Capítulo III





Segundo informações de populares, ele tinha problemas de alcoolismo e está desaparecido há três dias. Testemunhas afirmam que ele foi visto pela última vez nas proximidades do Morro do Alemão, juntamente com seu cachorro, um Dachshund marrom, antes das fortes chuvas que alagaram parte da cidade.

O indivíduo aparenta ter 1,74 m, 60 quilos, cabelos e barba comprida, olhos claros, andar cambaleante e atende pelo apelido de "Velho 51".

Acompanhe mais informações sobre o caso no jornal da noite ou a qualquer momento em nosso plantão de notícias.


ERA MANHÃ. Franziu o cenho ao acordar, repentinamente, com um arrepio na espinha. Parecia ter feito uma longa viagem e agora não sabia onde estava, nem o que havia acontecido. Estava deitado e tudo parecia girar. Algo gelado acariciava sua pele, seus pés, suas mãos e seu corpo exausto; fazendo-o lembrar da canção que ouvia todo santo dia nos tempos de escola... O som do mar e a luz do céu profundo começaram a inundar seu íntimo e os primeiros raios de sol surgiram tímidos. O mundo rodava lentamente, embalando-o em berço esplêndido.

Suas mãos e pés dançavam livres, suas costas repousavam na plenitude de um manto gelado. E, quando sentiu em seu rosto o calor do sol, seus olhos se abriram e enxergaram somente água... por todos os lados. Água límpida, azul e gelada, tomando conta de tudo a sua volta. A bem da verdade, ele sabia que a natureza era teimosa e ainda insistia em desafiar alguns de seus filhos, já tão sofridos e desgastados pelo tempo.

Então, o que mais poderia fazer ele, senão deixar-se ninar pelo movimento da mãe natureza? Antes de perder suas forças e cair em sono profundo novamente, balbuciou alguns sons sem nexo, tentando entoar sua canção preferida — ouvida tantas vezes nas rodas de samba de seu boteco de longa data —, o preferido... Deixando a vida o levar... sem reclamar do pouco que Deus lhe deu.

O que aconteceria se juntasse mais líquido a tanta água? Um rio? Um mar? Um oceano? Momento filosófico patrocinado pelo excesso de álcool do dia anterior, mas ele logo sentiu-se livre para testar sua teoria e rir feito criança, enquanto fazia xixi in loco, imaginando a cena do dilúvio que causaria com sua fétida urina. Já estava molhado, completamente encharcado, o que mais poderia dar errado? Aliviou-se ali mesmo, como um chafariz, ainda deitado de costas sobre o manto de água azul e... salgada?

Tomou um susto ao levar um banho de água sobre seu rosto encardido. A sujeira escorreu de sua testa feito um rio de lama. O que foi aquilo ele não sabia, mas tinha gosto de... sal!

Até já tinha ouvido falar que a água do oceano era salgada, que havia ondas, marés,... mas a verdade é que ele não conhecia o mar e, por ironia do destino, ali estava ele, à deriva, sendo apresentado ao mar pela primeira vez.

ERA TARDE. Não foi um primeiro encontro como ele imaginava, porém, seu sonho fora realizado. Estava enfim em contato com o mar!

Céu, sol e mar. Um lindo oceano. No entanto, naquelas condições, seu sonho surreal logo viraria pesadelo. O sol a pino começava a queimar sua pele clara, protegida apenas pela grossa crosta de sujeira, resultante da longa mendicância nas ruas.

Há muito já tinha perdido a noção do tempo e já não sabia há quantas horas estivera boiando à deriva. O único indício do tempo era indicado pela sua pele, enrugada pela água e queimada pelo sol.

Ficar sem água e sem comida não era novidade para ele. Nunca sentiu muita falta disso, pois estava acostumado a ficar sem alimento por vários dias. Sentia uma verdadeira saudade era de sua bebida preferida, com a qual ficou conhecido nos bares da vida: a 51.

Sabia bem que faria qualquer coisa para ter um copo, ou uma garrafa inteira da "marvada" a seus pés (ou em suas mãos) naquele momento.

Mas, o único líquido disponível, por hora, era a água — e do mar —, que continuava o embalando e provocando vertigens e fortes náuseas a todo instante. Sua pele ardia, suas costas doíam. Sua boca estava seca, pronta para regurgitar o pouco que havia no estômago.

Aquilo tudo parecia um pesadelo de muito mau gosto. Sentia-se como um churrasco, assando sob o sol forte em alto mar. Pela primeira vez, ficou nervoso, agitado e sentiu sua pulsação acelerar. Com muito custo, seu cérebro cansado pensou em algo para se proteger. Em modo automático, suas mãos tiraram sua calça e colocaram sobre sua cabeça, tentando proteger seus olhos e sua face do astro rei.

O tempo, que se arrastava lento, parecia agora ter parado de vez.

Estava prestes a perder suas forças quando o vômito partiu do esôfago feito um trem bala. Passou por momentos de agonia, tossindo e regurgitando os restos de uma vida.

Depois da calmaria, continuou boiando à deriva, sem saber o que o destino ainda aprontaria para ele. Um filme passou em sua mente: era a vida e a morte se apresentando juntas, no mesmo palco, para um único espectador.

ERA NOITE. Uma brisa fria soprou sobre sua pele e lentamente entrou em seus pulmões, fazendo-o recobrar a consciência outra vez. À noite - enorme tudo dorme, menos teu nome... já dizia um poema que sempre recordava nos momentos de dor e saudade. A luz da lua cheia iluminava o céu, refletido um vívido pesadelo.

Ouvia o barulho orquestrado do mar, contemplando a imensidão azul à sua volta, quando viu três estrelas no céu azul: as três Marias. Maria...

Sem saber porquê, a depressão invadiu seu íntimo, tomando conta de seu coração ao lembrar esse nome.

Tudo parecia ter dado errado para ele, mas ainda estava vivo. Ainda tinha uma chance de lutar por sua vida, mesmo sabendo que havia desistido de viver anos atrás.

Com dificuldade, tentou ligar os pontos e raciocinar sobre sua situação: boiando à deriva, em alto mar, sem forças para reagir, ele sabia que só um milagre poderia salvá-lo.

Como último recurso, começou a rezar para que alguém intercedesse por sua vida. Orações aleatórias de uma pessoa descrente não poderiam realmente dar certo, mas algo deveria ser feito.

Estava na última oração da noite, lutando contra o sono, o cansaço físico e mental, quando percebeu algo estranho ao seu lado. Seria um aviso dos céus? Ou outra brincadeira da natureza?

Seus olhos se arregalaram de imediato. Tão grandes e intensos quanto à lua cheia no céu. Rígido, em silêncio, voltou a rezar sem acreditar no que viu.

Olhou de soslaio para o problema, lembrando dos bons tempos em casa, momento Sessão da Tarde com seus filhos e seu filme preferido: Tubarão!

A fera dos mares se aproximou rapidamente e logo estava ao seu lado. Viu os olhos e a boca a lhe espreitar com um sorriso maligno. Dentes afiados, olhos famintos. Sentiu a barbatana tocar suas costas, e seu coração parou. Entrou em choque ao perceber que o tubarão estava o testando antes do ataque final.

Por alguns segundos, a fera desapareceu de seu campo de visão. Como no filme, certamente estava preparando o bote. Ele ainda lembrou-se dos momentos de susto e pânico de seus filhos em casa, vendo a obra de Spielberg na tevê. Mas ali era a vida real. O medo era real. E o tubarão também.

Segundos antes de o tubarão retornar do fundo do mar a toda velocidade, ele sabia que seria a hora do tudo ou nada. Juntou suas últimas forças e nadou, tão rápido quanto um medalhista olímpico, a caminho do desconhecido em sua piscina infinita.

A madrugada se apresentava ao oceano enquanto algumas estrelas reluziam no céu, escoltando a lua cheia em seu espetáculo. Era chegada a hora do show...

Um raio de luz azulado desceu até tocar o oceano, refletindo-se nos olhos famintos de um tubarão, que retornava para atacar sua presa indefesa. Surpreso e ofuscado pela cena incomum, a fera dos mares afastou-se rapidamente para as profundezas sem ser notado. E sem seu jantar da madrugada.

O homem que boiava desacordado foi iluminado pela luz anil, que envolveu seu corpo acompanhando-o em seu trajeto indefinido pelo oceano.

Repousando em sonhos ainda mais densos do que o profundo mar, aquela alma não queria saber de acordar. Havia realmente comido o pão que o diabo amassou. Somente um movimento rápido dos olhos deu o sinal de que a vida ainda estava presente ali.

Claus... Acorde...

Despertou, jurando ter ouvido uma voz fina e sussurrante, bem ali ao seu lado. Procurou por alguém, sem sucesso. Olhou novamente, mas só havia água ao seu redor. Por todos os lados.

Não queria acreditar que os peixes estivessem falando, que as estrelas tivessem voz, ou que sua mente estivesse delirando de vez. Ele ainda estava lúcido, e sabia que tinha ouvido uma voz humana. Só então percebeu que seu corpo estava coberto por aquela misteriosa luz noturna. Nunca sentira algo tão estranho em toda a vida, mas tinha o pressentimento de que era sinal de algo bom.

Quando a madrugada começou a dar lugar para um novo dia, a cor azul foi sendo coberta pelo amarelo do amanhecer e a luz azul despediu-se vagarosa, acarinhando sua alma, rumo ao infinito.


Fim.

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