11 - Talvez Cassandra não vá morrer nessa história


28 de Fevereiro


Não sou do tipo que banaliza a saúde mental, mas sei que a maioria das outras pessoas são assim. Além disso... acho que o coração é o órgão mais importante do corpo humano. Em uma balança entre um possível transtorno mental e uma doença rara terminal no coração, acho que a segunda ganha, né?

Então a Cassandra não deveria estar na ala psiquiátrica, mesmo que tivesse mil transtornos. Acho. Pelo menos, perguntei se havia uma ala para pacientes cardíacos no hospital e a resposta foi positiva. Se tem, por que a Cassandra está na ala psiquiátrica.

Primeira opção: algum erro no cadastro. Sei lá, um quarto é um quarto.

Segunda opção: ela não tem uma doença cardíaca.

Eu sei que essa é a pior opção por... meio que envolver... uma mentira seríssima... e falta de caráter... Mas por outro lado, isso significa que ela não vai morrer  Então sim, eu me agarro nessa informação e decido que faz sentido que tudo seja uma mentira: leio o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais e vasculho inúmeras páginas para encontrar algo que justifique a mentira.

Sei lá, mitomania não é um problema muito incomum em transtornos de personalidade, né? E... talvez ela esteja no hospital por tratamento para estabilizar e... queira conversar. Deve ser meio difícil a situação, então ela inventou toda essa história para chamar atenção.

É absurdo? É. Mas confesso que uma parte de mim gosta da possibilidade de que ela não vá morrer. Ela não é uma pessoa ruim e, sendo sincera, foi a primeira pessoa na minha vida inteira que se esforçou para me entender. Não vou culpá-la por algo que está fora do seu alcance.

Mas também não sei o que fazer com essa informação. Contar para Mavi e Andressa está fora de cogitação. Eles vão me achar maluco e não quero prejudicar as discussões sobre a casa.

Não quero contar que descobri para Cassandra, sei que o clima será horrível. Mas também sei que fingir não saber também terá problemas no futuro.

Que droga.

Pelo menos, também leio alguns artigos sobre como conviver com pessoas com transtornos mentais incomuns.

— Minha mãe vai ligar às 17h. A gente precisa montar uma estratégia. — Andressa coloca as mãos na cintura.

As suas duas mochilas estão no chão, abarrotadas a ponto de explodir. Sua respiração está irregular e eu não sei se é ansiedade ou o peso de ter carregado tudo isso do carro até aqui.

— Aqui é uma república. Vocês dois são pessoas legais  e... sem problemas... tipo. — Pausa. — Minha mãe é meio terrorista e eu não quero voltar para a casa da minha tia, então finjam que tem zero chances de um surto acontecer.

— Sobre — Mavi sinaliza para si. — Como devo prosseguir?

— Ah, minha mãe é super progressista. Quer dizer, ela fala umas besteirinhas, mas sempre defende quando passa na TV "porque todo mundo é filho de Deus". Fica sossegado.

Mavi ri e alonga os braços.

— Só finjam ser universitários gente boa. E tem que ter uma desculpa para a casa ser chique. Não basta ser só "sou rica", minha mãe não confia muito.

— O aluguel é barato porque alguém morreu aqui dentro — Mavi sugere.

— Não, que horror. — Balança as mãos, incrédula.

— Ganhamos essa moradia por parte de um projeto super sério que reapropria casas que os donos não pagaram o IPTU para ajudar estudantes pobres a poder morar próximo da faculdade.

Os dois me olham.

— ...absurdo?

— Eu nem quero saber de onde você tirou isso, mas... é, dá pra usar. — Andressa ri.

— Jura? — Eu e Mavi perguntamos, surpreso.

— Claro, uma ONG. Minha mãe vai adorar. Além disso, se tudo der errado, não vai parecer que é culpa de vocês.

— Nada vai dar errado — resmungo e ignoro a última parte.

— Eu só preciso não morrer de riso quando vocês falarem isso — Mavi murmura baixinho.

A mudança de Andressa é fácil. As mochilas vão para o meu quarto e... só. Em menos de dois minutos estamos de volta à sala, sem nada para fazer além de esperar o horário em que a mãe de Andressa sai do trabalho. Para mim, é um experimento: estamos todos juntos, sem nenhum objetivo e dispersos. É assim que a gente vai ficar a partir de hoje (pelo menos eu e Andressa) então é uma forma perfeita para testar o clima.

Por favor, que não seja horrível.

Não é. Mesmo que todo mundo esteja com o celular em mãos, parece agradável. Mavi é o que mais fala, seja quando mostra algo no celular ou lembra de alguma coisa. Isso é um problema, claro. Não ele falar demais, mas a parte em que ele vai embora em algum momento porque ainda não resolveu o assunto com os pais.

Sem pânico. Andressa também é bastante sociável, então não será um problema.

Sai fora, nervosismo.

Quando chega o momento da ligação, acho que vou vomitar. Não sei qual é o pior, Andressa ir embora ou ficar e a ideia se tornar um desastre.

(Pelo menos não sou eu que vou decidir).

A mulher que aparece do outro lado da tela é bastante parecida com a filha. O cabelo ondulado, mesmo que esteja preso, a pele negra em marrom-claro e os lábios pouco volumosos. Se não fosse pelas rugas e a... sobrancelha feita em henna, eu poderia até me confundir.

— Bença, mãe. Essa é a Belém e o Mavi, que eu te falei — diz e esconde as mãos inquietas longe da câmera.

Eu e Mavi tentamos nos enfiar no enquadramento e a mãe dela faz uma careta.

— A Belém é negra? — pergunta em choque.

— ...sou?

— Foi mal, menina. É que com esse nome eu tava esperando algo... — Pausa. — Totalmente diferente.

Tento não olhar para nenhum dos dois, estática.

— Então... mãe, como eu expliquei para senhora... aqui é tipo uma república. — Ela gira a câmera para mostrar a casa.

Mavi usa esse tempo ridículo para respirar.

— Uma casona dessas?

— É de uma ONG, mãe. Ela ajuda estudantes do ensino superior a ter um lugar seguro para morar enquanto estuda. A tia da Belém faz parte — aponta para mim.

— É, eles fazem acordo com o governo para pegar as casas dos ricos que não pagaram o IPTU.

Mavi ameaça rir e leva uma cotovelada.

— Qual é o nome disso aí?

— Organização... sem fins lucrativos... — Mavi começa.

— Universitários com casa para morar — completo.

Há uma chance de 99,7% de Andressa explodir.

— O nome não importa porque o projeto não pode ser divulgado, já que... a senhora sabe, né? Imagina o que os ricos iriam fazer se descobrissem que as casas dele estavam virando isso? — Andressa pergunta, nervosa.

— É, a coisa ia ficar feia. — Ela ri meio engasgado. — Mas isso aí não é ilegal, não, né? Tô achando essa história meio estranha.

— Claro que não, mãe. A senhora imagina se eu ia me meter em encrenca e ter que voltar com o rabo entre as pernas pra casa da tia?

Se Andressa tivesse falado isso logo no começo, teria facilitado todo o dramalhão, já que é a única coisa que faz sua mãe relaxar: o orgulho da própria filha.

Então que se dane a ONG inexistente ou o IPTU vencido de ricos, Andressa nunca sairia da casa da tia com a possibilidade de voltar.

— Eu espero realmente que você não me expulse, Belém. — Tira a tensão dos ombros e se alonga no sofá. — Sério. Eu me mato.

— Ninguém vai expulsar ninguém. — Reviro os olhos.

— Diga isso depois da primeira briga — retruca.

— A gente devia fazer um acordo, né? — Mavi sugere. — Regras de convivência?

— Um limite para possíveis brigas?

— Também. — Ri. — Mas acho que a gente devia comprar um quadro branco.

— Primeira regra: não matarás. Segunda: não furtarás. Terceiro: não darás falso testemunho — Andressa lista.

— Isso é de que filme? — Franzo o rosto, sem conseguir lembrar.

— ...bíblia.

— Ah.

Mavi é o primeiro a desencadear uma crise de riso entre nós três. Não me importo que seja sobre mim, é tão... bom.

Quando decidimos o que comer, é como uma replicação da última vez: mesmas sensações que beiram a euforia, mesma bagunça... a vontade terrível de roubar o tempo e viver a eternidade assim. Em companhia, rindo e cozinhando. Eu não sou desorganizada quando cozinho, mas gosto que o erro de um aqui não vire uma confusão.

É uma pena que quando Mavi vai embora, a casa fica silenciosa. Já está tarde, pelo menos posso ir dormir como desculpa, mas há um quê de constrangimento quando eu e Andressa nos entreolhamos. Como quando eu fugi dela no ano novo.

E é tipo isso que rola agora. Ela vai para o meu quarto e eu vou para o, que algum dia deve ter sido, dos meus pais.

E, ainda que eu não tenha resolvido o dilema contar ou não contar a descoberta, a primeira coisa que faço é procurar o contato de Cassandra.


Belém Martins:

oi

tá tudo bem por aí?

Cassandra:

tá tudo bem por aí?

Belém Martins:

eu perguntei primeiro

Cassandra:

eu perguntei primeiro

acho que há mais possibilidades de resposta do seu lado, levando em consideração os últimos dias

como foi a ida da pobre

Belém Martins:

ótimo! tipo deu certo e a gente cozinhou de novo hoje então foi tipo bom!!!!!! muito bom!!!!

Cassandra:

algum desastre aconteceu

Belém Martins:

não

tipo

só o mavi que foi embora e agora o clima decaiu pq eu sou uma porta

Cassandra:

jesus, belém. são 11 da noite, é claro que o clima decaiu

Belém Martins:

CONSTRANGEDOR

e pensei que você não falasse jesus com letra minúscula

Cassandra:

Jesus*

a droga do corretor querendo me levar pro inferno

mas sério, sossega

é o cansaço


Andressa bate na porta do quarto. Mesmo que seja o assunto da conversa, é a primeira vez que alguém bate na porta nesse quarto, então o coração quase saindo pela boca antes de abrir.

— Não pensei que seria terrível ficar sozinha em outra mansão. Posso dormir aqui no chão hoje?

Franzo o rosto e as informações parecem demorar para se encaixar antes de eu responder. Eu não queria dizer sim por inúmeros motivos, mas todos perdem no fim das contas.

— Acho que a cama é espaçosa para nós duas. — Dou espaço para que ela entre.

Eu espero ela escolher um lugar da cama para que eu não precise e em poucos minutos estamos deitadas uma do lado da outra, com bons centímetros de distância graças ao tamanho da cama. Esquisito, um dos motivos por qual eu quase neguei. A situação é tão estranha para mim que demoro a pegar o celular novamente.


Belém Martins:

ela veio dormir no meu quarto e tá aqui na cama

Cassandra:

🥵

uns com muito, outros com pouco


Ela me envia uma imagem em seguida. Um retrato de si, com flash frontal, deitada na cama enquanto se finge de coitada.

Belém Martins:

você é muito idiota


— Por que você ficou tão abobalhada do nada? — Andressa pergunta e eu quase grito. — Desculpa, meio inconveniente... é a garota do hospital?

É inconveniente, mas de alguma forma o jeito interessado que ela fala me faz olhar por outro lado.

— É, ela é meio besta. — Mostro a foto.

— ...tá explicado a tristeza por não ter conseguido encontrar ela naquele dia. A bicha é bonitinha — diz e eu desligo a tela do celular, indignada.

— Ei, não. Tipo, não é por isso... Eu não tenho essa visão dela.

Eu nem sei que visão eu tenho. Eu só sei que gosto de como conversamos e que as coisas ficam mais... fáceis.

— Como tá funcionando isso? Você foi lá de novo?

— Sim. — Pauso, sem querer pensar muito nos detalhes que me fizeram ir. — A gente conversa com uma certa frequência.

— Me conta sobre ela. — Sorri. — Acho que passei o dia inteiro ansiosa e meu sono sumiu.

— Ah, ela...

Eu sei que ela vai morrer. Pode morrer, diante das descobertas. Tem 18 anos, ama yakissoba, chocolate de verdade e tem problemas familiares tanto quanto eu. E que gosta de filmes. De resto, Cassandra é uma incógnita.

— Para ser sincera, quando a gente conversa, sou eu que falo... não sei muito sobre ela. Tipo, ela é brincalhona — na maioria das vezes — e gosta de flertar por hobby. Tem problemas familiares que eu nem sei bem quais são, irmãos gêmeos e morava com a avó.

— Ela não fala muito de si?

Franzo o rosto.

Não, não fala. Tirando as piadas de morte... acho que eu estou sempre falando coisas horríveis da minha vida, ela me ouve e... às vezes conta algumas coisas vagas sobre si para me fazer melhor e só.

— Não.

— Uma garota misteriosa de sobrenome difícil. — Ri. — Faz sentido com a situação toda.

— É?

— Uma garota solitária com uma doença terminal em um hospital. A gente não encontra isso todo dia.

Pior ainda quando essa garota está na ala psiquiátrica. É, acho que realmente faz sentido não falar muito de si.

Jesus. Será que é por isso que ela quase não conta nada? Por que o que contou até agora é mentira? Não, parece absurdo demais. Duvido que ela conseguiria sustentar uma mentira por tanto tempo, sem deslizes.

Mas quando eu fui lá pela última vez, ela queria contar algo. Pode ser que talvez seja isso.

Talvez você se sinta mais confortável comigo quando souber.

É, definitivamente é isso.


oiiii!! sei que sou maluca mas não dou ponto sem nó (às vezes

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