10 - Somos mais parecidas do que parece
26 de Fevereiro
Eu não durmo direito há dias.
Para piorar, o relógio anda devagar quando passa das 10 da noite — que é o tempo propício para minha mente se afogar em culpa. No fundo, há um resquício que ter nascido em uma bolha rica me deixou: sou mimada e egoísta. Eu estou o tempo inteiro em uma tentativa frustrada de me agradar.
Quando eu diminuo a frequência de conversas com Cassandra mesmo que eu tenha insistido só porque a vi mal. Não porque ela vai morrer, mas porque eu vou perder alguém. O que é mais egoísmo do que estar preocupada com si mesma quando alguém já está sofrendo com seus próprios problemas.
Quando eu convido pessoas que eu não conheço tão bem para morar na minha casa porque sei que estão precisando. Mas não por querer ajudá-las, mas porque não quero ficar sozinha. Não só isso, mas lá no fundo... talvez eu queira usar como moeda de troca.
Seja meu amigo, você pode morar na minha casa.
Se eu não fosse idiota, eu poderia seguir minha vida do jeito certo. As pessoas focam em amadurecer quando terminam o ensino médio, elas se tornam independentes.
No grupo, finjo otimismo. Com Cassandra, juro que tento tirar o clima estranho. Em casa, deitada sem levantar para absolutamente nada, penso que não tenho solução. Para o meu egoísmo, o meu desleixo. Eu não paro de pensar em mim mesma em todas as minhas atitudes, faz sentido permanecer sozinha.
Quando finalmente tenho uma reação mínima e levanto para lavar o cabelo, a playlist não dura uma única música sem me causar irritação. Escolho o silêncio, como se isso me ajudasse a tomar decisões coerentes.
E se eu bloquear todos eles e fingir que nunca dei a opção de eles morarem aqui? Mesmo que Andressa tenha conversado com os pais e eu tenha passado os últimos dias reafirmando a minha posição? E se eu desistir de vez de conversar com Cassandra e fingi que não inventei desculpas para conseguir o número dela?
Aí eu fico sozinha. De novo.
— Pronto-atendimento fica no outro setor. — A recepcionista diz ao me ver se aproximar.
Mas como sou egoísta...
— Não, eu vim visitar Cassandra Ribeiro. É o quarto 107. — Mostro a minha identidade.
Ela confere e assente antes de fazer o procedimento padrão. Computador, telefone, crachá. Mais rápido dessa vez, eu não preciso informar outras informações minhas. Em pouco tempo e já estou no corredor branco à procura do quarto 107. De novo, sem avisar ela. Mas torço tanto para que ela esteja bem hoje que o universo não seria tão maldoso de não realizar.
Emito um ruído baixinho com o punho na porta antes de entrar. Quando entro, não tem ninguém. A cama está com os panos amassados, mas Cassandra não está em nenhum canto. A porta do banheiro está escancarada e não escuto vozes... nada.
Retiro o celular do bolso. A gente se falou ontem. Eu deveria ter perguntando, mas havia uma chance de ela negar (egoísmo).
Belém Martins:
vim te ver, onde você está?
Os dedos inquietos tocam no jeans enquanto eu espero uma resposta. Culpa minha, claro. Caminho em um vai-e-vem, noto as coisas espalhadas da única moradora do quarto: uma caderneta, lápis, fones de ouvido com fios enrolados.
— Você nunca avisa, né? — diz em um tom mais suave, mas sente que ainda não é eufemismo o suficiente quando me vê.
Agora tenho um vislumbre do que ela sentiu quando eu me peguei surpresa com o modo como ela estava. Dessa vez, é ela que está com uma impressão mais corada, cabelo limpo e roupas frescas. Não que eu não esteja com tudo isso também, mas não parece.
— Vim te ver. Eu trouxe chocolate, eu não sei se você gosta, mas... — Ameaço abrir a mochila, mas meus dedos não acertam o zíper.
Não sou cara de pau o suficiente para sustentar minha presença depois dos últimos dias. E ao invés de fazer qualquer piada em relação a isso, ela me abraça. De um jeito tão bom que sinto que deveria ter feito isso da última vez também. Ou não. Talvez abraços sejam importantes só para mim, no meu estado. Não quero largar, mas o contato com o equipo na minha pele me faz dar um passo atrás.
— Desculpa. Acho que entrei em curto-circuito — digo a tentar limpar os óculos embaçados.
Ela ri. As lágrimas inundam minha bochecha em desespero e Cassandra ri tão calma enquanto me observa com suas bolotas pretas brilhantes.
— Você não me odeia por estar te dando gelo, né?
— Não estou brava, eu entendo. — Ela sorri. — Você trouxe chocolate? Posso pegar?
Assinto e ela abre minha bolsa com cuidado, retirando a sacola de papel cheia de mini barrinhas.
— Quer sentar? — pergunta como uma boa anfitriã de um quarto de hospital.
Eu assinto e ela se senta na poltrona reclinavel, me deixando como única opção ficar na beirada da cama. Alta o suficiente para poder balançar os pés sem a grade de suporte. Não o faço, eles estão firmes no ar.
— Quer me contar o que rolou? — pergunta em meio a primeira mordida em uma barrinha de 18g.
— Sobre eu te evitar?
Ela ri, interessada na embalagem em mãos.
— Tu não veio por isso, Belém. Além do mais, eu sei o porquê. Não é a primeira vez que isso acontece. — Amassa o papel. — Quer me contar o resumo da obra?
— O de sempre.
— Qual é o mesmo de sempre? — Sorri de canto.
Brinco com os dedos. Acho que era melhor ter chorado todas as noites que eu queria e me forcei a não. Isso me impediria de não conseguir impedir as lágrimas de descerem como uma cascata.
— Ser maior de idade é péssimo e... minha mãe aparecer com aquele papo idiota só piorou as coisas. Eu sinto que todo mundo está em um momento de amadurecimento, de liberdade... independência. E eu talvez ainda esteja na fase de criança pequena que precisa da atenção dos pais e vive em uma bolha familiar onde todos a amam e a mimam, sabe? E que se dane se eu nunca tive isso, não é mais hora.
Eu não vou preencher o vazio que foi ter sido alguém solitário.
— Mas não consigo pensar em outra coisa além de... talvez seja um dano irreversível, do tipo que não dá mais para acompanhar as outras pessoas. Não sei se vale a pena tentar. — Me deito, encolhida como se fosse a verdadeira enferma. — Eu não quero mais tentar.
Ela se inclina para mais perto da cama.
— Eu sei o que você disse nas entrelinhas, Belém Martins — diz, baixinho e eu ignoro.
Não quero sermões, principalmente de alguém que não tem escolha.
— Eu ando tão egoísta que acho que não aprendi a me importar de verdade com as outras pessoas. Mavi e Andressa foram na minha casa, me fizeram ter uma noite legal e... fui egoísta. Eles devem ter me achado uma boa pessoa, mas eu sei que o que fiz é egoísmo.
— O que você fez?
— Eles precisavam de uma casa segura, eu tenho uma... Mas não fiz por eles, foi pelo pensamento de "eu não quero que esse momento acabe". Assim como... parar de falar com você. E vir aqui, depois de tratar ridiculamente mal como se você fosse culpada por estar doente.
Ela ri.
— Sabe o que eu acho? — Sussurra, ainda perto de mim. — Você esquece com facilidade o que nos uniu.
— Não é a mesma coisa, Cassandra.
— Não? Então por que me vejo em você? — pergunta e eu franzo o rosto. — Sabe, eu já tive companheiros de quarto que imploraram para manter contato comigo e sumiram assim que me viram mal. Eu nunca liguei, não estava interessada mesmo. Mas você, eu confesso que fiquei um pouquinho chateada com o possível e futuro ghosting quando foi embora.
Engulo em seco.
— Acho que é porque entendo todo absurdo que sai da sua boca.
Ela alonga o corpo.
— Quer que eu saia? — Sugiro, a posição dela parece desconfortável.
— Eu estava pensando em um espacinho ao seu lado.
Dou espaço e ela se ajeita com o braço colado ao meu, no típico moletom escuro.
— Você espera julgamentos, mas eu já sou réu das causas absurdas. Tenho experiência em problemas que ninguém entenderá por completo, sabe? — brinca. — Mas nesse... eu te entendo. Egoísmo e etc. Lembra do que a gente conversou por mensagem? Sobre eu ter feito um estrago nos últimos anos livres e que você também precisa fazer? Isso também é amadurecer.
— Do jeito certo? — Viro o rosto e ela ri sem olhar para mim.
O perfil dela é bonito. Dá para ver a curva do nariz, a pinta na bochecha e os cílios bem desenhados. Mas mais do que isso, é familiar.
— Eu acho que dividir a casa com pessoas da sua idade vai ser bom. Independente se foi um convite impulsivo ou egoísta, não significa que vai ser um desastre. — Ela finalmente se vira para olhar nos meus olhos. — E... Belém, acho que você precisa ter mais experiências.
— Que tipo? — pergunto, notando que o brilho nos olhos dela é apenas a luz batendo em um buraco negro.
E que agora, assim como ela falou, eu também me vejo nela. No reflexo minúsculo dos seus olhos.
— Qualquer coisa. Sei lá, ir em um lugar diferente, fazer uma trilha, baixar o Tinder e sair com alguém...
— Eu não quero fazer isso.
— Mas você já fez? Não é para gostar de tudo, é só que você precisa sentir que tem um leque infinito de coisas para fazer. Tem coisas para dar errado, dar certo... Você vai amadurecer como todo mundo, mas da forma que precisa.
Coloca o dedo sobre minha camiseta, em direção ao peito.
— Você precisa sentir que vale a pena ter um coração batendo — diz e deixa escapar uma risada curta. — Eu acho que você não sente isso agora.
— Não sinto vontade de fazer essas coisas.
— Eu sei. É por isso que é uma obrigação agora. Às vezes a gente precisa se obrigar a fazer certas coisas. — Ela procura o celular no bolso. — Você fez sua lista? Se não fez, eu vou fazer por você.
— 10 coisas para fazer antes de morrer? — tento fazer piada, mas minha voz não soa legal.
— Não, pra ontem. Seus pais morreram em um grave acidente de carro na infância e agora é a hora de você se livrar do luto. Você precisa... ter contato com outras pessoas. De preferência, que saibam quem você é.
— Eu não quero contar meu histórico inteiro para qualquer um.
— E você só é isso? — Sorri, tocando a minha bochecha com as pontas dos dedos.
Em lugares específicos, úmidos por todas as gotas de água que não escorreram por completo. E ela espera eu responder, mas... a única que repete na minha mente é todas as palavras que eu falei para Mavi e Andressa. No fundo, sou solitária. Em personalidade. Talvez eu esteja em uma festa lotada de pessoas que me amam um dia, mas ainda serei o que fui criada para ser.
— Posso te contar um segredo? — pergunta e eu franzo o rosto.
— De que tipo?
— Talvez você se sinta mais confortável comigo quando souber.
— O que é?
— É que eu não... — As batidinhas na porta a interrompem e, no susto, saio da cama para que ninguém veja onde eu estava.
Fica subentendido. Principalmente quando a enfermeira entra exatamente no momento em que eu me desequilibro da cama ao tentar sair. De novo. A mesma enfermeira.
— Desculpa — murmuro ao me levantar.
Rosto úmido, olhos vermelhos e lombar destruída.
— Só queria saber se o médico pode dar uma passadinha aqui — explica, tentando fingir que nada aconteceu.
É a minha deixa para ir embora.
Pelo menos, é o que entendo, ainda que eu quisesse ficar só mais um pouquinho conversando ao seu lado. Cassandra me pede para falar com ela mais tarde, agora tendo certeza que eu posso sumir no instante que cruzar a porta.
Não farei isso (talvez faça), principalmente quando depois de dias minha mente desvia a atenção para algo que não seja meu próprio sofrimento.
Uma placa suspensa. Ala psiquiátrica. Apartamentos 101-107.
eu sei que estao pensando "mary cade a comedia" mas vcs acham que o palhaço fica onde quando ele sai do circo
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