Capítulo V


O DIA EM QUE NÃO CHOREI

Henggo


LEMBRO DAQUELES TEMPOS. Lembro de quando eu e meus primos nos sentávamos no areal, tardezinha embalada por brisas, as mangueiras cientes de que era chegada a hora de vovó ralar o milho para a canjica que embebedava nossas férias. Todos os dias havia uma fome por histórias de um passado que era distante para nós, mas que permanecia vivo nas memórias dela como se tivesse acabado de pular entre linhas temporais. Pois, sim, vovó tinha uma mente capaz de guardar até os detalhes mais mundanos de uma cena.

— ... e aí, foi uma comoção quando aquelas três pretas entraram na igreja lá da sede, passo miúdo, as sandálias de couro cheirando a novas. Tudo quanto foi gente se virou pra olhar aquelas mulheres, os cabelões bonitos, com laço de fita de cetim, lustrosos, caídos pelas costas — largou uma espiga já esvaziada e pôs-se a labutar em outra. — Em tempo de escravidão, aquilo era como se o sino despencasse na cabeça de cada pessoa. Mas vindas aqui destas terras, com um senhor que se recusava a tratar os pretos como escravos e dava-lhes dinheiro e liberdade, elas ergueram a cabeça e foram se sentar lá na frente, no meio dos brancos, os vestidões amarelo, azul e rosa feito um algoz do falatório do povo. Três pretas vestidas de colorido no meio de um bando de brancos vestidos de preto. Porque preto só é chique quando pode ser trocado por outra roupa. "Quem são essas?", alguém perguntou. "São as pretas do Jacareí.", responderam. "Com essas, ninguém pode!" E não podem até hoje!

Deu uma gaitada e ralava o milho, a bacia entre as pernas, pedaços do sabugo por todo lado enquanto as mãos subiam e desciam no esforço do ralador. Ajudávamos a debulhar as espigas, fazíamos bonecos com os sabugos e as folhas, pedimos por mais uma história. Vovó não respondia de pronto, mas eu via o sorriso que temperava os lábios. Nossas mentes eram panelas ávidas por histórias e ela era a cozinheira que nos preenchia com palavras.

Então, enxugava o suor da testa, olhava para o terreiro, acima, como se sorvesse cheiros da antiguidade do quilombo, o suor de corpos invisíveis. As árvores ficavam atentas, os passarinhos se calavam.

— Eu já contei pra vocês sobre a Mãe d'Água que apareceu na Fonte Grande?

Lembro-me do meu coração infante ter dado um gorgorejo à mais naquela tarde.

— Essa fonte onde a gente toma banho?

— E não é essa mesma, tolo? E tem outra Fonte Grande por aqui? E sabe quem foi que viu a Mãe d'Água: o primos de vocês, Jackson. — Vovó sabia causar comoção, jogar iscas para prender a atenção do ouvinte. Era uma storyteller antes do storyteller se popularizar como termo literário. — Foi num dia de manhãzinha, tempo de tirar mandioca. Por isso, pra aproveitar a água limpa antes de começarem a trabalhar nos cercados, a gente precisava ir tomar banho cedinho, cedinho, senão, o corpo ficava com aquele cheiro de massa, a roupa imunda.

"Ele devia ter cinco, seis anos, só. Não descia o caminho sozinho, mas naquele dia, como se a natureza ansiasse por ele, aconteceu um monte de coisa em casa: o café passou do ponto, o fogareiro caiu, as galinhas estavam soltas pelo terreiro, uns ovos quebraram. Acabou que o menino foi banhar sozinho, cheio de recomendações de não se demorar e ficar só na parte rasa. E foi direitinho, o danado."

"Quando se aproximava da fonte, ali no alto do barrancão de onde a gente já vê um pedaço da água, ele escutou um barulho como se alguém tomasse banho. "Ô da fonte?", ele disse que gritou em sua vozinha. O barulho parou, mas ele via as ondas na superfície da água. "Ô da fonte? É homi ou muiê?", perguntou de novo, como é o costume. E foi aí que a voz mais bonita respondeu que ele podia descer."

"Quando passou por baixo das raízes daquela árvore grandona, o menino viu uma mulher no meio da fonte, visível da cintura pra cima, os peitos nus, cabelo que se espalhava pela água e parecia arrodear ela toda. Sem dizer nada, ela estendeu a mão em um convite. E sorriu."

Minha prima não se aguentou.

— E ele foi, vó? Meu Deus do céu!

— E como ele não ia? Mãe d'Água não pede, exige. É a dona de tudo, guarda as coisa, protege. Mas não é mau, só curiosa por nós tudo, humanos, uns seres que ela não entende muito, mas admira. E teme.

"Jackson andou sem nem tirar os chinelos. Entrou na água doido de medo, mesmo sem saber quem era aquela, mas talvez sentindo que via o que não deveria ver. Vocês sabem que a fonte é funda, vai descendo, cobre um homem adulto. Naquela época, então, era ainda mais. Depois de uns dez passos, a água já tava no ombro dele e o menino seguia. A Mãe d'Água se aproximou de pouquinho, só mais uma esticada de braço. O menino estendeu a mãozinha e foi quando um grito assustou a cena. A tia de vocês, Margarida, correu para ralhar com o filho por estar na parte funda da fonte. E, sentada na tábua de lavar roupa, deu-lhe palmadas na bunda enquanto ele gritava "Foi a Mãe d'Água! Foi a Mãe d'Água!"

Vovó gargalhou e viu a quantidade de milho. Só mais um pouco e estaria bom pro mingau. Hudson fez a pergunta que consumia nossas mentes.

— E a Mãe d'Água?

— Ah, quando ela escutou o grito, voltou a ser sucuruju e serpenteou pra dentro dos igarapés. Ela sabe que nós somos curiosos como ela, mas nossa curiosidade, diferente da dela, destrói, machuca, prende bicho só pelo prazer de possuir.

— Mataram uma sucuruju enorme lá na estrada do Itatuaba — comentei com um tremor de desespero. — Será que...

— Que nada! — vovó me interrompeu. — A Mãe d'Água não passeia pra longe das águas. Ela sabe que nós tudo tem medo da água, medo de olhar pro fundo e ver nós mesmos naquela imensidão. É por isso que homem domina terra, domina fogo e pode até dominar o vento, mas a água? A água a gente só navega por cima e, sem poder ver o fundo, suja tudo que é pra matar o que a gente não conhece.

Carlos, dois anos mais velho que nós três, se empertigou. Morador da sede do município, cidade de Icatu, achava que o fato de não vir da capital lhe dava vantagens sobre os "meninos da cidade grande".

— A gente limpa a fonte sempre que vai lá né, vó?

— Isso mesmo. Já ajuda. — Vovó pegou a última espiga. — Mas também precisa falar, precisa contar as histórias, precisa lembrar que nós tudo tem raízes e é pras raízes que nós tudinho, meus filhos, tudinho, vamos voltar. A gente se esquece das raízes, se esquece das histórias, mas as histórias dos antigos são as histórias de nós tudo; são as histórias que faz com que nós sejamos gente que pode olhar pra traz e saber de onde vem.

— De onde a senhora vem? — Minha prima questionou de repente.

Vovó terminou de ralar o milho, jogou o sabugo vazio a pilha de descarte, pensou. Uma brisa se acomodou junto a nós e trouxe cheiro de terra, cheiro da fonte, manga madura, laranja-da-terra nos galhos, jaca de bago mole pronta para ser comida. Ela se levantou com a bacia cheia, desamassou a saia com as mãos sujas, sorriu para nós.

Nunca me esqueci de sua resposta, vovó:

— Eu venho das histórias que minha avó me contava e das histórias que a avó dela contava. E vou ficar nas histórias que vocês vão contar. A gente é tudo raiz, meus filhos, tudo raiz; é tudo faísca que pode alumiar a tristeza dos outros com o que a gente diz enquanto é vivo.

E saiu para fazer a canjica para alimentar nossas memórias.

Alimentou.

Vinte e cinco anos depois, vovó, no dia em que seu caixão foi descido no túmulo, poucos choraram. Sorríamos até, pois, lembrávamos-vos de suas histórias, cantamos seus hinos, fomos família enraizada pelas palavras de quem somos: as histórias de nossas vidas. À noite, conversamos, comemos, brincamos, recordamos, vivemos e celebramos sua existência; a honra de termos vivido na época em que a senhora viveu.

Naquela madrugada, enquanto eu me balançava na rede, pensamentos cientes do quebra-cabeça da vida, eu sorri de gratidão. Enraizou-se em mim, vovó, enraizou-se em mim. Morreu a faísca, vicejou o incêndio.

Suas palavras ainda alumiam a minha mente.

* Uma homenagem à minha avó, Firmina Gomes, mulher, maranhense, preta, bisneta de escravos, professora, divorciada em uma época em que isso era um ultraje, contadora de histórias que pareciam fantasias, mas tinham muito de verdade. Meu primo Jackson até hoje afirma que viu a Mãe d'Água, a história das três pretas na igreja está registrada, o interior de Icatu é morada de cobras sucurujus enormes. Mesmo mal cuidada, a Fonte Grande sobrevive. Não mais tão funda, mas ainda misteriosa. Ainda bem. 

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