12 - Uma conversa sobre a morte

29 de Fevereiro


Cassandra Ribeiro Rozh-dest-vens-kaya. Dossiê mental.

Cassandra é meio esquisita, sempre usa roupas pretas, gosta de falar bastante quando está bem, desenha e ama assistir filmes (acho). O cabelo dela é castanho médio tipo chocolate, os olhos dela são tão escuros que parecem pretos e a pele dela é pálida em um tom "talvez eu esteja internada em um hospital sem pegar sol".

Não é daqui da cidade e... de onde raios ela é mesmo?

Ou será que ela é daqui? Difícil, temos a mesma idade e... alguém lembraria de um sobrenome tão difícil. Então essa parte é verdade.

Não sei se deveria, mas já estou apegada demais a ideia de que a doença cardíaca seja uma mentira. Tanto que fantasio o que seja verdade: será que os pais não conseguem lidar com o transtorno da filha? Será que a situação dela foi tão difícil a ponto de ter ido parar no hospital?

Estou simpatizando com as minhas próprias invenções. Estou pensando em uma garota com uma parte de si que não é muito agradável e por isso está fadada a ficar sozinha. E... penso na nossa última conversa.

E me vejo nela.

Cassandra está certa. Algo nos uniu.

Pela primeira vez na minha vida, não estou sendo egoísta. Na verdade, estou pensando em como podemos ajudar uma a outra. Como... fazer com que ela se sinta confortável comigo.

Compro barrinhas de chocolate de novo. Peço autorização desta vez, tento encontrá-la em um dia mais calmo. Quando chego, olho para a placa para me certificar que li certo. Ala psiquiátrica. Respiro fundo e caminho até o quarto, encontrando Cassandra sentada na cama enquanto uma enfermeira apara as pontas do cabelo dela.

— Oi. — Aceno acanhada enquanto me aproximo.

Cassandra movimenta a cabeça para me cumprimentar e é a única interação, mesmo quando a enfermeira vai embora. Eu fico parada, em pé. Ela me fita com os seus buracos negros particulares. Silêncio. Ela está bem fisicamente, o cabelo recém cortado não mudou quase nada, a pele dela está um pouco mais rosada e o quarto está cheiroso.

Droga. O que eu faço?

Cassandra se levanta, meio desajeitada e vem até mim. Ela toca minhas bochechas e movimenta meu rosto em uma espécie de análise antes de se afastar. Eu aumento a tensão, parece besteira, mas não planejei como me portaria ao saber da mentira.

Eu menti para as minhas (ex) amigas por um bom tempo, então não... deveria ser difícil fingir algo para outra pessoa, mas enquanto nos entreolhamos, tenho medo de fazer besteira. E eu prefiro abrir a boca logo e acabar com essa tortura, mas também não parece certo.

— Você parece melhor — comenta. — Apesar das opções em um hospital serem escassas, acho que a gente não vai sustentar por muito tempo essa interação só por olhares.

Ela sorri.

— Digo por você, claro. Não estou no meu melhor momento em beleza. — Suspira, dramaticamente. — Mas você está, posso só te ver por uns três dias.

Ela dá uma piscadela. Tudo de maneira exagerada, o que tira um pouco de tensão do meu corpo.

— Aconteceu alguma coisa? — pergunta quase como uma afirmação. — Tudo certo com a nova inquilina?

— Tá... esquisito, mas melhor do que eu esperava. Então não, não aconteceu nada.

— ...então? — pergunta e eu entendo.

Meio que todas as últimas vezes que vim foram inteiramente com o propósito de sugar a sua boa vontade em me dar atenção. Então é meio esquisito que o meu único objetivo hoje seja ela. Mesmo que com "ela" eu queira dizer toda a situação que a envolve. A mentira, a curiosidade.

— Hoje eu só vim te ver.

Não é mentira, eu realmente não tenho nada de especial para contar hoje. Mas alguma coisa em como ela reage, com espanto, me faz pensar que não me leva a sério.

— Juro, não tenho nada para contar. — Levanto as mãos, como se as palavras fossem coisas físicas que eu escondo em algum lugar.

Tento sair da posição esquisita que estou ao ficar em pé no meio do quarto, mas tem um urso branco enorme na poltrona ao lado. Com uma medalha dourada de papel grudado no peito.

— É seu? — pergunto e ela tira do lugar para que eu consiga sentar.

— Eu ganhei na terapia em grupo do hospital ontem — explica e aperta as bochechas da pelúcia. — Você ganha o ursinho e vai completando "lições" para ganhar roupas. Eles me explicaram que é um projeto voltado para o público infantil, o que faz sentido.

Sorrio. Terapia em grupo. Bem, então...

— Você tá me julgando pelo ursinho ou pela terapia em grupo? — pergunta.

E então eu percebo que provavelmente fiz caras e bocas ao associar a terapia com a (possível) mitomania dela. Belo começo. Como eu posso tornar as coisas confortáveis para ela quando reajo esquisita à palavra "terapia"?

— Claro que não, Cassandra. Só... — Pensa rápido. — Por que você tá em um projeto infantil?

— É que a outra opção era material para bordado do projeto para pessoas idosas. Não que esse urso tenha serventia, mas... sabe. E eu não sei costurar.

Assinto, satisfeita que contornei a situação. Um problema a menos, outros a mais. Um quarto de hospital tem tão poucos detalhes que é natural que qualquer outra coisa chame atenção — a minha estranheza, a minha postura "eu descobri algo" e a da Cassandra de "eu sei que você quer falar alguma coisa".

— Ah, eu trouxe chocolate. Mas parei pra pensar que talvez seja chocolate demais para você em tão pouco tempo. — Tiro da mochila a sacola e estendo em sua direção.

— Bem, quando eu morrer não vai ter chocolate.

Ela sorri de canto.

— Só para não perder o costume — completa. — Tem certeza que não tem nada pra me dizer?

— Não, nada.

Ela assente e fica em silêncio. 

— Tá tudo bem mesmo?

— Por que você não confia que eu possa vir só te fazer companhia? — pergunto em um tom defensivo demais para quem realmente só veio fazer companhia, com direito a cruzar os braços e tudo.

— Eu acredito, mas você está tão desconfortável que parece que foi obrigada a vir aqui. Isso é algum tipo de troca pelas últimas vezes? Porque eu já falei que...

— Não! — a interrompo antes que ela complete. — Ninguém me obrigou. É só que eu sempre falo de mim e a gente nunca fala sobre você, então pensei que seria uma boa... sabe, vir aqui. Eu só não sei... o que perguntar.

Ou como não jogar verde para possíveis transtornos mentais. Respiro fundo.

— Não estou querendo devolver a atenção que você me dá, — um pouco talvez — só acho que uma amizade precisa que as duas partes se conheçam.

O que é verdade. Com uma doença terminal ou não, não saber muito sobre Cassandra resultará na mesma dinâmica que eu tinha com minhas (ex) amigas — onde eu sabia tudo sobre as duas, mas elas não me conheciam nem um terço.

Ela ri.

— Mas você me conhece — diz, mais calma.

— Muito pouco. Eu sei que você tem uma doença — seja qual for — e que tem uma familia tão conturbada quanto a minha. Que tem irmãos gêmeos e... não é daqui. Gosta de desenhar e filmes.

— Mas eu não sou isso? E sinceramente, estou com o ego minúsculo ao perceber que você não inclui nessas informações que sou uma galanteadora.

— Ah, isso também.

Ela revira os olhos e senta na cama.

— O que você quer saber?

— ...me conta uma história fora do hospital.

— Sinto informar que boa parte da minha vida foi tão entediante quanto aqui.

Cassandra está na defensiva. Não sei, mas mesmo que pareça aberta ao assunto, algo me diz que ela tem medo do que vou perguntar. Eu também, o que me encolhe na situação como um todo. Eu sei que em uma amizade a gente descobre coisas uns dos outros de pouco em pouco, mas há uma... urgência aqui.

Se eu não descobrir logo a verdadeira situação, vai virar uma bola de neve. Quer dizer, que opção aqui não será um desastre? Saber, não saber, continuar nessa dinâmica esquisita...?

— Não me odeia, tá? — Suspiro. — Eu pensei em deixar você contar, esperar que ficasse confortável, juro. Mas minhas amizades são tão ruins e eu não quero que seja também. Eu não quero ficar fingindo contigo.

Ela franze o rosto.

— Eu não sou psicofóbica.

— Isso já é um bom caminho — diz em tom descontraído.

— Você não tá na ala cardíaca. — digo e ela separa os lábios. — Eu não estou te julgando, tá? Na verdade, te entendo super e não vou te culpar por isso.

— Belém, vamos por partes. Culpar o quê?

— Por mentir sobre ter uma doença grave. Eu li na internet e sei que viver com um transtorno pode ser difícil e as pessoas não são muito empáticas, então eu nunca poderia te culpar por querer ser tratada bem. Além disso, quem sou pra eu pra te julgar? — Solto uma risada nervosa.

— O que você acha que eu tenho?

— Eu pensei em mitomania, mas provavelmente não é apenas isso. Talvez borderline?

Ela ri.

— Eu poderia dizer que não sou uma mentirosa, mas isso seria algo que uma mitomaníaca diria, né? — Ela diz e retira a camiseta de mangas longas.

Cassandra tem tatuagens demais para uma garota que acabou de sair da adolescência. Mas esse não é o foco.

— Aqui tinha um marca-passo. — Mostra a cicatriz acima do top. —- E aqui uma cicatriz de uma cirurgia cardíaca que eu fiz mais nova.

É uma linha reta que se esconde entre o tecido azul escuro do sutiã esportivo e sobe até um pouco acima.

— E... eu não estar em uma ala cardíaca não é um segredo. Belém, eu nunca troquei de quarto — diz enquanto coloca a camiseta de volta.

— E o que isso quer dizer?

— Que você também estava aqui.

Arregalo os olhos.

— Mas por que eu estaria aqui? Foi só uma alergia boba — digo, sem perder o espanto.

— Com todo respeito, Belém, mas você provocou a alergia em si mesma por escolha.

Não consigo entender o que ela quer dizer de primeira, mas aí um estalo aparece, eu cubro os lábios e a olho incrédula.

— Eu não tentei me matar.

— ...mas tinha chance.

— Eu não pensei nisso. Claro que eu não pensei em... — Travo. — ...isso aí.

Cassandra me olha e percebo que agora é ela que está receosa com o que fala. E que clima delicioso é ficar em silêncio depois de descobrir que era você quem parecia estar escondendo algo.

— Pensei que fosse um acordo mútuo sobre não falarmos sobre certos assuntos porque são horríveis e acabam com o clima, mas... Ter uma doença rara com uma sentença horrível desde criança tem certos resultados. Não é tão... filmes de superação da sessão da tarde. 

Ela morde os lábios.

— Quando me mudei para minha avó, eu comecei a fazer coisas que nunca tinha feito e foi bom, mas... o clima sempre acabava pesando. Horrível. E pior do que nunca viver é viver um pouco e perceber que esse sentimento não te pertence.

— Desculpa — murmuro. — Eu pensei que estava ajudando. Você sempre me escuta, então achei que seria uma boa te deixar confortável sobre a informação que eu mesma inventei e aí só... piorou.

Respiro fundo.

— Talvez eu tenha ficado um pouco animada com a possibilidade de você não morrer — confesso, mais baixo.

— Tá tudo bem. Foi um erro de comunicação. — Ri, ignorando a última frase.

E o clima? Talvez demore uma eternidade e meia para voltar a ser o que era antes. Cassandra continua sentada, as pernas se movem um pouco de lá para cá. Eu queria que um quarto de hospital fosse mais movimentado e, só assim, teria alguém para preencher esse vazio desconfortável. Minha boca está amarga como se tivesse ingerido uma sopa inteira de sal.

— Você pode pegar uma caixa no armário? Ela é bege — pede e eu assinto só para sair da inércia.

Quando a entrego, ela tira vários blocos de anotação tamanho a5 de dentro.

— Eu provavelmente já te disse, mas eu desenho. A informação nova é que esse hobbie é 100% hospitalar. — Ela folheia, me mostrando cada desenho.

Uma evolução gradual. Primeiro, rabiscos tortos, formas simples... sempre o mesmo lugar. A parede da televisão. Depois começam a aparecer rostos, referências da internet e uma evolução significativa com mais detalhes em cada desenho.

— Esse é o meu principal passatempo, mas em dias horríveis eu — se inclina na gaveta da cômoda ao lado — jogo coisas com temáticas cozy tipo Animal Crossing. Às vezes dá certo.

Ela me entrega um videogame portátil e depois pega o próprio celular, quase em uma inquietação para não ficar parada.

— E aqui é meu lugar favorito do mundo. É um restaurante de comidas asiáticas. O dono não é chinês, muito menos japonês e duvido que certas atrocidades seja lá muito aceitas do lado de lá,  mas é super aconchegante e tem o melhor yakisoba de todas.

É uma foto dela sorridente sentada em uma mesa em um restaurante de iluminação ambiente e cores terrosas. Ela está com uma cumbuca perto, dois hashis e um sorriso enorme no rosto. É tão estranho vê-la na foto, com o rosto mais corado e com as bochechas mais cheias.

— Eu pedi para que, quando eu morrer, colocassem as cinzas no aquário que tem lá, mas a ideia não foi muito bem recebida. — Sorri de canto. — Você pode ir lá algum dia, vou te enviar o endereço.

E, talvez notando que estou interessada demais na foto, desliga a tela.

— Sei que conviver com alguém como eu não é tão bom, mas... recompenso bem nos dias melhores.  É só continuar... ou não. É uma decisão sua.


Oi, gente! Como vocês estão? Antes de tudo, desculpa pela demora!!!! 🤏 Esse início tá me deixando nervosa porque tem zero romance (eu 💗 slow burn e a belém está insana demais pra qualquer coisa) e por ser uma história que acontece muito no começo em um quarto de hospital. Então, por favor, me digam o que estão achando!!!


Beijos! Se cuidem! 

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