes conversaram animadamente sobre tudo, enquanto Carvão abanava a cauda e lambia os dois humanos, feliz por ver o seu dono a interagir com uma rapariga da sua idade. Os colegas falaram sobre a escola, partilharam planos para o futuro, comentaram filmes e séries... Enfim, o falatório habitual de dois jovens num momento de socialização.
- Bem, é melhor ir andando para a sala. - Declarou Cardo, verificando as horas no seu telemóvel.
- Mas já? Ainda falta um bom bocado para o toque. - Espantou-se a menina.
- É que o edifício não tem elevador e eu demoro muito a subir as escadas. Quando a doença piorar, vou mesmo ser incapaz de as subir.
- Mas que absurdo! Como é que é possível não haver um elevador?
- Também acho estranho, mas a verdade pura e crua é essa. Os meus pais já falaram com a direção. Dizem que estão à espera de financiamento por parte de alguma empresa generosa, para acelerar o processo. São coisas que demoram tempo. - Tentou explicar o miúdo.
- Isto não pode ficar assim! - A rapariga mostrava-se descontente. - Vou falar da urgência em equipar a escola com elevadores no meu discurso, à frente de toda aquela gente importante. Isso é certo! Os edifícios têm de ter elevador!
- Não é necessário, Acácia. Para o ano já não vou estar nesta escola.
- Ai é necessário é! Então e os que virão e que não consigam subir as escadas, como tu? Temos de fazer alguma coisa, Cardo! Nem que doemos parte do dinheiro da viagem de finalistas.
- Mas e a viagem?
- Fazemos uma mais curta, vamos a um sítio qualquer mais perto. O que interessa é estarmos juntos!
- Nem sei o que dizer.
- Não precisas de dizer nada. Queres dar uma volta por aí? - Sugeriu a adolescente.
- Pode ser. - Aceitou o outro. - Vai, Carvão, vai para casa!
- Deixa-o ficar. Afinal, ele não é um cão de assistência?
- Formalmente, ainda não. Falta alguma papelada.
- Vou falar disso também no meu discurso. Faremos uma recolha de assinaturas para construírem elevadores e deixarem o Carvão te acompanhar.
- Isso seria fantástico! - Os olhos de Cardo resplandeciam.
- Agora vamos dar uma volta por aí, antes que esteja na hora da aula.
Os dois adolescentes e o Labrador caminharam por entre a erva alta de Primavera, com uma nova esperança e uma nova confiança. Não importavam as adversidades, a amizade transformava os problemas em desafios superáveis. A perseverança de um cardo, a vivacidade de uma acácia e a chama proporcionada pelo carvão uniam-se naquele momento, enfrentando o matagal de fatigantes plantas daninhas, que insistiam em interromper-lhes o caminho. Mas eles avançavam com passos firmes, traçando o trilho da resistência e fortalecidos pela energia da compaixão.
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