20 - Amigos de verdade


Motivos para que Cassandra tenha decidido parar de flertar daquele jeito bobo comigo:

Um, ela entendeu tudo errado sobre o meu pequeno nervosismo quando se ofereceu para me beijar e agora acha que estou interessada nela quando eu definitivamente nunca pensei em nada romântico sobre Cassandra Ribeiro Rozhdestvenskaya tipo, juro, eu nunca pensei nisso e nem estava "uau, que garota apaixonante que se ofereceu para me beijar".

Fim dos motivos.

Estou irritada. Brava. Furiosa. Levemente chateada.

Como Cassandra pode pensar isso de mim? Meu Deus, eu só estava com uma dúvida idiota na cabeça e ela quem se ofereceu. Eu não pedi! E agora ela está agindo como se eu tivesse tentado beijá-la e agora precisa evitar flertes idiotas que nem são tão charmosos assim. O que foi? Ela está achando que vai me fazer se apaixonar por isso? Que eu vou entender as coisas erradas?

Babaca.

Cassandra é uma idiota.

Fecho os olhos. Respiro fundo. Um, dois, três...

Jesus, ela nem está me tratando mal ou nada do tipo. Ela ainda é a mesma garota que me enche o saco por mensagens e quer saber mais da vida do que me conta sobre a dela. Os flertes bobos nem importam tanto, que ela pare de fazer, então.

Não vou ficar chateada por isso. Talvez seja normal que ela pense sobre um possível interesse da minha parte depois daquela idiotice. Seja racional, Belém Martins. Não culpe Cassandra por um erro seu.

Pelo menos, esse choque de realidade limpou minha mente de tantos beijos (ainda penso o suficiente para me tirar o sono).

As aulas teóricas de habilitação são online. E o tal curso da Fernanda Pinheiro também, que nada mais é do que aulas idiotas de coach que não serve para nada (e eu sinto até vergonha de ter comprado).

Estou triste de novo. Um pouco pelo gesto de Cassandra, já que sei que é culpa minha e talvez tenha prejudicado nossa relação. Dias terríveis. Meu baixo ânimo está gritante, eu mal saio do quarto e... já li três livros enquanto deveria prestar  atenção nas aulas — que estou pagando.

E também quando deveria sair do quarto também, já que prefiro que ninguém saiba de como está minha cabeça. Os livros não são nada demais, só são livros bem escritos e... românticos ao extremo. Entre mulheres. Dois são romances fofos que me deixam rindo de bobeira, mas o atual é adulto entre duas vizinhas rivais meio... erótico. Eu pulo todas as páginas que começam a acontecer algo, como se alguém estivesse atrás de mim. Mas basta que o dia termine para que eu volte e os leia em um misto de estranheza e curiosidade.

Marina marcou várias frases e acho ridículo como eu também marcaria as mesmas se o livro fosse meu. Anotações em post-it transparente e reações por adesivo de carinha. É até mais divertido, parece que estou lendo em dupla — ainda que seja na escuridão do meu quarto e eu não saiba nada da dona do livro (só que ela odeia chocolate branco tanto quanto a protagonista).

Uma companhia silenciosa.

— Belém? — Mavi bate na porta.

Eu coloco o livro imediatamente embaixo do cobertor e me levanto, indo até a porta.

— Tá muito quente — diz, mesmo ao perceber que meu frio está tão gelado quanto seria no polo norte. — Quer ficar na piscina com a gente? Você mal tá saindo do quarto.

— Não, eu... — Viro o rosto, tentando procurar uma mentira em um sábado. — Estou fazendo uma redação.

O quarto está escuro. Um breu com um único abajur, que serve para iluminar a leitura. Duas da tarde, eu sei. Luz solar. Mas não importa.

— Tem certeza? Você pode fazer lá perto, fazer companhia.

Nego, nervosa.

— Mais tarde eu desço e fico com vocês? Só vou terminar aqui — reforço. — Não quero deixar para depois.

— A gente te espera lá, então.

Ele parece pensativo quando se afasta e eu fecho a porta só quando o vejo descer as escadas. Respiro fundo, aliviada, e volto para o meu livro. Está em uma parte importante, elas acabaram de brigar e sinto que finalmente vem aí algum tipo de declaração — minha parte favorita de tudo.

Leio uma frase. Duas. E me sinto meio culpada por não dar atenção para Mavi. Tento não me importar, mas percebo que não estou me concentrando bem na leitura de qualquer forma. Suspiro e resolvo que interagir com os únicos amigos que tenho é importante. Ajeito o cabelo, troco de camiseta e vou até a área de lazer da casa.

Mavi e Andressa estão na beira da piscina conversando. É, aqui fora está bem quente.

— Às vezes sinto que ela não se sente confortável com a gente — Andressa confessa. — Não somos amigos-amigos. E aí, pelo visto, não dá para fazer nada para ajudar.

A mente pessimista diz que é de mim que ela está falando e eu recuo, sem fazer barulho e me mantenho em um lugar que ainda consiga escutar a conversa baixa.

— É normal que ela seja mais reclusa depois de tanto tempo sozinha — Mavi pontua.

— Eu sei, tá? Todo mundo precisa de espaço aqui, beleza. Mas eu não acho que isso seja só "se acostumar a ficar sozinha". Você lembra do que te falei quando te pedi para arrumar algo que fizesse ela sair de casa e a gente foi pra casa da Duda?

— Bem, os pais dela são uns filhos da puta que a deixaram a Deus dará, é normal que ela... tenha problemas. Estranho seria se não tivesse, todo mundo sai com sequelas de coisas assim.

Ah, problemas.

Andressa solta um grunhido.

— Tudo bem, sabichão. Além do dia que a gente cozinhou juntos depois de conversar, em algum momento ela se abriu com você e disse alguma coisa? Transpareceu passar por algo? Mavi, a Belém é legal, ela é super gentil e eu gosto da companhia dela, mas não acha que... ela não se sente confortável com a nossa? Que parece estar sempre se policiando para não parecer estar...

Triste, ela diz. Triste.

— Tenho medo que estarmos aqui só atrapalhe ela. Deve gastar uma energia enorme com a gente, fingindo que tá tudo bem...

Eles continuam conversando, mas eu dou meia volta em silêncio e volto para dentro de casa. Subo as escadas como se uma pisada forte fosse ruir a cada degrau e fecho a porta do quarto atrás de si. Não volto para o livro, nem chego até a cama quando começo a chorar de raiva.

Não deles, de mim. Eu não me esforcei o bastante para fingir ser normal e agora não é só mais uma paranoia minha que eles não se sentem meus amigos. Talvez eles saibam que eu os chamei para cá por impulso ou... que na maioria das vezes eu nem sei o que estou fazendo.

Não percebo quando começou, mas me sinto sem ar. Ainda encostada na porta, percebendo que estou ferrada, eu só... não sei o que fazer. Continuar me esforçando para fingir que sou alguém legal sem problemas?

E se eles... forem embora?

Meu Deus, eu não quero que eles vão embora.

Tudo bem, calma. É só voltar lá e desmentir. Só. Não vai ser tão difícil. Além disso, você só estava nos últimos dias sozinha no quarto porque estava lendo um livro, não porque queria morrer.

Só.

Mas eu queria morrer antes de ir na casa da Duda.

Não, não queria. Só... estava sem forças o suficiente para parecer alguém realmente legal.

Não sei onde recorrer. Eu não posso entrar nesse assunto com Cassandra, meus outros dois amigos são eles e ficar parada não é uma opção. Em minutos, minha mente já está me bombardeando de culpa por não ter prestado mais atenção. Se durar mais tempo, sei que vou colapsar.

Mas minha lista de contatos é tão vazia. Eu não vou pedir socorro para as minhas ex-amigas, ligar para os meus pais ou falar com algum desconhecido que foi meu colega no ensino médio.

Quanto menos pessoas souberem disso, melhor.

Fecho os olhos. Clico no contato de Cassandra. Eu já estou me sentindo mal, quebrar uma promessa que eu mesma fiz não tem como piorar mais do que já está. O som de ligação sendo chamada parece uma eternidade, com pausas longas e... aí ela atende.

— Desculpa, estava no meio de uma terapia em grupo — diz.

E aí eu travo. Separo os lábios, pronta para perguntar o que devo fazer, mas nada sai.

— Belém?

— Tudo bem, não fala mais comigo depois disso. Cumpra o acordo que combinamos. Só... eu... preciso de ajuda.

Pausa. Cassandra não diz nada por alguns segundos, mas posso ouvir sua respiração.

— O que aconteceu?

— Eu vi Mavi e Andressa conversando sobre mim. Eles... sabem que eu sou... defeituosa há um... bom tempo. E Andressa disse que talvez eles ficarem só está me atrapalhando. Eu... juro que me esforcei para ser normal. Sou uma péssima amiga, mas não quero que eles saiam daqui. Não quero que se afastem.

Minhas mãos tremem, minha respiração continua desregulada e o peito doi.

— O que eu faço? — sussurro.

— Você vai conversar com os dois — diz, firme.

— Não, eu não vou. Quero uma maneira de contornar a situação, não me expor... mais — gaguejo.

— Belém, você nunca vai conseguir ser amiga de ninguém se mantiver uma barreira para que ninguém veja quem você é de verdade.

Fecho os olhos.

— Eu não estou apontando o dedo em você — continua. — Quem sou eu pra fazer isso? Só... você precisa conversar com os dois. Eles não te odeiam e aposto que estão preocupados.

Eu não queria causar preocupação em ninguém. Não é isso que eu quero que as pessoas sintam de mim.

— Seus amigos estão preocupados — repete. — É assim que eles ficam quando alguém que gostam está mal.

— Eles vão embora se souberem.

Andressa disse, eles vão. Será que eu deveria implorar para ficar?

— "Se souberem", Belém? Eles já sabem. Se eles quisessem ir embora por isso, já deveriam ter ido. Se ainda estão aí, você não acha que é um esforço para se aproximar? E aí, o que você faz? Repele mais?

As lágrimas não param de escorrer. Não importa o quanto eu limpe o rosto ou me esforce para parar.

— Belém, seja sincera. Você está feliz com uma amizade que precisa mostrar apenas 15% de si? Realmente vale a pena? 

Feliz-feliz? Não estou. É bom, eu gosto deles, eles me divertem e são boas companhias, mas é tão... cansativo. Mas amizades vem com sacrifício e eu não me importo de me sacrificar por isso.

— Vale a pena, Belém?

— Vale.

Cassandra ri.

— Porque você não sabe o que é ter amigos de verdade. Você entenderia que ser amado também é saber que as pessoas se preocupam com você, que elas não vão te abandonar em um momento difícil e que vão ficar, mesmo sabendo que nem tudo é bom o tempo inteiro. Eu não te julgo por ter uma visão deturpada de amor, eu também já tive.

Alguém bate na porta.

— Só não quero que você cometa o mesmo erro que eu — Cassandra completa.

— Belém? — Andressa me chama. — Tá aí?

Tenciono, sem responder nenhuma das duas.

— Belém? — chama mais alto.

— A gente se fala depois — Cassandra diz, percebendo que alguém está falando comigo aqui. — Espero que dê certo.

E então, desliga. Sem opção, eu abro a porta. Andressa provavelmente iria me chamar de novo, já que os lábios ameaçam abrir antes de me ver. Com os olhos esbugalhados, as bochechas úmidas e as mãos trêmulas. Decai muito rápido. Mavi me olha assustado, parado de braços cruzados, como se os dois tivessem decidido vir me ver.

— Eu juro que eu estou me esforçando para ser uma pessoa legal e eu não sou... ruim. Por favor, não fiquem chateados comigo, eu prometo que não vou pesar ninguém com meus problemas... Vou ser diferente.

As palavras saem atropelando umas às outras e me arrependo no instante que vejo o olhar dos dois, surpreso.

— Belém... por que você tá falando isso? — Mavi pergunta, cauteloso.

— Porque sei que é chato lidar com alguém assim, mas eu prometo que...

— Jesus, deixe de ser boba. Que se dane o que a gente pensa, estamos preocupados com você. — Andressa me interrompe. — Que você tá mais pra lá do que pra cá, eu sei desde que aceitei morar aqui.

— Andressa.

— Mavi, você não teve coragem de vir falar, então agora cale a boca. Belém, a gente gosta de você. Gosta tanto que estamos tentando uma abertura desde que eu cheguei para conversar sobre isso, mas é impossível, então, chega.

Mavi respira fundo, semicerrando os olhos em direção a Andressa.

— A gente até tentou conversar com aquela estranha do hospital, mas não achamos nenhum dado  a internet. Estamos preocupados e o pior é que nem sabemos do quê — Andressa suspira.

— O que a Andressa quis dizer é que se você tiver algo para contar, vamos ouvir. E que se você precisar de ajuda, também estamos aqui — Mavi diz, sutil. — Só não queremos que você fique mal sozinha.

— É, a gente fica os três.

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