27 - Modus operandi de Cassandra
14 de Junho
A noite é boa. A gente conversa até tarde, como besteira e é uma memória boa. Para todo mundo. Mavi parece feliz, mesmo que toque no cabelo o tempo todo, Andressa o provoca o tempo inteiro e eu sorrio o tempo inteiro. De diversão, talvez uma felicidade inexplicável ao saber que alguém compartilhou algo tão bonito comigo. Conversei com Marina também, tarde da noite, rindo do seu desastre romântico e a quantidade de "aí tudo bem" que ela fazia.
Mas aí quando tudo ficou silencioso, eu me lembrei. Do hospital, risadas, brincadeiras idiotas por um celular e o coração acelerado. Do pânico, alívio, pânico. De novo. De ir limpar o rosto no banheiro e senti-la respirar aliviada. É engraçado, o alívio pode ser de tudo.
Talvez ela tenha ficado feliz que a confusão se resolveu, que eu me acalmei ou... sei lá, qualquer coisa boba e simples. Eu penso nisso, mas não consigo acreditar. E tudo bem, talvez seja a ansiedade. É a ansiedade. Mas eu tenho minhas justificativas: Cassandra ultimamente está meio estranha quando se trata de coisas que possam ser lidas como românticas.
E, tudo bem, um coração acelerado pode significar muitas coisas. Infarto. Susto. Ansiedade. Pânico. Calor excessivo. Mas eu sei que nada disso se encaixa. Não quando a lembrança do hospital vem com uma memória mais antiga.
O que teria acontecido se eu não tivesse apagado? Ela continuaria agindo assim? Será que desmaiar antes do beijo foi algo super romântico?
Porque essa cena idiota voltou esses pensamentos com tanta intensidade?
Fecho os olhos. Estou a beijando. Toco seus lábios, eu nunca toquei os lábios de ninguém. Seguro a sua mão de um jeito bobo, nunca fiz isso. Toco no seu cabelo, talvez eu queira tocar novamente. E então eu abro os olhos desesperada, como se tudo fosse um pesadelo.
Fico chateada comigo mesma. Não deveria pensar nisso, foi uma noite boa demais para ter um final péssimo. Mas aí eu me defendo: é culpa da Cassandra, ela que está me tratando diferente.
E me acuso. Você não gosta dela dessa forma, Belém. Pare de querer que ela continue te dando atenção como se algo fosse rolar.
Você nem sabe o que é estar apaixonada. Pare de se apressar, confie na Marina.
Mas aí eu mal assisto as aulas de manhã. O vídeo roda, um bonequinho na tela fala e fala, mas estou aérea. Quero resolver isso, mas como se resolve algo que é só palpites sem sentido? Rolo na cama, envio uma mensagem para Cassandra, recebo uma resposta demorada.
Sento na cama. Será que enviar "Oi, será que você poderia me atender de novo hoje? Pago o dobro! Triplo, eu sei que é difícil aturar uma não-paixonite" para a psicóloga é uma boa ideia? Não, não sei o que dizer para ela.
Não me entendo.
O alarme dispara às duas da tarde. Eu coloquei para ter certeza que é um bom horário para ir. Ainda sim, finjo que não estou ansiosa. Demoro no banho, reluto na escolha de roupa e faço tudo em passos lentos. Até mesmo para pedir um carro, continuo agindo como se não estivesse interessada.
A encenação acaba no instante que piso os pés no hospital. Não estou chegando de surpresa, eu avisei. Assim como perguntei "tá tudo bem mesmo eu ir?" mais que duas vezes. Nas escadas (porque ainda me forço a demorar mais), eu me sinto uma visita indesejada.
Se Cassandra morasse em uma casa, ela com certeza se esconderia ao ouvir o som da campainha.
Chega.
Eu preciso saber logo o que está acontecendo e parar de alimentar minha mente com pensamentos bobos. Como? Não sei. Perguntar algo tão ridículo assim? Sem chance. Se for coisa da minha cabeça, vai piorar a situação.
Duas batidinhas sutis na porta e eu entro. Cassandra está sentada na cama, pernas dobradas e muita bagunça. Ela usa presilhas no cabelo para deixá-lo para trás, mas não dá muito certo, há muitos fios de fora. Nas mãos, linha de crochê e agulhas de plástico nas mãos. A coisa esquisita vermelha agora está maior. Ela sorri. Eu quero dar um passo para trás e pesquisar na internet se é possível controlar o coração voluntariamente.
Ignoro, vou até ela. Com normalidade, tiro algumas coisas da cama para conseguir um espaço ao seu lado. Ela acata e larga o crochê sobre a mesinha ao lado.
— Você tem certeza que não me odeia por vir aqui, né? Muitas vezes? — pergunto, incomodada com o silêncio.
— Sim, eu tenho certeza. — Ela sorri. — Mas quero saber o quê você veio fazer aqui hoje.
— Não posso querer ver minha amiga?
— Eu acho que estou moribunda demais para ser uma visão tão requisitada — provoca.
Eu tento me ajeitar na cama para ficar confortável para nós duas, mas acabo esbarrando na mão dela. Ela tira ou... talvez só esteja se ajeitando na cama também. Silêncio. Não me viro para ficar de frente para ela, não sei o que fazer. Que idiotice vir aqui. Eu não tenho nada novo para contar. Ela, muito menos. Talvez seja uma boa falar sobre Mavi. É, é uma boa.
Esbarro na mão dela de novo. Meio inconsciente, meio de propósito. Sou eu que esbarro, sei que vou tocar, mas ainda é um choque quando sinto o toque.
Estamos coladas uma na outra. Que diferença faz que o contato também seja com as mãos?
Seguro. Entrelaço nossos dedos. Nada sai da minha boca.
Um plano surge na minha mente: é fácil descobrir, só tenha atitudes duvidosas e veja como ela reage. É uma boa ideia, coisas sutis e ninguém vai brigar por nada.
O problema é que não consigo prestar atenção no que ela sente. É meio difícil quanto me mantenho ocupada com... pensamentos próprios. E gritaria. Muita gritaria. É como se fosse tantos pensamentos ao mesmo tempo que se tornam um emaranhado de confusão.
Então ela puxa a mão, indo até o celular. Olha a hora, faz um comentário idiota sobre isso. Prendo a respiração e estendo a mão de novo, sinalizando para que ela segure de novo.
Nossos dedos se encaixam novamente. Dessa vez, meu peito queima.
— É legal, mas eu também acho que Mavi é um ótimo nome — comenta depois que termino de falar sobre ontem.
— Não é? Mas confesso que eu também tô curiosa para saber qual ele escolheria. Eu e Andressa ficamos em um site de nomes para bebês dando sugestão — conto e ela ri. — Se fosse eu, ia querer me chamar de Frederico.
— Sério? — Ela vira o rosto.
— Sim.
— Ainda bem que você não é um garoto, então. Péssima escolha.
Eu sorrio.
— Sua opinião é clubista, meu nome é uma das suas coisas favoritas de todas — digo, sem querer.
Como se diz algo sem querer? O cérebro não precisa, sei lá, traduzir a informação para que o som saia da minha boca?
— É.
Cassandra puxa a mão de novo. Eu tento de novo, mas minha mão pousa no lugar errado e é um sinal claro para que eu finalmente pare de tentar. Então eu desisto e me viro para ela. Penso em dizer logo. É que... além de ser difícil criar esses momentos "sem querer", também estou me sentindo desconfortável pela rejeição. Não que isso seja um fora. Mas ainda é horrível tentar fazer algo que claramente ela não está à vontade.
— Você quer me contar alguma coisa? — pergunta, tão incomodada com o silêncio quanto eu.
E eu não respondo de imediato até o plano B surgir na mente.
— Eu sai com a Marina.
— Ontem?
— Não, sexta passada.
— Você saiu com a Marina há uma semana e não me contou?
— Eu fiquei com vergonha — gaguejo, nervosa.
— E então, o que rolou?
— Ah, foi legal. Eu...
O que eu falo?
— A gente se beijou — minto.
Eu vou contar para Marina assim que eu sair daqui.
— Você beijou alguém e não me contou? Você me odeia? — pergunta em um tom meio termo.
Meio piada, meio mágoa.
— É que... acho que eu não gosto de garotas. Fiquei com vergonha de falar pra você, mas é... foi horrível. Eu me senti super desconfortável — minto, mas algumas palavras saem falhadas.
Eu não elaborei a frase por inteiro antes de começar.
— Eu pensei muito nisso antes de te contar — completo, só para deixar a mentira mais confiável.
Cassandra fica em silêncio. Eu me sinto culpada por mentir, principalmente quando estou tentando ser sincera e menos... exagerada. Mas é que eu realmente preciso entender o que está acontecendo e não deixar que minha cabeça invente. Vamos lá, Cassandra, me dê abertura.
— Ah, que pena. Mas as coisas são assim mesmo, não precisa ficar com vergonha — diz, muito mais calma.
Aliviada, de novo.
Desisto.
— Você tem algo para me contar? — Sento na cama, de frente para ela.
Ela franze o rosto.
— ...não?
— Cassandra, seja sincera. Você tem. Eu gosto muito de você, mas sinto que não está confortável comigo desde que a gente quase se beijou. — Respiro fundo. — Eu não sei o que é, mas isso está me deixando nervosa.
— Como assim? Eu estou confortável com você — diz, mas soa robótico demais para que eu acredite.
— Não, não está. Você fazia piadinhas irritantes o tempo todo e agora não faz mais. Toda vez que algo minimamente... íntimo acontece, você desvia como se... como se eu estivesse apaixonada por você! E fosse entender tudo como retribuição. Isso é... horrível. Eu estou desconfortável porque não sei o que estou fazendo para te deixar tão desconfiada assim.
Eu acho que desviei o olhar em algum momento enquanto falava. Quando volto a fitar Cassandra, suas bochechas estão vermelhas. O rosto inteiro pegou coloração ruborizada. Um sinal de que estou sendo ridícula e meu tom parece muito mais acusatório do que "quero resolver isso".
— Desculpa, isso realmente tá na minha cabeça. O climão horrível de ontem, a forma como me empurra para a Marina... eu sei que não tá me tratando mal, mas... é muito diferente da Cassandra que você me apresentou. E se você está com medo de ter que me negar, eu não gosto de você assim... tá? Mas me diz o que eu faço que te deixa desconfortável e aí eu evito.
Cruzo os braços. Acho que vou desmaiar de novo. Estou olhando para ela, mas a visão desfoca. Conta de um até dez mentalmente.
— Desculpa — é ela quem diz.
— Não quero suas desculpas, quero que me conte o que está rolando porque você é... a minha companhia e eu ainda sou um pouco ansiosa con tudo, não quero ter que deixar minha mente inventar o que você está pensando.
Ela senta na cama também.
— Não estou fazendo isso por sua causa. Você não tá fazendo nada de errado.
Desvio o rosto, incomodada. Por favor, eu estou sendo sincera aqui!
— Talvez seja eu.
— Como assim talvez seja você?
— Eu senti sua falta — confessa. — Quando você decidiu se afastar. Todos os dias. Foi ridículo porque eu estou sempre sozinha aqui e as pessoas sempre vêm e vão... mas eu pensei em você com certa frequência. Eu fiquei preocupada, eu... fiquei o tempo inteiro pensando em coisas para te contar.
Nem pisco. É como se todas as funções do meu corpo tivessem sido desligadas no instante em que ela começa a falar. Letra por letra. Palavra por palavra, meu cérebro vai engolindo cada uma e formando o significado de um jeito tão... bom. Como se ouvir isso fosse um prêmio.
— É normal sentir falta da minha única companhia, mas eu sei que não é isso.
— Como assim?
Ela pressiona os lábios.
— Quando eu me ofereci para te beijar, não foi certo porque eu estava com segundas intenções. Eu... olha, não sei o que deu em mim, mas ainda bem que não aconteceu. Para piorar, eu fiquei tão aliviada que não aconteceu que fiquei feliz que desmaiou. — Ela ri, nervosa. — Claro, se tivesse rolado... eu ia morrer de culpa.
— Mas você não me forçou, Cassandra. Você perguntou, eu topei — justifico, confusa. — Não tem porque sentir culpa.
Ela me fita.
— Belém, eu... me ofereci para te beijar... porque eu queria, entendeu? Eu... ia me aproveitar da sua confusão para te beijar.
Separo os lábios para perguntar "do que você está falando?", mas nem termino. Meu cérebro entende.
— Você gosta de mim?
— É só uma quedinha. Não, isso não tem importância. Eu nem sei quando surgiu, eu nem percebi que tinha acontecido até aquela noite. Se eu tivesse percebido antes, nunca teria me oferecido para aquela idiotice.
— Como é uma "quedinha"? O que você sente? — pergunto, curiosa.
Cassandra me olha, surpresa. Eu tento disfarçar, mas... eu quero saber o que ela sente, quero que ela me diga detalhadamente o que é uma quedinha. Será que ela também pensa em completar aquele beijo? Será? Então isso é uma quedinha?
— Belém, isso não é importante. Eu não quero nada com você.
Claro que quer, você queria me beijar!
Não digo, só penso.
— Eu... olha, essas atrações bobas passam e eu não me importo. — Ela segura minha mão. — Não me importo de ter qualquer interesse por você, eu não vou morrer por isso. E para mim, isso não afeta quase nada nossa relação.
— Quase.
Cassandra respira fundo. É óbvio que afeta. Pelo visto, mais para ela do que para mim.
— Não consigo falar bobeiras porque sei que agora tem um pingo de verdade. Flertes, toques... eu não me importo com uma quedinha reprimida, mas também sou um ser humano. E eu não quero alimentar isso. Primeiro, é ridículo. Segundo, mesmo se eu não gostasse de você, eu nunca teria começado a flertar de brincadeira se tivesse alguma chance de gostar de mim. Jesus, eu achava que você era hétero! Era só brincadeira.
— Mas não tem nenhuma chance de... eu... gostar de você, Cassandra. — Estou sendo sincera, mas não parece quando dito em voz alta. — Você é minha melhor amiga depois de anos sozinha, eu não vou fazer isso.
É esquisito porque, por fora, eu não estou falando tão mal. As frases saem coerentes, não falham tanto... mas por dentro, que pânico esquisito é esse? Repetir "Belém, tá tudo bem. Você já falou sobre isso na terapia" não está surtindo efeito.
— Belém, se você gosta de garotas, existe uma chance. 1%... 0,0001%, não importa. E eu não quero. Nunca vou me perdoar se eu te fizer gostar de alguém como eu.
Sorrio, nervosa.
— Eu não vejo problema em gostar de você. Se eu gostasse, o que isso importa? — digo e a sensação com o coração é diferente agora.
É como se alguém o tivesse apertando (como é que se aperta um coração?).
— Belém, você não foi querida por um bom tempo. Seus pais, seus amigos... não acha injusto que agora que finalmente está se encontrando, vai se interessar logo por alguém que está em um limbo entre a vida e a morte? Você não acha que é dolorido demais? Você merece coisas melhores, não pode se interessar por alguém com um coração frágil – diz, baixinho. — Eu não vou deixar. Se tiver uma chance, eu prefiro ficar sozinha, mas não te deixo mais voltar aqui.
Engulo em seco. O silêncio quando ela termina é esquisito. E se eu gostar dela também? Não posso suprimir? Eu também não quero trocar nossa amizade, não quero... que a gente pare de se falar. Mas sinto que quando ela termina de falar, o pior que posso fazer é dizer isso. Defender uma paixonite hipotética da minha parte. Ela não deixou uma abertura para eu dizer o que sinto.
Então ignoro a minha parte que quer defender isso. Que há poucos minutos pensou que seria uma boa ideia falar sobre isso.
— Se você fizer isso, eu... morro primeiro e puxo o seu pé — tento suavizar a situação depois de um tempo e ela sorri.
— Eu não vou fazer. Não quero, você me faz bem. Eu nem queria que soubesse disso, não percebi que estava tão na cara — confessa. — Além do mais, se você não gosta de garotas... essa conversa não tem importância.
Desvio o olhar.
— Só estava jogando verde. — Aliso o braço.
— Então você gostou do beijo da Marina? — Sorri.
— Não aconteceu nenhum beijo. — Olho para as próprias mãos. — Eu... não penso nela assim. Mas ela ultimamente está sendo uma ótima amiga, a gente conversa bastante.
Ela assente, de novo. Esquisito.
— Fico feliz por você.
— Mas olha, Cassandra, eu realmente não gosto de você assim, tá? Eu não me importo que a gente fique próxima uma da outra ou... qualquer coisa. Só quero que fique confortável comigo, a gente fez uma promessa e vamos cumpri-la juntas, tá? — reforço, mais por medo do que por qualquer outra coisa. — E... eu entendi seu lado, tá tudo bem.
— Obrigada.
Alguém bate na porta. A enfermeira entra, mas não está sozinha. Outro paciente vai silencioso até a cama ao lado junto a um acompanhante. Eu saio da cama, meio sem graça e me sento na poltrona. Eu e Cassandra nos entreolhamos, ela sorri. Eu também, mas é falso. Como é impossível conversar sobre isso, eu entendo que é melhor ir embora.
— A gente se vê amanhã — digo. — Desculpa por hoje.
— Até amanhã, Belém.
Não penso nada no caminho inteiro de volta para casa. Eu converso com o motorista, que é do tipo simpático e finjo que a conversa que tivemos nunca existiu. Não, não é bem assim. É só tão... confuso. Ela disse que sente atração por mim e por um segundo eu fiquei feliz. Eu quis saber mais, eu... o que diabos eu estava pensando? Mas agora, eu preferiria que ela não tivesse me contado.
O que eu faço com essa informação agora?
Não consigo chegar ao quarto antes do meu celular vibrar com uma mensagem nova.
É a mãe dela.
Ana: Oi, meu bem. Lembra de mim? É a mãe da Cassandra. Fico muito feliz que você esteja sendo uma ótima companhia para minha filha, mas hoje conversamos e a gente decidiu que é melhor suspender as visitas por um tempo. Interação no geral pode deixá-la um pouco fraca, então é melhor uma pausa curta, né? Mas não se preocupe, não é nada demais. Sempre estaremos positivos em relação a Cassandra.
Oi!! Como vocês estão? Espero que bem <3
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