Capítulo II
Eu sempre acreditei que fosse feita do inverno. Mesmo que não sobrevivesse sem calor. Funcionava assim: se eu fosse o deserto, o verão seria meu oásis. Eu me alimentava de seus calores, cores e sensações. Talvez essa conexão com o inverno fosse por causa do meu nome.
Inverno
O céu anoitecia em tons de rosa, daquele céu que anuncia mais frio. A fogueira no meio do campo fingia nos aquecer, mas o que funcionava mesmo eram as bebidas destiladas. O ar da minha respiração condensou e através daquela cortina eu vi o rosto dele me observando de longe.
— Eu acho que deveríamos comemorar o festival de Yule esta noite! — Dara sussurrou no meu ouvido, provocando-me. Meus pais me deram o nome do festival celta comemorado na data em que nasci. — Seu aniversário e o solstício de inverno.
— Hoje é festa junina do DA de comunicação, a galera desconhece sobre esse lance de festival celta. Se você fizer alguma gracinha, eu vou para onde eu queria estar: minha cama — avisei séria.
Dara fez troça com o meu nome durante toda a semana, mas eu sabia que ela não teria coragem de me expor numa festa como aquela. Quase um terço do campus da universidade estaria ali. Era uma festa realmente tradicional.
Ajeitei o cachecol no pescoço, o vento insistia em atravessar as arestas entre os pontos de tricô e arrepiar meu pescoço. Os olhos claros dele continuavam a me observar. A touca escondia os cabelos cacheados e sobressaía a mandíbula quadrada. Hugo era o seu nome. Eu o atendia frequentemente na biblioteca do campus. Mas ele estava sempre sério, mal me olhava nos olhos, uma rigidez incomum.
Ali, naquela noite, com aquele olhar, ele transformou-se num homem atraente. Isso chegava a ser estranho, antes não me despertava nada além de curiosidade.
As horas passaram, o céu estrelado parecia incrivelmente próximo no alto da colina iluminada só pela fogueira e as luzes confusas do palco. Eu quase me esqueci do meu estranho paquerador. Desconfiei que ele não desatasse o nó entre nós.
Pensei que gostaria de estar deitada num colchão sobre a grama, debaixo de cobertas grossas e uma garrafa de vinho tinto para curtir o frio. No inverno, eu definitivamente preferia namorar no isolamento. No verão, eu curtia a liberdade, mas no frio, um cobertor de orelha seguro era o melhor dos mundos.
— Será que vou passar esse inverno curtindo uma fossa fria e úmida? — confessei a Dara minha angústia.
Ela gargalhou com deboche. Eu juro que segurei a ofensa, nunca a vi reagir assim comigo.
— Vai me dizer que não viu meu professor de física quântica te devorando com os olhos?
— Quem?
— O Hugo, aquele que está debaixo do poste central. Achei até que você estava correspondendo.
— Eu não sabia que ele é seu professor. — eu franzi os olhos. — O que mais você tem a me dizer sobre ele? Porque essa paquera estranha parece que não vai dar em nada. Vai ver, ele é comprometido.
— É professor substituto e doutorando. E, bem, não é comprometido. — nós duas levantamos os ombros como se perguntássemos ao mesmo tempo: E aí?
Gargalhamos. Minha colega de quarto não era dada a rodeios, tão exata quanto à física que estudava. Já eu, era inexata, cíclica e manhosa como a natureza.
— Vai lá Yule! Quem sabe ele pode ser um candidato digno ao posto de cobertor de orelha?
— Não estou propensa a correr o risco de sentir mais frio hoje. Queria sentir corrente quente de um xaveco caprichado. Na biblioteca, ele sempre me pareceu gelado.
— Dentro de sala também. Sorri pouco, cobra muito. — ela bebericou a vodca. — Porém, meu palpite é: por fora frio e por dentro quente. Acho charmoso esse jeito controlado que ele tem.
Eu respondi com uma careta bem debochada. Naquela festa, apesar de repleta dos mais diferentes tipos de caras, somente ele me pareceu interessante. E isso também era estranho, eu costumava a ser atraída por caras expansivos, sorridentes. Pouco tempo depois, ele sumiu, como que sugado por um buraco negro. Eu senti mais frio, nada, nem mesmo a bebida fervilhando era capaz de me esquentar.
Então eu decidi ir embora da festa. Meus colegas do curso de biologia cantaram Parabéns para você e se divertiam isoladamente, desfazendo o grupo que me aquecia.
Caminhei ladeira abaixo, o topo da colina tornou-se um ruído distante. O alojamento estava a poucos metros quando eu dei de cara com ele. Hugo subia de cabeça baixa e mãos nos bolsos. Definitivamente não me notou. Eu tinha que agir, o destino me cedia uma oportunidade. Trombei com ele debaixo do poste que piscava como se tivéssemos provocando um evento eletromagnético.
Colamos os corpos. Os lábios estavam imantados. Eu aqueci de dentro para fora. Até sentir vontade de arrancar o cachecol. Era tanta roupa que quase não sentíamos a forma do corpo do outro. Pouca ou nenhuma palavra porque eu buscava era calor e isso ele soube me dar.
Inverno combina com vinho, edredom sobre os corpos nus e filmes ou séries. Assim, nosso namoro começou pela hibernação. E era exatamente o que nos satisfazia.
Primavera
Ele chegou à biblioteca logo cedo, três nomes de livros e seus respectivos códigos anotados num pedaço de papel e sobre ele um bombom. Eu sorri mordendo o canto dos lábios.
— A bibliotecária aceita me visitar essa noite? — ele se inclinou levemente sobre o balcão para que eu ouvisse sua voz baixa — Prometo uma panela de brigadeiro.
— Não sou bibliotecária, é a dona Odete — indiquei a senhora mal-humorada sentada no computador a minha esquerda.
— Então, o convite é para a bolsista mais...
Eu arranhei a garganta interrompendo sua fala.
— Vou buscar seus livros, só um minuto.
Duas garotas esperavam, atrás dele, pelo atendimento. A bibliotecária me vigiava, não estava a fim de levar uma bronca. Caminhei pelo corredor de estandes que beiravam as janelas. Senti o sol da manhã tocando minha pele com certa quentura. Finalmente, a temperatura subia. Podia ver as copas das árvores cheias de botões prestes a se romper. Tirei o lenço do meu pescoço, a mistura de vento fresco com calor do sol me confundia deliciosamente.
Cheguei a casa dele na hora combinada. Estranhamente, senti o ar aquecido demais dentro da quitinete. Enquanto ele fazia os pratos com uma massa ao molho branco, eu fui até a sacada e abri completamente a porta e as cortinas.
— O que está fazendo? — perguntou Hugo, colocando os pratos e as taças sobre a bandeja em cima da cama.
— Vamos jantar aqui na sacada! — sorri, expandindo os olhos. — Adoro esse fresquinho da noite.
— Ah, minha linda! Vamos fazer como sempre. — ele sentou-se na cama.— Escolhi um filme que você vai gostar. Feche a porta, porque faz muito barulho lá fora essa hora.
A avenida movimentada estava a 20 andares abaixo de nós. Dava para avistar a copas das árvores por cima e o céu clareado pela lua cheia. Cedi, fazendo o que ele me pedia.
Acordei animada na manhã seguinte, foi fácil sair debaixo da colcha fina. O café fresco perfumou a casa. Em geral, tínhamos duas opções no sábado: eu ia embora e só voltava à noite ou passávamos o dia juntos ali. Ele me emprestava o notebook novo que ele detestava e usava o velho que o satisfazia comodamente. Geralmente, eu escrevia algum trabalho e pesquisava alguns artigos para o meu trabalho de conclusão de curso. Eu me formaria em dois semestres. Ele emergia na tese. Em alguns momentos, deitávamos juntos e cochilávamos. O edredom grosso era um imã quente e reconfortante.
Naquela manhã, eu senti saudade de passear de bicicleta na zona rural da minha cidade natal. De comer fruta na estação no pé e me refrescar no rio. Meu celular apitou: "A galera vai fazer piquenique no gramado do alojamento, topam?".
— Vamos a um piquenique! — falei enquanto enchia seu pescoço de beijos. — Essa ideia é genial. Veste uma bermuda e chinelos. Quero ver você pegar um pouco de cor.
Enquanto eu vestia minhas roupas, vi que ele abria um livro sobre a bancada. Eu não soube identificar se ele não me ouviu ou se achou a ideia imbecil demais para responder.
— Hugo?
— Piquenique... — ele movimentou a cabeça em sinal negativo antes de se deparar com meu olhar decepcionado. — Você sabe que eu tenho uma tese para escrever.
Continuei a me vestir, sentindo um estranhamento entre nós.
— E não rola intensificar a convivência com meus alunos, é estranho.
— Mas nós vamos a festas com eles... — respondi certa de que era a desculpa mais esfarrapada.
— É diferente. E não gosto de ficar no sol.
— Tem a sombra das árvores.
— Vai lá! — ele concluiu. — Volte à noite.
Não senti vontade de voltar quando anoiteceu. O piquenique virou uma festa e invadiu a noite. Só quando bateu um friozinho de arrepiar a nuca que senti falta dele. Já passava de meia noite e um colega ia para as bandas da avenida. Peguei uma carona. Não havia filme, comida ou vinho me esperando, mas havia uma necessidade de aquecer nossos corpos. Como se esfriassem longe um do outro.
Verão
Eu estiquei meu corpo no chão frio em que eu acabava de passar pano úmido para limpar. O fone de ouvidos emitia notas musicais agitadas. O vento vinha quente da sacada aberta, nada era capaz de aplacar aquele sufocamento; mas lentamente o frio do chão foi atravessando minha pele, esse era o código para despertar a memória de Hugo em mim.
— Eu vi Hugo ontem no corredor. — falou Dara, como se lesse meus pensamentos.
— Meio pálido, soado... Um fantasma daquele homem misteriosamente charmoso. Enfim, nem você, nem ele parecem bem depois que terminaram.
— Não tínhamos compromisso nenhum, então não terminamos. Só paramos de nos ver... — expressar aquilo em palavras doeu. Era contraditório pensar nele. Agora eu me sentia sufocada pelo calor que me despertava o que antes era a melhor das sensações.
— Você parecia tão apaixonada há pouco tempo. Dormia direto na casa dele. Posso perguntar o que aconteceu? — Dara me encarava como num interrogatório.
— Acho que ainda estou apaixonada, mas a casa dele parecia encolher em torno de nós, eu precisava de ar, de sol. Ele só aceita ficar naquela caverna.
— A caverna serviu bem enquanto você desejava um cobertor de orelha, neh?
Era verdade. Mas naquele momento eu só queria arrastá-lo para esfriar o corpo na cachoeira, para sentir o vento num passeio de bicicleta. E ele recusou todos os convites ao ar livre. Naquela tarde, o vazio bateu fundo. O perfume da pele dele parecia grudado em minhas narinas. Nem as flores me alegravam, senti meu corpo tremer dos pés a cabeça. Eu precisava chegar à biblioteca e cumprir meu horário. Fazia um calor insuportável, mas minha pele arrepiava tanto que eu precisei vestir uma jaqueta.
Eram apenas dois lances de escada do térreo até o salão da biblioteca, mas meu corpo estava mole. Me agarrei ao corrimão e me sentei para descansar. Então, alguém parou do meu lado. E eu senti a mão quente pousar em minha pele.
— Yule? Você está passando mal?
Hugo estava agachado diante de mim. Seus olhos eram como dois sóis prontos para me aquecer. Ele me aparou até a biblioteca. Sentir seu calor era reconfortante. A bibliotecária me dispensou assim que percebeu minha febre.
— Você é aquele namorado dela — constatou dona Odete. — Vai cuidar de Yule, certo?
Nem eu nem ele nos opusemos. Ele me colocou dentro de seu carro, dizendo que ia me levar ao hospital. Mas não era isso o que me curaria. No instante em que ele desprendeu seu corpo do meu, fechando a porta do carro para entrar no lado do motorista, eu me senti como uma bateria ao ser desplugada da fonte rápido demais para manter sua energia.
— Hospital não — eu pedi —, me leve para sua casa, se puder... Só preciso de me aquecer. Um remédio para baixar a febre é o suficiente, não sinto nada além de dor no corpo.
Ele sorriu aquele sorriso mudo que valia mais que mil palavras. E foi assim que eu me pluguei ao seu corpo quente, na cama em que fazíamos amor. Seu calor era a minha cura.
Em menos de duas semanas estávamos de férias e eu fui para a minha casa. Uma cidade distante da cidade natal dele. Conversamos por telefone quando eu voltava dos meus passeios na zona rural ou de alguma festa ao ar livre. Eu fora e ele dentro. Ele passou poucos dias na casa dos pais, voltou a sua caverna para escrever a tese que defenderia logo que voltassem as aulas no fim do verão.
Outono
A temperatura caia no ritmo letárgico das folhas. Uma agradável atmosfera de equilíbrio se estabelecia dentro e fora de mim. Passava os dias ao ar livre, cuidando da parte prática do meu trabalho de conclusão de curso e as noites nos braços dele. E isso era o bastante para mim. Ele sempre o mesmo, eu sempre em movimento.
No entanto, um dia houve a chuva de meteoros. Eu sempre fui encantada com o céu e seus astros. Planejei assistirmos ao evento na colina da universidade, onde foi a festa junina do ano anterior. A cesta com lanche, vinho e mantas grossas já estava pronta quando eu falei com ele.
— Tenho uma proposta para essa noite, bem diferente do que costumamos fazer, mas do jeitinho que eu adoro — sorri empolgada.
— O que seria? — perguntou Hugo, passando a mão na nuca.
— Hoje tem chuva de meteoros! E eu sei de um lugar perfeito para assistirmos.
A cara dele era sempre a mesma quando eu tentava fugir da rotina. Mas daquela vez eu não estava disposta a desistir. Eu sempre cedia ou ia sozinha aos programas que ele não se interessava, mas não dessa vez. Era importante para mim.
— Não faz isso, ok? — respirei fundo, tentando manter a tranquilidade diante daquele silêncio rígido de Hugo. — Faz isso por mim.
Ele foi. Sentou-se na colcha que eu estendi no chão. Abriu o vinho, comeu alguns pedaços de queijo, totalmente calado. Talvez, nunca tenhamos ficado realmente diante do silêncio um do outro. Juntos, assistíamos a filmes, comíamos, fazíamos amor, estudávamos. Preenchíamos todos os espaços e, naquele momento, o espaço era sideral e infinito.
Aos poucos, alguns cometas começavam a riscar o céu, mas ele pegou o celular, desinteressado. Eu senti um peso sobre meu peito, ele quebrava toda a atmosfera de conexão que poderíamos ter ali.
— Veja Hugo! Está acontecendo! É lindo!
Ele deu uma olhada rápida no céu. Aquilo, para mim, naquele momento, parecia desinteresse por mim. Sempre curti o que ele desejasse mesmo que eu não estivesse tão afim, só por companheirismo. Só para nos conectar.
— Por que você faz isso? — perguntei magoada.
Hugo não fez rodeios, não tentou apaziguar as coisas. Olhou nos meus olhos com uma sinceridade sufocada.
— Eu não gosto de espaços abertos. Me deixa angustiado.
— Mas nós nos conhecemos aqui!
— Eu vim para testar se ficaria bem, daí te vi. E mesmo com toda angustia, eu fiquei. Por sua causa.
Olhávamos só um pra o outro, enquanto o céu brilhava com luzes de pisca-pisca. As imagens daquela festa voltaram a memória.
— Mas você não veio falar comigo, depois sumiu e se eu não tivesse tomado a iniciativa, nunca teria acontecido... — conclui, irritada.
— Eu precisei sair, entrar no carro e ficar lá por um tempo e quando voltei você trombou comigo no caminho.
— O que é essa angústia afinal? Não sou psicóloga, mas deve dar para tratar.
— Tenho coisas mais importantes para me preocupar. E estou aqui, afinal — ele respondeu na defensiva. — Só não gosto de estar...
— Você não está aqui, na verdade... — encolhi meus joelhos e apoiei meus braços. Éramos definitivamente diferentes.
Ele se levantou, tomado pela seriedade habitual. Não olhou para o céu, nem para mim, apenas seguiu ladeira abaixo em silêncio. No céu, já não havia chuva de meteoros.
Novamente paramos de nos ver. Sem palavras definitivas. Enquanto isso, o frio aumentava e invadia minha pele. Eu sofria. Nada era capaz de me dar calor como ele.
Ele desapareceu da biblioteca nos meus horários. Eu estava prestes a me formar. Provavelmente, nunca mais nos veríamos. Eu não quis procurá-lo. Talvez negasse meu desejo, na verdade, mas era uma incompletude tão crua que nos afastava.
Chegou à festa junina novamente, meu aniversário, última noite de outono, o inverno batia a porta, congelando meu coração. Fui à festa para me despedir, para curtir até a última gota daquela etapa da vida.
Minha turma era a mais empolgada, desenvolvemos todo tipo de gincana para aquecer aquela noite inigualavelmente gelada. Eu devo confessar que aquele desejo de estar debaixo das cobertas com um cobertor de orelhas voltava a me assombrar, mas eu olhava em volta e ninguém me interessava, só havia mais frieza.
Então, Hugo apareceu com a mesma touca cobrindo os cachos, com os mesmos olhos incandescentes e eu corri até ele, porque sabia que ele estava ali por mim. O inverno chegou, a estação em que estávamos em total sintonia e não sei o que aconteceria depois, não sabia se toleraria suas ausências no verão, mas somente ele poderia aquecer meu coração arrefecido. Ele era meu oásis, ou melhor, minha chama.
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