23 - "Aliadismo"



28 de maio

Não é tão ruim assim falar com uma desconhecida que anota coisas em um caderno e responde calmamente os maiores absurdos do mundo. Tudo bem, ainda é estranho. Tenho frio na barriga antes da sessão, mas passa. O que é estranho, eu ainda não sai de nenhuma terapia sem chorar. E para mim, chorar é péssimo. Uma fraqueza. Então... por que me sinto tão mais confortável de estar com os olhos marejados quando saio, mesmo que precise passar por várias pessoas antes de ir embora?

Pais deploráveis? Falei. Dificuldade em me sentir próxima dos meus amigos? Também. Tenho uma amiga que vai morrer? Sim. Tenho nota suficiente para passar em medicina, já que eu sempre tive a melhor educação de todas, mas fingi que não e não me inscrevi em nenhuma faculdade por não saber o que fazer? Ainda não. 

Daqui alguns meses, talvez eu possa começar a abrir terreno sobre... a esquisitice subnotificada.

A que me faz ler livros nas horas vagas. Logo eu, que nunca fui uma leitora ávida. Compradora de livros? Talvez. Algo um tanto curioso, os primeiros livros que leio de verdade não foram nenhum das pilhas que compro.

Em algum momento, devo ir na livraria conversar com Marina e devolver os que terminei. Eu dei o meu número, mas ela não me mandou nenhuma mensagem, ainda que eu tenha demora mais que o aceitável depois de tudo.

— Você gostou de tomar esse? — Tiro da mochila a caixa de remédios.

Tive a minha primeira consulta psiquiátrica. Não gostei tanto quanto terapia, mas a Rebeca me encaminhou e... agora tenho uma amostra do remédio que vou tomar todos os dias, às 9 da manhã. Como é no mesmo lugar, atravessei o corredor e subi as escadas para encontrar Cassandra.

— Falando assim, antes de me perguntar se eu já tomei, até parece que já experimentei todos os antidepressivos do mundo — Cassandra provoca.

— Ser-tra-li-na — leio o nome na embalagem, devagar.

— Ah, tomei. Mas não, não vou dizer nada. É importante que você não seja manipulada pela opinião de terceiros.

Reviro os olhos.

— Você é terrível — resmungo. — Mas tem sintomas colaterais?

Ela não responde. Se eu tivesse algo para jogar nela, jogaria. No momento, ela parece uma criança energética: sentada na cama, balançado os pés e segurando o sorriso ao me ver irritada por bobeira. 

A gente se viu todos os dias da semana, mesmo que não fosse lá uma grande interação. Em uns deles, assistindo videoaulas sobre processos erosivos ou triângulos equiláteros. Em outros, depois da terapia, em silêncio. Nada. Nem sei porque eu vinha, talvez por ser perto demais para recusar, me sentando na poltrona de sempre sem ter um único pensamento na mente.

Ou muitos, de maneira que congestionava tudo.

— Eu não sei se eu precisava meeesmo de medicação — confesso, me espreguiçando. — Tipo, talvez a terapia já resolva.

— É... como explico? Às vezes, se você passa tanto tempo em uma melancolia, é preciso uma ajudinha para o seu cérebro voltar a produzir os hormônios certinhos. Não é nada absurdo.

— Será que resolve rápido?

Ela não responde.

— Cassandra, você é chata — a ofendo de novo.

Meu celular vibra, dentro do bolso. Quando me afasto para ver, há uma mensagem de um número desconhecido.

"Você conhece alguém que rouba livros?"

Franzo o rosto. Não tem foto no perfil, mas é específico demais para eu não associar a uma única pessoa.


Belém Martins: Marina?

Marina: meu deus, finalmente

Marina: você me deu seu número errado! eu acabei de ferir a LGPD atrás dos seus dados no cadastro na livraria pq realmente fiquei com medo de voce ter.... ficado com meus livros

Marina: você trocou o 6 pelo 5

Belém Martins: foi sem querer!!!! mas eu planejava ir na livraria te devolver, juro. não estou roubando seus livros.


— Que foi?

Levanto o rosto. Provavelmente fiz caras e bocas pela reação à mensagem de um número desconhecido e pela quase acusação de roubo.

— Peguei emprestado alguns livros com uma garota. Ela me pediu meu número e eu dei errado, sem querer, e a coitada pensou que eu tinha roubado.

O que é engraçado, tenho o mesmo número desde sempre. Não sei como pude dar errado.

— Vocês não se conheciam?

— Não, eu fui na livraria procurar um livro, não tinha e aí ela viu a situação e se ofereceu para emprestar — explico.

Como se fosse um livro específico e não livros (plural) românticos com mulheres (também plural) no casal principal.

— Ela, desconhecida, simplesmente se ofereceu para te emprestar um livro sem te conhecer? — pergunta, desacreditada.

Ela parece tão surpresa com a possibilidade que eu nem ouso dizer que foram dez livros, de uma vez.

— Sim, a gente foi até a casa dela e ela me emprestou — explico e ela semicerra os olhos.

Como se eu fosse cínica.

— Olha aqui.

Sento ao seu lado e mostro a tela do celular, para comprovar.

Mas aí a Marina acabou de enviar uma mensagem dizendo "ah, eu fiz por piada, garotas bonitas como você não fariam isso". Eu espero que Cassandra leia, mesmo que meu rosto esteja queimando de vergonha. Ela vira o rosto para mim assim que termina.

— Que livro você pegou emprestado? — pergunta, como se lesse meus pensamentos.

Mas ao invés de manter seu olhar inquisidor, ela ri da minha situação. Eu sei lá porque não quero contar que estive procurando livros sáficos na livraria.

— Estou quase chateada que uma novata tem mais facilidade do que eu com garotas — brinca.

— Jesus, eu não fiz nada. Ela trabalha na livraria, me ofereceu os livros e foi gentil. Eu aceitei porque estava deses... interessada em ler coisas novas — explico e ela ri mais ainda.

Certo, há algum hormônio novo no meu corpo que reage sempre que Cassandra ri de fechar os olhos.

— Talvez você tenha o charme.

— Não tenho nada, não — resmungo. — E eu não pensei nisso, duvido que seja isso, mas agora que você falou, vou ficar com mais vergonha ainda de ir devolver os livros.

— Ué, por quê? — pergunta, como se não tivesse se divertindo às minhas custas.

— Eu não tenho nenhum interesse nela? Cassandra, para de rir. Chata. Eu não pensei mais nisso.

Em alguém específico? Não. Em mulheres fictícias, muitas vezes retratadas como misteriosas e rabugentas? Talvez.

— Você é muito 8 ou 80, né? — pergunta. — Não é uma coisa para se pressionar, você também pode conversar com ela em forma de conhecimento e não "caramba, estou apaixonada".

— Eu não.

— Conversar sobre os livros que você leu.

— Eu já sei o que ela pensa, anota em post-its transparentes em páginas que gosta — explico. — E não, não tenho coragem. Vai que ela acha que tô dando corda?

Cassandra revira os olhos.

— Que livros você leu? — Desvio o rosto. — Belém, eu acho que já entendi que são livros lésbicos.

— Não são, tá? Também tem um livro sobre vidas trans e outro sobre o Stonewall. Estou aprendendo, como uma boa aliada.

Ela ri.

— Tudo bem, aliada. Por que você não finge que quer tirar algumas dúvidas com ela e manter seu "aliadismo" em dia? — sugere.

— Essa palavra nem existe. E eu não tenho dúvidas — retruco.

Ela semicerra os olhos.

— Tudo bem, vou parar de ser chata — desiste, suavizando o olhar. — Mas... eu realmente acho que vai ser bom para você interagir com...

— Uma garota sáfica? Ué, e você? — Cruzo os braços. — Se ela realmente estiver fazendo isso por qualquer interesse, eu não vou gostar de enganar a coitada.

— Com uma garota sáfica e desconhecida. Você pode se soltar devagar e, sabe, não necessariamente precisa se interessar ou beijar ela no final. Só acho que, se você experimentar uma interação mais leve, talvez te ajude a se entender um pouco sem a pressão.

Não me parece uma boa ideia, mas... Cassandra está sendo genuína ao me recomendar que eu tente me aproximar de Marina.

— Acha? — digo, só por não saber o que dizer.

— Sim. Não é do seu círculo de amigos, nem uma amizade próxima. Você pode começar devagar, conversar coisas bobas... se aproximar naturalmente.

— E se eu não gostar dela e ela me odiar?

— E se você gostar? — sugere, calma.

Fecho a cara. Como assim gostar? Eu não vou gostar de ninguém. Ainda nem cheguei nesse tópico com minha psicóloga! Ela precisa saber, já tem coisas acumuladas demais e eu agendei "falar sobre minha apatia romântica e meu provável interesse por garotas" para setembro.

— Confia em mim. — Segura minha mão. — Além disso, acho que é um bom momento para viver coisas novas.

— Não é melhor eu estar com pelo menos 3 anos de terapia?

— Você não precisa parar sua vida até resolver todos os problemas do mundo — diz enquanto brinca com a minha mão.

Sorrio, mais interessada no gesto que ela faz com as nossas mãos. Inquieta, movimenta os meus dedos, puxa a mão como se eu fosse um bonequinho maleável. Tão interessada que esqueço de continuar a conversa, apenas olhando para o gesto até que ela tire a mão repentinamente.

— Tenho um exame de rotina agora.

— Ah, eu acho que é hora de eu ir também. Ou você quer que eu fique? — Ela nega, balançando a cabeça. — Amanhã começa minhas aulas práticas da auto escola.

Eu me levanto, ajeitando a calça e desamassando a bolsa que carrego.

— Remarca — diz, sem pensar duas vezes. — A gente se vê semana que vem.

— Eu ainda posso vir — Franzo o rosto. — Ou você...

— Você vai entender.

Eu espero que sim, já que cogito as piores opções em poucos segundos.

— E responde a garota, Belém — diz, um pouco mais alto, já comigo do lado de fora.

Eu realmente tiro o celular do bolso assim que me afasto, indo até o contato de Marina e olhando a última mensagem. Editada. Sem o flerte. Estou dividida em responder como se não tivesse visto ou... tentar agir como Cassandra. Não, melhor não. Não estou interessada, é para ser uma interação calma e sem pressão.

Por outro lado, eu ficaria com vergonha de ter sido ignorada a ponto de modificar a mensagem.


Belém Martins: ótimo!!! eu também pensei que uma garota bonita como você também não me acusaria de roubo kkkkkkkk

Belém Martins: desculpa, estava em uma consulta! vi a mensagem apenas para me defender


A risada foi propositalmente grande para forçar piada e não flerte. Algo meio "kkk, divertido, vi sua mensagem!!! não morra de vergonha", o que me deixa nervosa ao guardar o celular no bolso antes de descer as escadas. Mas basta uma vibração para que eu o pegue novamente sem pensar duas vezes.


Marina: ...leu os livros? gostou de algum? :)

Marina: por favor, não diga se não :(

Belém Martins: eu AMEI!!!!! inclusive me diverti muito com suas anotações e concordo com todas as fitinhas

Marina: MEU DEUS EU ESQUECI DISSO

Marina: não é PRA LER É PESSOAL!!!

Belém Martins: você grudou no meio das paginas! voce não sabe o esforço que fiz para ler sem amassá-las

Belém Martins: foi mal! desculpa! mas adorei todas.


Digitar e descer escadas não é bom. Além da demora para fazer um percurso comum, eu quase tropeço no penúltimo degrau antes de finalmente chegar no térreo. Marina me pergunta sobre os livros e não dá espaço para que eu tenha vergonha de dizer, já que ela fala primeiro. Eu sou meio polida, como se fosse uma crítica de site renomado que não pode deixar emoções afetar o trabalho, ela é entusiasmada.

Tá, não é tão ruim. Não é como se eu estivesse nervosa para conversar ou tremendo um pouquinho ao escrever (estou). Além disso, não tive coragem de falar com Cassandra sobre os livros e eles não fazem o tipo de leitura de Mavi e Andressa — ainda que eu tenha contado um pouquinho sobre as vizinhas rivais enquanto comia pizza.

E não tem nada meio "então você gosta de garotas" na conversa, até porque Marina não sabe de nenhuma das minhas esquisitices como se obcecar por uma garota de coração frágil ou quase beijar a amiga da garota de coração frágil.

Ainda sim, há uma estranheza em mim ao sair do hospital enquanto escrevo as mensagens. Não é pressão, não é "eu não deveria estar fazendo isso", mas... daqui alguns meses eu penso nisso.

Sei lá, muita calma nessa hora. Esqueça isso, Belém.



Oi, gente! Como estão? Antes de tudo, desculpas meeeesmo pelo atraso! Na verdade, para postagens essa semana foi um azar (mercúrio retrógradoooo /p). Tive dificuldade de entrar no docs, tive que separar os capítulos, um problema ali e outra acolá antes de postar, mas conseguimos quase sem atraso (mas eu tentei! juro! mas eu não tinha Internet mesmo).

Ao que importa: planejei a semana por dois motivos. O primeiro é que vocês estavam com a história parada e eu sei que isso é chato. A segunda parte é que momentos meio Belém quer morrer sempre me deixa aflita porque são capítulos mornos, silenciosos e desconfortáveis. Pelo amor de Deus, eu quero beijoca!!! Não traumas!!! Então pensei que para leitura agradável, talvez matar um pouco com uma cajadada só ajudasse.

Também justifico os capítulos meio curtos com: meu planejamento inicial com a história era que ela fosse meio que um diário (por isso, as datas!). evito bastante colocar mais de uma vez de uma vez, exceto quando há dias só com mensagens!

Assim como Amélia Lobos foi, essa história é um experimento que eu nunca sei o que vocês vão achar ao decorrer das páginas e as mensagens positivas semana passada foram MUITO agradáveis para mim! Principalmente para continuar sem tremilique (ok, estou nervosa ainda). Fico muito feliz que vocês estejam gostando e que possa colher os frutos agora <3

(Ainda vou postar no instagram! E tenho arte delas!!!!!!!!!)

Beijocas! 



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