7 - Dia de yakissoba
14 de Janeiro
Como filha órfã de pais vivos e sem laços familiares, nunca parei para pensar que minha criação era tão diferente das outras pessoas do meu convívio. Tá, ninguém estava cuidando de mim, mas... o básico eu aprendi, né? Nunca fui a pior pessoa do mundo. Quando eu era criança e meus pais eram obrigados socialmente a ficarem um pouquinho perto de mim ou eu tinha uma babá, eu aprendi algumas coisas.
Regras de convivência. Seja educada, não mate, não roube, tome banho direito e saiba sobreviver sozinha (principalmente o último).
Nunca parei para pensar que faltou algo muito relevante... sabe, comparado às outras pessoas.
Tipo acordar cedo em um domingo para ir à missa ou, sei lá, ficar até às onze em um culto barulhento. Acho que nunca nem toquei em uma bíblia na minha vida inteira. Meus pais nunca foram do tipo religiosos, eles não são tão hipócritas (levando em consideração a minha criação).
É por isso que... sei lá, talvez eu tenha vivido em uma bolha muito grande em relação à... tipo, preconceito contra LGBTQIAP+.
Sério, eu estou tendo um pensamento baixinho. Eu nem sei se isso é possível, mas faço o possível para nenhum leitor de mentes ouvir.
É que isso é muito vergonhoso. Sei o básico (meu professor de história sempre reforçou a necessidade de aprendermos o básico da esquerda para passar em um vestibular), mas nunca rolou de lidar com o problema em si.
Mas agora há inúmeras mensagens da Giulia reclamando do quão esquisito é o Mavi. Nada implícito, ela está falando as maiores atrocidades do mundo enquanto caio na real que nunca parei para pensar nisso. Não em pessoas trans existindo, mas como minhas amigas são... assim.
Estou em uma crise existencial.
No meu celular, as últimas três conversas estão divididas entre meu grupo de amigas de sempre falando os maiores absurdos, o de fracassados decidindo qual foto utilizar no ícone do grupo e... Cassandra.
Que é quem ouve minhas lamentações matinais.
Belém Martins:
tenho medo de ficar sozinha
tipo é que... eles tem problemas maiores sabe? mavi é um garoto trans e andressa é pobre!!!!!!!!
Cassandra:
jesus, você falando assim parece muito patricinha
Belém Martins:
eu nunca tive contato o suficiente com minha tia religiosa para saber que as pessoas são assim. mas em teoria, eu deveria ser, né? não tenho nada a perder.
Cassandra:
....
tá, é assunto sério
mas eu ia preferir ficar sozinha
sabe, se algo vai contra meus princípios, será que ficar sozinha é realmente pior do que compactuar? e jesus, belém vc não tá em uma competição de sofrimento!!!!! puta que pariu
Belém Martins:
mas eu tenho princípios?
você realmente está duvidando do fato de eu ser um lobo solitário, né?
cassandra eu não tenho princípios!!!!!!!
Cassandra:
nem "não ferir os direitos humanos"? pq... sabe, tenho certeza que transfobia é crime
Belém Martins:
nao existe crime para ricos
eu não estou dizendo que sou esse tipo de pessoa, sabe? eu nao sou e estou me sentindo mal pelo mavi
é só que... vamos supor que deus exista e ele escreveu a história de todo mundo
e na história de belém martins está "vadia preconceituosa sem caráter que as únicas companhias que terá na vida será de outras vadias preconceituosas" só que aí eu nasci com defeito sendo uma pessoa NORMAL e vou ficar sozinha pelo resto da vida se não fingir que sou uma péssima pessoa tbm? cassandra, os problemas do mavi e da andressa são reais!!!
Cassandra:
......
primeiro: Deus* não escreveria a palavra vadia. e você não vai ficar sozinha pelo resto da vida!! tipo, por em torno de seis meses você terá a mim!!!
Belém Martins:
cassandra, você não é um exemplo. você tá presa em um hospital e obrigada a falar comigo
Cassandra:
"obrigada"? belém martins, você sabe que eu posso te bloquear, né? ou só não responder
tá vendo como a vida é feita de sacrifícios? eu tenho um fraco por mulher bonita e sou facilmente manipulada, mas eu te bloquearia se você fosse contra meus princípios
Belém Martins:
entao você tá falando comigo só pq quer me beijar?
Cassandra:
eu teria parado no primeiro dia já que você emana heterossexualidade ao ignorar todos os meus flertes
e eu não beijo garotas em quartos de hospitais do jeito que estou
sabe, eu tenho uma reputação e pretendo levá-la até a morte
Belém Martins:
que reputação?
Cassandra:
insuperável
:)
kkkkk mas voltando ao assunto, o que você vai fazer?
sobre elas? vai continuar?
Belém Martins:
...
Cassandra:
não é crime pensar um pouco
16 de Janeiro
Belém Martins:
ignorar, mas continuar me faz uma pessoa ruim?
Cassandra:
não sei, o que você pensa sobre isso?
Belém Martins:
me sinto uma péssima amiga
não pra elas, mas por mavi e andressa que me incluíram em um grupo
sério, nem tenho coragem de enviar mensagens lá
acho que eles estão se aproximando sem mim
vou morrer sozinha
17 de Janeiro
Belém Martins:
cassandra? tá tudo certo por aí?
Cassandra:
tá tudo bem! só uma crise
lembre-se: se eu morrer, eu te aviso pessoalmente
Belém Martins:
você piorou? você tá bem? na medida do possível???? melhore! você ainda tem o yakissoba para ser sua última refeição
Cassandra:
:)
prometo que não vou morrer antes do yakissoba
só vou sumir um pouco porque o remédio dá sono, tá?
Belém Martins:
tá, me manda mensagem quando estiver melhor!!
mas me manda mensagem todo dia pra dizer que tá viva tá? escreva "tatu bola jogando basquete"
Cassandra:
??????
Belém Martins:
é específico demais para entender outra coisa e vou entender que você tá viva e só cansada!!!
Cassandra:
Belém Martins, você é meio estranha
mas tá
18 de Janeiro
Cassandra:
tatu bola jogando basquete
19 de Janeiro
Cassandra:
tatu bola jogando basquete
20 de Janeiro
Cassandra:
tatu bola jogando basquete
21 de Janeiro
Cassandra:
tatu bola percebe que gosta muito de jogar basquete e decide se profissionalizar
22 de Janeiro
Cassandra:
tatu bola participa de um teste para jogar no time de basquete de anta gorda no rio grande do sul! é o sonho dele
Belém Martins:
pelo amor de deus cassandra kkkkkk
Cassandra:
Deus*
23 de Janeiro
Cassandra:
tatu bola acaba de descobrir que não passou no teste para jogar no time de basquete de anta gorda no rio grande do sul
Belém Martins:
tá eu demorei pq você não me mandou mensagem e eu não queria incomodar uma pessoa doente para falar meus problemas
mas eu realmente tô com medo de ficar sozinha
acho que eu realmente nasci com defeito
vou fazer dezoito anos e não sou ninguém
sou um quadra em branco e intocado
desculpa!! estou solitária
posso te perguntar por que você decidiu continuar conversando comigo? para eu ter esperança?
24 de Janeiro
Cassandra:
sendo sincera, não sei
me pergunto a mesma coisa
sei lá, tem algo em você que dizia que eu precisava manter contato
um aviso divino, talvez?
eu normalmente não gosto de criar laços com outras pessoas na situação que estou, mas algo me disse que falar com você seria algo grande
mas... olha, eu fui uma criança ultra protegida e não tive memórias na maioria da minha vida, mas no meu último ano fora do hospital eu fiz um estrago
faça você também
um estrago colossal. mude de amizades, faça amigos em que você se encaixe e pinte a porra do quadro
me conte o que quiser, respondo quando puder
25 de Janeiro
Cassandra:
tatu bola está triste pela recusa e não consegue jogar basquete
26 de Janeiro
Cassandra:
tatu bola tenta jogar pela primeira vez depois do fracasso em anta gorda
27 de Janeiro
Cassandra:
tatu bola está se recuperando, ele vai voltar a jogar basquete com tudo dessa vez
28 de Janeiro:
Cassandra:
tatu bola está determinado: o time de futebol de anta gorda vai implorar para tê-lo de volta
basquete*
29 de Janeiro
Belém Martins saiu do grupo trio do trabalho de química.
— Alexa, tocar "restaurante da Belém".
Avental. Cabelo preso. Alongamento rápido dos braços. Ingredientes. É hora de mais uma yakissoba. Dessa vez, não estou tão concentrada. Um misto de ansiedade com "não tem como dar errado", "eu acabei de sair do grupo das minhas amigas" e "hoje é meu aniversário".
Caramba, hoje é meu aniversário. E ele é tão morno que o maior ponto alto está sendo fazer yakissoba e ir ao hospital mais tarde. Sei que meus pais vão mandar mensagem, uma hora ou outra, mas até o momento os únicos parabéns que recebi estão na caixa de e-mails com remetentes variados de todos os sites que me cadastrei ao longo dos anos.
Ainda que cozinhar seja o momento onde os espaços se preenchem, fazer aniversário é melancólico por si só. Enquanto a água ferve, borbulhando, eu me sinto vazia. Intocada por todas as sensações que estar aqui me dá. Um choque de realidade.
Eu cresci. Pela lei, eu sou maior de idade agora. Eu deveria ser mais responsável agora, mas eu já sou o suficiente. Tá, eu faço alguns desastres, mas eu tenho noção disso. Estou viva sem supervisão e sou eu que mantenho todas as coisas em ordem em casa, isso já não é demais levando em consideração que só hoje eu virei a chavinha?
Espero que sim.
— De-zo-i-to — digo, sorridente.
A recepcionista pega minha identidade, franze o rosto e olha a data no computador. Confirma e pede para que eu espere um pouco enquanto providencia minha entrada como visitante. Pede mais alguns dados e voilá, estou no elevador.
Jesus, eu estou no elevador.
E é só quando encontro o 107 no topo de uma porta que percebo que esqueci o mais importante.
Não o yakissoba, mas...
Bato na porta apenas como anunciação, mas demoro tempo demais sem abrir e entrar. Idiota. Meu Deus, que coisa ridícula. É óbvio que ela não vai abrir. Que mico, Belém. Que mico. Estamos em um hospital. Quer abrir logo a droga da porta?
Abro a porta. De uma vez, causando um estrondo. Cassandra tira os fones de ouvido, assustada. Eu quero desaparecer de vergonha ao perceber o escândalo desnecessário que fiz, que se torna pior ainda porque eu... simplesmente... não... avisei... que... viria.
E o clima está muito pesado no quarto. Tipo, muito. Cassandra está abatida, sem brilho algum.
— Oi. — Levanto a mão em um aceno, constrangida. — Eu acho que fiquei tão afobada com a ideia de poder trazer yakissoba que esqueci de avisar você e que... talvez você nem possa comer... ou que esteja interessada.
— Você trouxe yakissoba?
Balanço a cabeça, assentindo.
— Fecha a porta e vem.
Faço o que ela diz, mas ainda é esquisito. Belém, você é uma burrona. Burrona. Burrona. Burrona. Pego a vasilha da mochila e a entrego, mais ocupada pensando em como criei um clima constrangedor no momento mais esperado do mês por simplesmente não avisar que viria.
— Eca. Que nojo. — Ela desvia o rosto e o cheiro se alastra.
Esqueci de tirar o yakissoba da última vez. E sim, ele está muito fedorento. O que torna a única opção jogá-la a vasilha com tampa e tudo pela janela.
— Você sabe que pode ter matado alguém lá embaixo, né? — pergunta, incrédula.
Olho a janela. Estacionamento. Macarrão jogado em um carro vermelho vibrante. Cassandra se aproxima para observar também antes de me olhar com a expressão mais julgadora que já recebi.
— Esqueci de tirar o pote da última vez. Sabe, a vez que eu fui barrada. — Sorrio, nervosa. — Mas o outro está delicioso, juro.
Cassandra me fita. E ri. Ela senta na cama e ri.
— Você acabou de jogar yakissoba pela janela do segundo andar. Em um carro.
Aliso o braço, sem graça.
— Tá tudo bem. O dono do carro é terrível e tem dinheiro — diz, suspirando. — Saudades do hospital, Belém?
Sorrio.
— Tá melhor? — Ofereço o pote certo dessa vez e o cheiro é bastante valorizado depois da péssima primeira impressão. — Desculpa, de novo. Não foi minha intenção chegar de supetão.
Ela pega o garfo e experimenta. Não diz nada, a expressão já me dá a resposta.
— Acho que dessa vez vou te perdoar — brinca. — Onde você comprou isso? É gostoso pra caralho.
— Ah, eu fiz. Não achei um restaurante chinês na região e a outra opção era cup noodles. — Ela ri. — É a sua última refeição, eu tinha que caprichar, né? Isso não vai piorar a sua situação atual, né?
— Só de comer isso, eu já estou melhor. —Sorri. — É o mais puro gosto de viver.
— Posso trazer mais vezes, se quiser. Aviso com antecedência da próxima vez — digo, fazendo círculos com o dedo na minha coxa.
— Resolveu o problema com as suas amigas?
— Sai do grupo...
— Jesus. Isso não é um rompimento adequado. Você pelo menos avisou que não quer mais ser próxima delas?
— Um passo de cada vez. Foi um sacrifício clicar no botão, tá? — Cassandra assente.
O cabelo dela é curto demais para um coque, mas ela tentou amarrar e os fios estão praticamente todos soltos. De moletom preto, mas estampado dessa vez. Olheiras nítidas, criando uma sensação que os seus olhos estão mais fundos hoje.
— Você quer que eu vá embora? — pergunto e ela levanta os olhos. — É que você tá meio... talvez não seja um bom momento para lidar com a cota Belém Martins tagarela.
— Talvez, mas a gente pode assistir um filme, se quiser.
É um bom começo. Ela se encosta na cabeceira da cama e encontramos uma posição ideal para ficar, do lado contrário ao do acesso no braço. O notebook sobre o colo, um filme escolhido no aleatório e silêncio após uma chegada caótica. Viro o rosto em sua direção mais vezes do que deveria, talvez incomodada pela serenidade dela em lidar comigo quando... essa aparência me diz que ela está numa situação muito pior que a minha.
— Você acha que ter companhia te deixa pior? — pergunto, sem prestar atenção no filme.
— Depende do referencial. Acho que como um ser humano normal, estar sozinho torna as coisas mais difíceis. Mas o fardo de ter uma companhia que sempre está preocupado com a sua morte é... desconfortável. — Dá de ombros.
— Você quer que eu te visite? Tipo periodicamente? Duas vezes por semana? Três?
Cassandra ri.
— Isso é cansativo. Eu não preciso.
Ela fica em silêncio novamente. O som do notebook mal dá para ouvir nos alto-falantes. Eu não sei se é porque eu estou a um passo de ficar sozinha e meu cérebro está forçando compaixão para se agarrar a qualquer migalha, mas... acho que vê-la assim me faz pensar que a pior parte disso tudo não é morrer.
É que ela é tão... animada por mensagem e quando estive aqui, talvez por momentos calmos da doença.
— Não sou religiosa.
Ela vira o rosto.
— Minha visão sobre a morte é muito simplista. Não é algo que me dá medo. Tá, é óbvio que perder um ente querido é doloroso — nunca perdi um — mas... acho que não estou nem aí se você vai morrer, minha preocupação está mais para "o que você vai fazer até lá?". E... como experiente na categoria "viver sozinha", não quero que você morra dessa forma. Eu acabei de me afastar das minhas únicas amigas e não consigo me aproximar dos novos pseudoamigos que arrumei. Sabe, você pode pensar na parte que é benéfico para mim.
Mordo os lábios.
— A garota que vai morrer e... a garota que não vai morrer, mas deveria.
Ela respira fundo.
— Isso é suicida, Belém.
— Que se dane, Cassandra. Visitar você foi o ponto alto do meu mês, tá?
— Então a gente deveria corrigir seu texto para "eu preciso muito da sua companhia, Cassandra"? — debocha. — Você sabe que eu vou morrer, né?
— A gente tem em torno de seis meses até lá. — Sorrio de canto. — Pode ser?
— Você vai se arrepender de querer se aproximar demais, Belém.
— Até lá você já vai ter morrido e estará no céu com os anjinhos — retruco. — Mas enquanto está na terra...
Ela ri. Sou realmente uma mentirosa patológica. Eu nem sei o que estou fazendo aqui.
— Como você conseguiu entrar hoje?
— Tenho dezoito anos. — Sorrio.
— Ué, você fez que dia?
— ...hoje.
— Belém, você veio ver uma desconhecida no hospital no seu aniversário? — Vira o rosto, incrédula.
— Falando assim parece mais absurdo que é.
Ela fecha os olhos.
— Vamos resolver isso.
Alguém me disse que dia 10 era o seu aniversário e eu me preparei para isso, mas nos últimos minutos eu me enrolei!!!!!! Perdão, oi! Tudo bem com todo mundo? Foi mal a demora :) A gente se fala mais no próximo capítulo! Feliz aniversário!!!!!! 🤏
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