3 - Mitomania

29 de Dezembro


Daqui um mês eu completo dezoito anos.

É engraçado como sempre pensei que eu estaria muito diferente do que realmente estou agora. Frustrada. Puta. Querendo uma mudança radical onde eu, sei lá, raspo o cabelo, pulo do prédio mais alto da cidade ou... aproveito a maioridade e vou embora. Longe o suficiente para virar apenas uma lembrança e ser finalmente forçada a sair desse casulo.

Não vou fazer isso, óbvio. Sou covarde. Sobreviver sozinha mais do que isso já é demais. Infelizmente ainda ter a quem recorrer, mesmo que em migalhas, é necessário.

Meu cérebro está remoendo o "eu tenho família" da minha tia desde que cheguei em casa. Eu já sabia, claro. Sei que o papel de responsável sobre mim não é dela. Sei que o conceito família não é exatamente só ter o mesmo sangue, mas... é difícil ouvir em voz alta e associar que você não tem uma família.

E que agora já está crescida o suficiente para ouvir um "chega pra lá" em voz alta.

Tem pessoas piores do que eu, mas e aí... o que eu faço?

— A gente vai ou não vai? — Giulia bufa e senta no puff amarelo vibrante do quarto.

Raquel está em pé, encostada na parede. A prima dela, Andressa, está meio quieta no canto. Entendo, mal conhece a prima, imagina o resto.

— Ah, vocês que sabem — suspiro, com o celular em mãos e a barra de pesquisa do instagram.

Buscar. Cassandra...

— Os eventos da cidade estão meio caídos, a gente podia dar um pulinho. — Raquel suspira e eu levanto o rosto. Qual era o sobrenome dela mesmo? — Mas convencer meus pais a comprar passagem a essa altura do campeonato vai ser difícil.

Andressa forma uma careta e Giulia joga o cabelo longo para trás.

— Sei lá, acho que seria bom — continua. — Tô entediada.

Murmuro um "aham" baixinho. Não quero pegar um avião e gastar o dinheiro da minha fuga (se um dia eu tiver coragem) para passar a virada do ano em outro lugar, mas também não quero ficar sozinha. Sempre é divertido ficar com minhas amigas, de qualquer forma. Eu esqueço tudo e estou em algo que faço parte.

Bom.

Mas agora estou mais interessada em encontrar qualquer resquício da minha companheira de quarto. Cassandra... eu nunca conheci uma Cassandra, então não é um nome comum. Ok, tem muitas. Caramba, por que eu não chequei o sobrenome dela? Tem uma imensidão...

— Belém? — Giulia pigarreia. — Você topa ir? Acha que vai ser fácil para seus pais aceitarem?

— Ah, claro que vai. — Solto um riso engasgado. — Se vocês forem, eu topo.

— Minha avó tem uma casa de praia e lá é bem movimentado, acho que vai s... — Não é essa. Nem essa. Essa aqui? Nem de longe.

Jesus, será que ela era um fantasma que conversou comigo por dois dias? Não é tão difícil hospitais terem fantasmas, as pessoas literalmente morrem lá. Talvez Cassandra seja um fantasma dos anos oitenta e... Não, anos oitenta não. A camisa de cachorros fofos é algo millennial demais para ser ignorado.

Espera. Eu fui embora com a camisa e fantasmas não conseguem guardar objetos materializados e-

— Belém, você tá prestando atenção? — Puxa o celular da minha mão. — Deixa eu ver o que você tá fazendo.

Raquel analisa a tela do celular e forma uma careta confusa.

— Quem é Cassandra?

— A garota que eu dividi quarto no hospital — explico e piora.

Belém, você é uma burra.

— Hã?

— ....na infância — completo sem pensar muito e aí começo a pensar demais para complementar a mentira. — Quando eu era criança, eu fiquei internada por alguns dias e tinha uma garota chamada Cassandra no quarto. Sabe como é, meus pais lembraram disso na ceia de natal e... bateu uma curiosidade.

Espero que isso não se caracterize em mitomania. Eu não tenho uma vontade insaciável de mentir, só... prefiro assim. Minhas amigas são minha bolha segura onde eu não sou uma riquinha esquisita que os pais não dão a mínima. Só uma riquinha esquisita que tem dinheiro o suficiente para comprar uma passagem de última hora e passar a virada do ano no litoral.

Em trinta minutos de conversa, agora com a minha atenção, e temos passagens compradas. Sem ninguém pedir aos pais — eu sei que os meus não se importam, mas os delas ainda são... pais. 

Volto para casa depois de mais quinze minutos escutando planos para a última noite do ano. Uso uma desculpa para sair mais cedo, peço um uber e estou na minha sorveteria favorita — que é o limbo.

O nome dela é Sorveteria Pistache, mas é o lugar que gosto de ficar quando estou em uma vibe diferente das minhas amigas e sem disposição para ficar sozinha em casa.

Preciso mudar. Tipo, urgente. Eu deveria comprar um planner e começar a listar todas as coisas que farei diferente ano que vem. Não, eu já fiz isso. Tem três cadernos praticamente limpos lá em casa. Mas esse ano é diferente, a escola acabou... Eu estou quase com dezoito anos. Se há uma chance de sair desse drama todo, a hora é agora.

Mesmo que eu ainda não pareça tão a vontade enquanto sugo o milkshake de cookies de chocolate e desço mais uma vez pela pesquisa do Instagram atrás de Cassandra. Suspiro. Desisto. Não que ela seja a pessoa mais interessante do mundo, mas... sei lá, nunca conheci alguém que os próprios pais não dão a mínima como os meus.

Não que o ambiente que eu esteja facilite muito. Estudei no colégio mais caro da cidade, meus hobbies sempre foram muito... privilegiados. Sério, eu sei tocar piano. Eu acho. Nunca mais toquei em um desde que parei as aulas, mas eu aprendi e toquei em alguma apresentação entre o quinto e sexto ano. Tenho um certificado de inglês fluente, participei do clube de natação (seleto) e já andei de cavalo em um hipódromo.

Se alguém tem família disfuncional? Não sei, mas eles não deixam aparente. Eu também não deixo. Pelo menos, não digo em voz alta que meus pais nunca estão em casa e que o contato é sempre virtual.

Mas talvez eu tenha uma cara de coitadinha.

Quando o milk-shake termina, eu volto a pé para casa com uma garrafa de água em mãos. Prolongar mais o tempo em sociedade, sem dizer uma palavra. Passo em uma livraria, compro mais dois livros (eu nunca leio) e estou na Rua Santa Maria da Conceição, com caminho cortado pela praça (do mesmo nome) e o vislumbre do hospital que estive no natal.

Talvez tenha sido de propósito. Não é um caminho habitual, mas já que estou aqui...

— Como posso ajudar? — A recepcionista pergunta e eu me encosto no balcão, ignorando toda a aprendizagem que a pandemia me deu.

— Oi, eu... — O que eu vim fazer aqui? — queria visitar a Cassandra, ela está internada.

— Informe o nome completo da paciente e o seu nome junto a um documento com foto — pede e eu formo uma careta.

O RG, tudo bem. Tiro ele da mochila, coloco em cima da balcão e ela pega para conferir.

— O nome completo dela, eu não sei. Mas eu não acho que tenha outra Cassandra no hospital.

Ela vira o documento, franze o rosto e finalmente me fita.

— O horário para visitante é das 14 até às 16. Você é menor de idade, então não pode ficar em outro horário — explica e checa o relógio. — São 17:15. Qual é o nome da paciente mesmo?

— Cassandra, o sobrenome eu não sei.

— Ah... então, meu bem. Por questão de segurança, a gente só pode autorizar com dados mais seguros da paciente ou parentesco. Para entrar sem isso, só com autorização de responsável ou do paciente.

Claro que não ia dar certo. Eu nem conheço ela.

— Mas será que você poderia pelo menos me informar o nome dela para eu pesquisar em rede social? É que eu fiquei internada no mesmo quarto que ela no natal e...

— Então, como eu disse, por questões de segurança eu não vou poder te achar. Isso poderia por em risco a paciente — explica e eu suspiro. — Sei que você não tem más intenções, mas são regras, entende?

— Tá, tudo bem — digo e murcho como se realmente fosse importante ter contato com ela. — Obrigada.

Que bobagem, repito. Eu não preciso conversar com alguém que vai morrer e criar mais um problema absurdo que só eu tenho na sociedade rica de Conceição do Rio.

Volto para a praça. Até o meio dela, com um pé no degrau que me leva para a fonte desativada, quando dou meia volta e vou em direção à uma farmácia próxima, compro chocolate e encontro outra rota: a recepção do hospital por onde os funcionários entram.

Por que eu estou fazendo isso? Não me pergunte, eu não sei.

— Oi, tudo bem? Estive internada no natal e eu queria agradecer uma moça que levou o lanche noturno. O nome dela é Rita... — digo e tento deixar o chocolate visível.

Ela foi gentil mesmo. Não é tããããão errado.

— Vou checar se ela está fazendo turno, meu bem.

Ela confere no computador, tira o telefone do gancho e disca em algum ramal para chamar Rita. Me sinto meio envergonhada pela ideia, mas... se der certo, tudo bem.

Rita aparece e sorri. Para ser sincera, eu não a tinha visto no dia, mas satisfaz minha imaginação: a pele negra, as bocechas sorridentes e a estatura média — um pouco mais baixa do que eu. Emana simpatia com suas botas brancas de limpeza.

— Belém Martins, como você tá? Tá melhor? — Sorri, com as mãos na cintura.

— Tô sim, muito obrigada. Eu trouxe um chocolate para você — digo e tiro da sacola.

— Ah, linda. Não precisava! — Ri e aceita. — Mas obrigada mesmo assim. Gentileza sempre é bom.

Sorrio. Ótimo, não sei como chegar no assunto. Aliso o braço, acompanho a simpatia dela e ficamos em silêncio.

— É... será que você poderia conseguir alguma forma de contato com a Cassandra? É que esqueci de pedir e não sei o nome dela.

Rita franze o rosto e me fita séria antes de gargalhar.

— Vocês, crianças... Espera aí, vou ver o que faço para você. — Pede e eu até ignoro a pouca vergonha para sorrir satisfeita em resposta.

Mas demora tanto que eu até acho que foi o troco por ter praticamente a subornado com chocolate. Mas Rita volta.

E volta com um bilhete.

Oi! Como estão? Mais um capítulo quase no horário e PROGRAMADO!!!! MEU DEUS ESTOU VICIADO NESSA FUNÇÃOOOOOOOOOOO mesmo quando nem preciso!!! Pareço uma criança com um brinquedo novo!!! Mentira, eu não estou em casa na hora da postagem! EU ACHO!! Mas poderia publicar depois, mas é tãããããão legal!

Espero que estejam bem! Beijos! Eu realmente tentei fazer a pior letra de todas (não é tão difícil, minha letra natural já é feia).

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