29 - Até que a morte nos separe

2 de Agosto


Eu confio muito em Cassandra quando acordo às seis da manhã e começo a roer as unhas até às dez, horário que eu considero adequado para aparecer no hospital. Ela não me envia mensagem, nem responde a que enviei com um "seus dias de descanso acabaram!!!" com um carinha de língua para fora. Para ser sincera, estou sendo ingênua ao acreditar que poderei subir até o quarto dela e terei meu crachá de volta.

Sério, foi só uma ligação e ela nem deve ter levado a sério.

É burrice ir, mas às nove e trinta e três minutos (só para mostrar que estou de boa) eu saio de casa. Estou sentindo a ansiedade da primeira vez que voltei lá e é tão ridículo que tento provar para mim mesma que não é na mesma intensidade desesperada que cogito ir a pé o percurso inteiro com calma.

Não estou calma. Além disso, eu tenho certeza que ela não devolveu meu crachá.

Belém Martins: bom dia!!!!! encomendei o camar

Apago a mensagem antes de enviar. Não. Pelo menos ela ainda não me bloqueou, é melhor não exagerar.

Chamo um carro por aplicativo e tento ser positiva. Até dá um pouco, talvez seja aí que eu perceba que o remédio está funcionando: em um momento como esse, onde está claro que vai dar errado, eu consigo ser positiva. Imaginar uma possibilidade que não seja dar de cara com um não.

A Belém de pouco tempo atrás nunca conseguiria.

Mas é claro que isso não dura tanto. O percurso é rápido, estou de volta em frente ao hospital depois de dias sem voltar aqui. Demoro alguns minutos parada na frente como uma adolescente de filme que se prepara para entrar em uma escola nova. Cassandra, não me decepcione.

Respiro fundo. Entro na recepção de internação. Sorrio nervosa no instante que tiro a identidade da mochila.

— Eu sou a acompanhante da Cassandra Ribeiro — digo, mas me arrependo.

Eu deveria dizer " eu vim visitar Cassandra Ribeiro", já que se minha situação ainda não tiver mudado, a situação será bem humilhante. A recepcionista pega minha identidade.

— É o quarto um zero sete, se tiver com dificuldade de encontrar... — tento soar descontraída no tom, mas nem chega perto.

Ela assente, mas não diz nada.

Jesus, ande logo com isso.

— Como se lê isso? — Ela aponta para a recepcionista ao lado.

E as duas olham para mim. Se eu disser que não sei, que tipo de acompanhante eu sou?

— Rochidesvenscaia — pronuncio, o que definitivamente não é a pronúncia correta.

Pelo menos não é um teste secreto para saber se eu posso mesmo subir.

— Ela está no quarto 203 agora. Aqui seu crachá — diz e me entrega a plaquinha de acompanhante.

O quarto não fica no mesmo andar. Eu preciso subir mais uma leva de escadas antes de reconhecer o corredor. Sim, todos os corredores são iguais, mas esse é... facilmente reconhecido pelo aviso da brinquedoteca que eu e Cassandra entramos uma vez. Para ser mais específico, é uma ala infantil. Pediatra, como diz na parede e nas paredes pintadas com desenhos fofos. Nos pijamas infantis... Será que existe outra Cassandra? Eu deveria ter perguntado se era mesmo a pessoa certa.

Não, ela me ouviu falar o sobrenome dela. Não é possível que tenha duas Cassandra de sobrenome difícil.

Dou duas batidas no quarto 203 e não ouço nenhum sinal antes de entrar. As luzes estão apagadas e janelas fechadas, o que fazer parecer que só lá dentro ainda é noite. Pela luz do corredor, é fácil reconhecê-la: dormindo com o braço do acesso esticado para fora do cobertor, como quisesse facilitar.

Fecho a porta devagar antes de procurar a poltrona ao seu lado. Sem acender nenhuma luz, apenas me abraço na mochila enquanto olho para Cassandra de novo, só para ter certeza. É ela. Mesmo que, depois de alguns segundos, eu possa notar seu cabelo emaranhado, a mudança de tom ao redor dos olhos... Encosto a cabeça no batente da cama, olho em direção a porta.

Tem uma televisão no mesmo lugar que o outro quarto, mas as paredes têm padrões. Nuvens, passarinhos em V e uma garotinha sorridente feita em palitinhos. Acho. Tenho quase certeza que a cômoda tem alguma cor fantasia. É um quarto infantil, óbvio.

Como foi que ela veio parar aqui?

— Eu espero mesmo que você não esteja aqui há muito tempo — Cassandra murmura.

Poderia deslocar o pescoço com a velocidade que viro o rosto para ela. Os olhos semiabertos enquanto ela esfrega o rosto na tentativa de despertar mais rápido.

— Sim, estou aqui desde às seis. — Sorrio de canto. — Cassandra, você acredita que eu tive que falar seu sobrenome chique lá embaixo? Eu sofri.

— Era algum teste para saber se você não era uma estranha tentando invadir o quarto de alguém? — Senta na cama meio desengonçada. — Pode abrir as janelas para mim?

Eu me levanto, esquecendo da mochila que vai ao chão. Alguns passos bagunçados para pegá-la e puxar a cortina das janelas em cada lado da cama. Poucos minutos quase me fazem esquecer que lá fora o dia está bonito.

E que o quarto é colorido. Com castelos, nuvens de laranja, amarelo... uma girafa em um canto, um gatinho em outro... cômodas em tons pastéis e blocos de montar em um canto. Uau, eu esperava alguma cor, mas não que o quarto fosse tão... vivo.

— Quer me contar alguma coisa? — Sinalizo para o quarto.

— Sem teoria mirabolante como "na verdade a Cassandra tem catorze anos"? — provoca.

Eu me aproximo, sentando na ponta da cama.

— Você tem? — provoco.

Ela semicerra os olhos. Cassandra está como antes: o corte, mesmo que o cabelo esteja caótico, os olhos com olheiras (dia sim, dia não) e as camisetas que agora destoam da estética do quarto. Sorrio. Senti saudades. Talvez alguma outra palavra que signifique "eu não morri nos dias em que não vi você, mas dias como esse parecem mais... certos".

Nem pisco. Será que ela também está fazendo reconhecimento meu depois de... um mês? Ou será que foi menos? Será que eu mudei? Não cortei meu cabelo, a armação é a mesma e tenho quase certeza que esse é o mesmo short que eu...

Ela pigarreia.

— Minha mãe andou lendo alguma coisa sobre hospitais e ambiente acolhedor.... — Cassandra franze o rosto. — Algo assim, aí ela provavelmente entrou em contato com o hospital e acho... que o ambiente acolhedor só estava disponível para crianças.

Sorrio nervosa. É, isso tem dedo meu.

— E o que você achou do seu novo quarto?

— Fofo.

Batuco os dedos no tecido amassado da cama. Ela não diz nada. Minha língua coça para começar outro assunto, mesmo que eu nem saiba qual. Algo banal, fingir que nada daquilo aconteceu e é só mais uma vinda aqui que irei jogar Animal Crossing, conversar sobre qualquer coisa e ficar com o braço colado uma na outra.

— Seu cabelo tá horrível — murmuro.

— Isso é lá coisa que se fale, Belém?

— Estou só dando um toque — brinco. — Ele costuma parecer mais macio.

— Não acredito que você está realmente humilhando uma pobre enfer.

Quase caio em cima dela para abraçá-la. Nem eu mesmo percebo o que estou fazendo até ter que recuar alguns centímetros para saber que não a matei antes de apertá-la novamente. Não, está tudo bem. Cheiro de hospital. Corações encaixados. Não é saudável, mas já estive em situações piores.

Será que foi menos de um mês mesmo ou se passaram anos? Talvez eu tenha perdido a noção de espaço.

— Desculpa — murmura.

— Não, não vou perdoar que você deixou que eu me humilhasse por mensagens — digo.

— Isso aí já é culpa sua — ela diz.

— É, da próxima vez eu venho te matar pessoalmente.

Ela ri. Eu sorrio. Mantenho nossos corpos próximos, os olhos fechados, a perna de um jeito torto que vai dar cãibra e não ouso mover um músculo para sair daqui.

— Para quem disse que meu cabelo não é lavado há dias, você está grudado muito nele.

Eu me afasto, incrédula.

— Ei, não disse isso.

Eu me mantenho perto. Semicerro os olhos, finjo estar mais brava do que estou e ela... finge que não se esforçou para manter seu afastamento. Em um nível "Cassandra está quase chorando".

— Isso é culpa sua. — Deslizo os dedos por sua bochecha.

— Desculpa.

— Já disse, não está perdoada. Você ia me deixar sozinha, é isso? Nunca mais ia falar comigo? — pergunto, mas mantenho os dedos limpando qualquer lágrima solitária que ouse surgir.

— Não.

— Ia. Que coisa feia, Cassandra. Isso é extremista demais.

— É complicado, Belém.

— Claro que não, eu sou super apaixonante e você... — Ela me fita. — Ei, não. Eu estou tentando ser você, a engraçadinha quebra-gelo. Não, sem tirar meu crachá, ok? Vou ficar queimada com o hospital, vão achar que estou criando confusão aqui.

Ela ri.

— Cassandra, ei — digo, um pouco mais séria. — Desculpa, eu... entendi. Não sei o que você sente na prática, mas... eu sei que você está com medo. De novo. Igual seus amigos.

— Eu só não quero que a experiência com você seja ainda mais traumática com... essas coisas.

— "Essas coisas"?

— Eu não acho que seja o melhor dos cenários ter uma garota no estado que estou apaixonada por você. Não, a palavra apaixonada é muito forte, eu só... Que ridículo.

Ela desvia o olhar.

— Vai ser pior? — pergunto. — Deve ser irritante, mas... eu quero te entender. Você acha que vou sentir pena ou... sei lá....

Ela ri.

— Eu acho que é só uma experiência traumática que eu poderia evitar. Eu não estou dizendo que amizade não é importante, mas... não quero adicionar um quê de romantismo trágico nisso tudo. E... que isso seja desconfortável enquanto dure. Não é extremismo, eu só não quero tornar tudo pior.

— Você não está. Talvez você piorou um pouco quando me deu um ghosting e mandou sua mãe me avisar, mas... — Faço careta. — Cassandra, você é importante para mim. Se você quiser que eu não me apaixone por você, certo, eu viro freira. Se quiser que eu finja que isso não aconteceu, eu terei amnésia. E se você pedir com muito carinho, eu até dou meu coração para você. 

Ela pigarreia. Eu me engasgo levemente ao engolir saliva sem querer.

— Literal. Sabe, a gente faz uma cirurgia... — Solto um grunhido. — O que estou tentando dizer é que você é importante para mim e o que você quiser... por mim, tudo bem. Mas eu sei que se afastar por isso não é bom para nenhum de nós. Então eu proponho outro pacto.

— Outro pacto?

— Como pedido de desculpas da sua parte.

— Eu não me lembro de você ter pedido desculpas da última vez.

— Nosso laço é maior agora, você errou mais.

Cassandra semicerra os olhos.

— Você é terrível, Belém.

Seguro a sua mão.

— Você promete que independente do que aconteça, estamos juntas? E que... somos melhores juntas, então não desistimos uma da outra. Na alegria e na tristeza, — sorrio — na saúde e na doença.

— Até que a morte nos separe. — Revira os olhos.

— É, até que a morte nos separe — concordo e ela ri. — Promete? Não, você não é boa com promessas. Então talvez sirva de ameaça: se descumprir, eu morro primeiro.

— Sua psicóloga sabe que você fala sobre suicídio por causa de alguém?

— Não, mas com certeza ela me daria razão. Até que a morte nos separe, Cassandra.

— Ou um sumiço.

— Boa sorte em tentar isso de novo.

— Certo, prometo.

Sorrio.

— Não precisa virar freira, nem ter amnésia e... sem troca de corações, só não pense muito nisso.

— Estou trancando o pensamento e jogando o cadeado fora. — Finjo jogar uma chave aleatória.

— E pare de me imitar, você não é tão bem-humorada assim. — Ela levanta, mas ri por minha causa.

Então sim, eu não irei parar de imitá-la.

— Não posso estar feliz de rever minha amiga favorita? — Cruzo os braços. — Quer ajuda? O que você vai fazer?

— Vou lavar o cabelo antes que você me mande mais uma indireta.

— Foi só um conselho.

Enquanto ela está no banheiro, eu tento me interessar pelo quarto. Imagino provocações, esqueço o que alguma piadinha na ponta da língua e me pergunto se ela já teve um quarto assim quando criança. Também imagino que as mensagens que enviei para a mãe dela estão surtindo efeito, então eu devo enviar mais (devo?). Quando ela sai, tem cheiro de sabonete neutro, shampoo neutro... ou algo próximo de glicerina.

— Satisfeita? — pergunta, dobrando as roupas sujas.

— Mais ou menos — digo.

E ela sorri. Estou satisfeita.

E o cadeado que eu joguei fora, voltou como um bumerangue tão rápido. 


Demorei um pouquinho porque acabei passando a noite em um passatempo pintando, mas oi!! Sentiram saudades? Como vocês estão? Estão bem? Espero que sim! Beijos!! Mil desculpas pelo mês sem atualização. 

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