14 - Belém, não coma camarão

9 de Março


Cassandra só ficou duas vezes sem camisas de manga comprida na minha frente. Em uma, foi tão rápido que não deu para raciocinar. Na outra, eu estava com vergonha demais para prestar atenção e formar uma imagem nítida das tatuagens. Mas quando ela me envia uma foto, tirada de frente pro espelho, de regata curta e com as mãos apontando para um desenho em específico, é fácil fisgar cada detalhe.

O rosto de um anjo diabinho em estilo tradicional acima do peito. Em tom de vermelho vivo, com bochechas coradas e expressão maliciosa — ainda que seja fofo. É para ele que ela aponta enquanto faz careta e também a primeira coisa que vejo quando abro a imagem. A segunda é a cara de boba, que me faz sorrir toda vez que meus olhos chegam lá. 

Porque talvez eu tenha passado muito tempo olhando e dando zoom em cada detalhe, como se isso fosse realmente me fazer conhecer mais Cassandra. E bem, talvez a única informação que posso tirar é que ela seja resistente à dor.

Tem oito corações diferentes espalhados pelos braços, apenas os que consegui ver. Em formatos diferentes, tortos, mais puxados para os reais ou cartoons. Ela tem uma tigela acima do cotovelo esquerdo. Só dá para ver uma parte, mas meu cérebro traduz fácil: yakissoba. Um cachorro gordo, cruzadinha e... acho que uma casa acima da cintura — boa parte está coberta pela blusa. Algumas coloridas, outras em traços finos... parece Cassandra.

De algum jeito, isso parece Cassandra e olhá-la assim, por mais bobo que seja, realmente me faz descobrir mais dela. Sei lá, tatuagens pelo corpo dizem mais sobre alguém que doenças cardíacas e problemas em comum.

É sábado, então não consigo planejar algo para levar para Cassandra. Minhas pernas acordam com o dobro de dor e Mavi ainda está aqui, o que torna as coisas menos silenciosas e o tempo mais preenchido. Pelo menos, consigo carona com Mavi — ainda que ele pergunte o caminho todo sobre "minha amiga do hospital". Não é exatamente no horário certo, ainda preciso de alguns minutos sentada na recepção antes de ser liberada para subir.

Duas batidinhas na porta antes de entrar. Cassandra me espera, foi ela quem me chamou. De camiseta de manga curta do Marvin de Looney Tunes, cabelo amarrado com presilhas transparentes e chinelos com meias. Sentada na cama, mas assim que me vê, levanta e vem em minha direção. Mal dá tempo de eu dizer oi e ser minimamente educada antes de ser puxada para fora do quarto.

— Banho de sol. — Cassandra sugere enquanto caminha até a varanda comum do hospital.

É no final do corredor de quartos, com cadeiras de macarrão e uma vista incrível para a rua mal cuidada dos fundos do hospital. Não tem sol. O céu está nublado, à beira de uma chuva, mas Cassandra se mantém convicta antes de se sentar em uma das cadeiras próximas da parede e me fazer sentar ao lado.

— E aí — diz.

— E aí — digo.

— E aí — repete.

— E aí digo eu.

— Me conta como foi a reunião — diz e eu suspiro.

— Por que sempre eu que tenho que dizer as coisas, senhorita religiosa com o diabo tatuado? — resmungo, de braços cruzados.

Ela ri.

— Tudo bem, me conta como foi a noite de sexta e eu te conto como foi a minha noite de sexta — diz. — Vou falar sobre mim hoje, prometo.

Cassandra fixa o olhar em mim e realmente espera que eu fale.

— Ah, foi divertido mesmo. A anfitriã da casa, a Duda, me ensinou a andar de bicicleta. — Mostro os band-aids nos joelhos. — E tinha um brownie.

Ela me olha esquisito.

— Era de chocolate, então eu pensei em trazer pra você porque era muito gostoso.

Mais um olhar esquisito em minha direção.

— Mas aí tinha... sabe, maconha. — Olho para ela e há julgamento demais. — Que foi? Não sabia que você ia ser tão careta.

— Eu nem disse nada.

— Mas eu não fiz nada de errado, tá? Foi divertido. Eu dancei, conversei mais e... sério, tudo tava tão vivo. Eu não conhecia ninguém além de Mavi e Andressa, mas...

Acho que me senti em casa.

— E quando você voltou para casa? — pergunta. — O que sentiu?

Parece que contar as coisas legais não é o suficiente.

— Cansaço.

Ela se encosta na cadeira.

— Você é terrível, Belém.

— É que estou me esforçando para falar coisas legais.

Cassandra revira os olhos e desiste. Estamos sozinhas na varanda e, convenhamos, não tem nada de interessante na vista: a varanda é completamente telada, o céu está fechado e os imóveis da rua de trás são descuidados demais para merecer uma admiração. Mas não olho também para Cassandra, é meio esquisito.

Mas não olhar também se torna estranho. Tento ser sutil, mas na primeira menção de olhar em sua direção, noto algo que ainda não tinha visto. Cassandra não usa moletom e camisas longas para esconder as tatuagens. Ela tem... cicatrizes de cortes profundos nos braços, sobre as tatuagens. Brancas, algumas saltadas. Olho demais e até tento disfarçar, mas ela ri e toca no meu ombro com a ponta do dedo.

— Eu não tenho vergonha — diz.

Ela parece sincera, mas... Jesus, é a primeira vez que não está com os braços cobertos desde que a conheci. É normal que eu a olhe receosa quando diz isso.

— Tá, eu tenho um pouquinho de vergonha de mostrar, mas sabe? Quando eu comecei a fazer tatuagem escondida, queria morrer com o corpo cheio de lembranças e agora essas marcas também são isso: lembranças. Ruins, boas... tanto faz. Agora fazem parte de mim — diz, passando o dedo pelas cicatrizes. — Elas são radicais.

Sorrio, olhando menos desconfortável para as cicatrizes.

— Por que tantos corações?

— Eu fiz todo mundo que eu conhecia me dar um. — Ela mostra um coração no antebraço. — Esse é do padeiro que eu ia todo dia. Aqui, o tatuador.

Um coração eletrizado.

— O dono do restaurante de yakissoba. — Mostra um coração torto. — Meus irmãos.

Corações sorridentes.

— A tia da cantina da escola. — Mostra mais um. — Minha avó, todos os meus amigos... tenho o coração de todo mundo.

É engraçado porque quando Cassandra conta assim, ela parece querida. O tom de voz que usa, os corações espalhados... e ao mesmo tempo... bem, aqui estamos. Ela está trancada em um hospital com a companhia de Belém Martins, que não é a melhor de todas. Principalmente quando Cassandra parece ter decidido que é dever moral me ajudar como se fosse eu que estivesse na pior aqui.

— Eu andei pensando no que você falou — começo, receosa de entrar no assunto. — Sobre... camarão.

Ela entende, como se camarão tivesse se tornado uma gíria nos últimos dias para isso.

— E você tá errada, eu não pensei que ia morrer. Nunca passou pela minha cabeça isso — falo e emendo antes que ela separe os lábios para me duvidar. — Mas acho que não foi muito bem amor à vida.

— E aí?

— Você sente raiva de mim? — pergunto, finalmente. — Eu sei o porquê você me chamou, sei que acha que sou depressiva e quer falar sobre o que eu ia dizer ontem porque sabe que é algo ridículo e triste. Sei, mas não entendo você. Como não consegue se irritar com o fato de eu também não gostar de estar viva quando eu tenho tudo? Como tem ânimo para conversar comigo?

Está chovendo em algum bairro distante, dá para ver uma faísca de relâmpago entre as nuvens escuras daqui. Estou arrependida de ter dito, mas é necessário, já que parece que eu despejo tudo em cima de Cassandra.

— Eu sentiria — confesso, mais baixo. — Sentiria raiva se eu fosse você e tivesse que lidar comigo.

— Mas eu não sinto, Belém. E eu nunca pensei "Caramba, a Belém é depressiva", só... me vejo em você e quero te ajudar.

— Mas eu sou. Não vou assumir para ninguém, mas é óbvio que eu sou. Eu pensei que a tristeza era só solidão, mas não acho que seja mais. E eu sempre guardei isso bem no inconsciente, mas...

Você me lembrou e agora não paro de pensar em como mascarar isso. Porque eles vão ficar com medo de ter que lidar comigo e Andressa já está na minha casa, então simplesmente não posso. São meus amigos e a nossa amizade é recente, não dá para pôr tudo a perder.

— Não dá, vou continuar fingindo que não existe — completo, respirando fundo. — E não somos iguais, você tem todos os motivos do mundo para odiar viver.

Fungo o nariz, tentando não chorar. Cassandra me observa em silêncio e justo agora, uma senhorinha vem até a varanda com o neto adolescente. Eles olham o vento frio, reclamam do tempo fechado e vão embora — não sem antes sorrirem simpáticos para a gente. É horrível.

— E vai continuar assim? Triste? — pergunta, com o olhar baixo. — Posso jurar que você fez uma resolução de ano novo sobre ser diferente.

— Eu vou ser, mas não... assim. Não posso ser um fardo para os meus amigos.

— E você, Belém?

O incômodo na voz é nítido.

— Eu estou me esforçando, do meu jeito. Não preciso dar nomes aos bois.

As pessoas são tristes, eu posso ser só triste. Cassandra ri, chateada.

— Você acha que sentiria raiva se fosse o contrário porque você já sente raiva de si mesma.

E como não sentir? Quando eu fico triste, ligo para uma garota internada. Todas as vezes que vim aqui, foram terríveis. E hoje eu juro que tentei não falar nada, mas acho que preciso tomar uma decisão. Não importa o que Cassandra diga, ela é alguém que não deveria estar se desgastando com a minha presença. Ela disse que conseguiria retribuir nos dias bons, mas eu não consigo porque estou ocupada no meu mundinho.

— Eu não posso ser um fardo para você também, Cassandra. — Levanto, respirando fundo. — Você não pode se importar com os meus problemas e eu não deveria ter te enchido tanto. Então, chega. Não podemos ser amigas. Eu não vou mais te encher.

— Belém...

— Vem, vamos lá para dentro — digo, segurando o choro. — Você vai pegar friagem desse jeito e acho que não está no beneficio de pegar uma virose.

Não espero uma resposta para não nos prolongarmos aqui. Mas Cassandra me segue pelo corredor e agimos como se nada tivesse acontecido porque, bem, é a droga de um hospital. Quando estamos de volta ao apartamento 107, paramos na porta porque eu vou embora.

Não dá. Não dá.

— Eu não acho que você seja um peso para mim. Realmente gosto quando vem me contar as coisas.

— É cansativo — sussurro.

— Engraçado, eu disse a mesma coisa uma vez e você voltou mesmo assim. — Suspira.

Preciso ser firme. Não posso me prolongar aqui porque, da mesma forma que enviei mensagem para ela ontem, também posso mandar de novo e... me escorar na sua boa vontade.

— Se precisar de mim para trazer algo, me avisa. Mas... não responda mais nenhuma mensagem minha.

Ela desvia o rosto, incrédula.

— Desculpa — murmuro antes de me afastar.



Eu estou certa: não é saudável precisar de cuidados como Cassandra precisa e ter que aguentar alguém baixo astral como eu. Agora está tudo bem, mas pode piorar. Ainda sim, isso não me impede de começar a chorar assim que saio do hospital. Fui um pouco rude ao sair desse jeito, mas... acho que tentei usar a grosseria e impulsividade para fazê-la entender o recado.

Por que eu sou assim?

Não posso voltar para a casa porque meu rosto está inchado, mas é difícil me sentar em uma mesa de lanchonete do jeito que estou. Escolho algo aleatório do cardápio, pego a mesa mais reclusa e ainda sim me sinto um lixo ao não tocar em nada e esconder as lágrimas.

Andressa me manda mensagem, perguntando se eu quero sanduíche. Em cima do contato dela, mensagens de Cassandra surgem.


Cassandra:

não estou brava

se precisar de mim, estou aqui :)*

mas é uma escolha sua, então... tudo bem.

*informação sujeito à mudanças repentinas

e, última coisa (juro): eu não sou um ser sobrenatural que lê mentes, se eu sei que você não está bem, eles também devem saber. dar nomes aos bois só vai te ajudar a encontrar ajuda.

se cuida!

ou não. eu não me importo de te encontrar no outro lado depois da morte

ok, isso foi uma piada horrível

desculpa

não coma camarão

desculpa por fazer esses capítulos tenebrosos eu estou me sentindo amélia lobos capítulo 17 maa o próximo é BOM

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