1 - Feliz Natal, Belém
24 de Dezembro
É véspera de Natal e eu estou internada no Hospital Santa Maria de Conceição do Rio.
Faltam... 28 minutos para meia noite e a minha situação é humilhante. Infelizmente, eu não vou morrer. É uma pena porque agora que estou internada em um quarto compartilhado, com o rosto tão inchado que duplicou de tamanho e um acesso no braço, tudo o que quero é desaparecer.
O que eu tinha na cabeça? Sério? Falta de amor materno? Falta de todos os amores possíveis? Talvez. É a única conclusão que eu posso tomar depois de provocar uma crise alérgica por pura espontânea vontade que quase me matou e meus pais ligarem o foda-se.
Quero chorar, mas não posso. Mal consigo abrir os olhos, tem meleca gosmenta saindo pelo meu nariz e sinto dor. O plano foi por água abaixo e eu só piorei a situação.
Almoço em família definitivamente não está nos planos dos meus pais. Ninguém pegou um avião para voltar para casa. A casa ainda está vazia e a minha tia só veio até o hospital comigo porque precisavam de um acompanhante adulto para assinar as papeladas. Não durou muito, não julgo.
É natal. Quem ficaria em um hospital acompanhando alguém que quis estar aqui de propósito?
Eu não ficaria. Principalmente quando, palavras da minha tia, eu já sou "crescidinha" o suficiente para parar de querer chamar a atenção. É, talvez. Eu acabei de terminar o ensino médio (ninguém foi na minha formatura, se quer saber) e já devia ser madura em relação a isso. Ponto. Mas não sou. Meus pais dizem que sou mimada, mas também não é assim.
Eu só... não sei. Parece que cada vez que fico mais velha, mais sozinha eu me sinto. Quando eu tinha 13 anos e a minha babá foi demitida, eu implorava para crescer logo e ficar cheia de amigos. Arrumar uma família, essas coisas. As coisas iam mudar. Eu espero que ainda mude, mas agora, quatro anos depois, nada ainda mudou.
Na verdade, estou no limbo. Eu consigo me safar em outros dias. Vou em festas onde finjo ser maior de idade, sou cliente assídua do cinema da cidade e experimento tudo que estiver ao meu alcance.
É bom, mas às vezes sinto falta de ter a quem recorrer.
— Boa noite, anjinhas. Hora da ceia da noite. Opa, anjinhos. Anjinhes, não sei. Ai, Cassandra, é cada uma que você inventa. — Alguém ao meu lado gargalha. — E o que foi com essa mocinha? Mocinhe, não sei.
Outra gargalhada.
— Ouvi dizer que foi camarão — Cassandra (provavelmente) diz com a voz rouca. — O que você tem pra gente aí?
— Gelatina vermelha e... hum, biscoitos maizena.
— Jesus, cadê o espírito natalino? — resmunga.
— Tá no vermelho da gelatina — retruca e vejo o borrão da senhora se aproximando do meu leito. — Belém Martins. Tadinha, bem no natal! E cadê os pais dessa criança? Tem que tomar cuidado com o que come, bem. Podia ter morrido! Mas tá tudo bem, vai passar, tá? Você tá com fome? Quer um pouco de gelatina?
Tento dizer algo, mas meu rosto está tão inchado que sai algo inaudível (mas era pra ser "não, obrigada, não estou com fome"). A mulher entende que não estou em condições e suspira, tocando no meu braço como se eu não estivesse a coisa mais nojenta do mundo.
Mesmo que eu não a veja tão bem (também tenho 3 de miopia em cada olho), lembro de dona Josefa — a minha babá. Era o que meu pai chamava de "moça que trabalha lá em casa que já virou de família". Como uma órfã de pais vivos, eu também pensava. Às vezes a chamava de "mãe" sem querer, ela ia nos eventos do colégio e fazia bolo no meu aniversário. Mas a dona Josefa não era da família, era alguém paga pra isso. E quando eu fiquei velha o suficiente para não ser crime ficar sozinha em casa, ela foi demitida.
E aí eu tive o choque de realidade que ela sempre foi a babá, alguém paga para ser carinhosa.
E eu ainda era a orfã de pais vivos que come camarão no natal para tentar chamar a atenção.
A lágrima escorre pela minha bochecha. Deveria ter ficado em casa. Jantado sozinha em uma mesa de oito lugares, assistido um filme de natal e chorado até ficar com o rosto tão inchado quanto agora — mas sem a gosma e podendo falar (mas eu não teria ninguém para isso).
Eu tenho amigas. Duas. Raquel e Giulia. Elas são ótimas, estão comigo desde sempre. Mas eu omito certas coisas desde sempre também. Por exemplo, elas não sabem que minha família é disfuncional e que eu passo os natais sozinha. Provavelmente terão algumas mensagens delas no meu celular quando o relógio bater à meia noite. Feliz natal, essas coisas e tal.
Mas esse feriado é familiar demais para ser relevante conversar mais do que isso comigo. Até porque, em teoria, eu tenho familia, né?
— Ai, meninas. Menines — corrige pela milésima vez e eu percebo que ela ainda está aqui. — Eu preciso ir, tem tanto quarto ainda! Mas durmam bem, tá? E se precisar, aperta o botão ali que uma enfermeira vem correndo.
Ela aponta, eu não vejo.
— Feliz natal, Rita — Cassandra diz.
— Feliz natal, meu amor. Feliz natal, Belém.
Solto um grunhido. Espero que entendam como um "feliz natal".
25 de Dezembro
Quando acordo, me sinto melhor. Fisicamente, o psicológico está um trapo. O quarto já está de luz acesa e tem café, bolinho e um pão de sal ao lado de um potinho de manteiga. Isso é bom, eu consigo enxergar alguma coisa. Me inclino na cama, tateio atrás da minha bolsa vermelha cheia de broches e finalmente pego o celular para ver as mensagens. Como esperado, as felicitações das minhas amigas são as primeiras coisas que vejo. A segunda é minha mãe perguntando se estou melhor, já que não dizer nada a faria um monstro.
Suspiro.
Respondo todas. Não conto para minhas amigas que estou no hospital e digo que também odeio uvas passas no arroz. Para minha mãe, um joinha. "Não se importe, já estou um pouco melhor."
Por favor, se importe.
Olho para a cama ao meu lado. Vazia. Sinto fome. Não esperava que a reação alérgica fosse assim, mas preciso de um banho porque estou fedendo antes de qualquer coisa. Não tenho roupas limpas, mas uma toalha foi colocada sobre a cama e essa é a minha deixa para me arrastar com um acesso no braço até o banheiro.
Deveria não ter feito isso porque me olhar no espelho é aterrorizante. Não tem nada de bonito nos meus olhos hoje. Gosto deles, mas hoje estão mais sujos do que o aceitável. Meu cabelo cacheado está em um emaranhado feio e minha pele negra está se recuperando da palidez de quase conhecer a morte.
Espelha muito bem o meu interior, mas prefiro que ninguém veja. Gasto trinta minutos lavando o cabelo com os sachês típicos de hotel que estão na pia. Esfrego meu corpo para tirar qualquer resíduo expelido pelo meu nariz enquanto eu pensava que ia morrer e escovo os meus dentes por cinco minutos inteiro. Eu acho, deixei o celular em cima da cama.
Não melhorou tanto. Minha cara ainda está inchada, mas pelo menos não estou fedendo tanto (exceto que minhas roupas ainda são as mesmas e hospital fede).
— Uau. — Alguém exclama assim que saio do banheiro.
É a garota da cama ao lado. Cassandra. Eu acho. Ela está de moletom, a cabeça enfiada em um travesseiro que definitivamente não é do hospital e um travesseiro no colo. Mal consigo vê-la, principalmente porque estou sem óculos. Também não sei se ela está falando de mim, o que me faz recuar.
— Olha, vou ser sincera. Quando te vi naquela cama, você parecia uma pessoa terrível. Esteticamente falando. Sabe... eu quase tive pesadelos, mas agora... u-a-u. Você é gatinhe.
— Gatinha. Eu uso pronomes femininos.
— Gatinha, isso. É que já tivemos um paciente no ano passado que a gente passou uma semana inteira chamando no feminino até ele corrigir. Foi horrível, então agora tentamos ser o mais neutro possível. Não deu muito certo uma vez porque a família da paciente era bem religiosa e eu tive que lidar com três dias de vídeo no volume alto sobre agenda queer. Isso não tem importância, mas só te norteando.
Absorvo. Ela fala rouco e devagar. O que significa que eu poderia ter a interrompido várias vezes, mas não interrompi porque estou surpresa com o "ano passado". Como assim ano passado?
— A propósito, oi. Sou a Cassandra. E você é Belém Martins, a garota da cara mais feia que eu já vi. — Separo os lábios. — Não mais, óbvio. Mas sim, ontem foi horrível.
— Eu não acho que isso seja algo agradável de dizer para outra pessoa — começo, meio zonza.
— Talvez, mas ultimamente ando desprovida de interações sociais, então é meio merda mesmo.
Sento na cama. Tento fingir que não estou procurando os óculos só para finalmente ver como ela é, mas é impossível. Cassandra percebe e acena assim que coloco a armação vermelha na cara. Ela tem a pele pálida e o cabelo em castanho escuro. Curto, um pouco abaixo do queixo. Os olhos delas são escuros também. Na verdade, parece um buraco negro me olhando. É magra. Sei pelas mãos, com dedos finos.
Parece um fantasma. Um fantasma bonito.
Endireito a postura.
— Você parece um fantasma — retruco.
Sim, eu ignoro o "bonito".
— Bonito? — Sorri de canto e se senta na cama.
Fica mais fácil de vê-la. Ela tem uma aparência cansada (doente).
— Sem acompanhante? Você é do tipo bondosa demais para aceitar que alguém te faça companhia no natal e perca toda a magia ou integrante da AAPP?
— O que é AAPP? — Franzo o rosto.
— Você é a primeira opção? — pergunta e depois desvia o rosto para meu braço. — É melhor ajeitar esse braço, se não vai perder o acesso.
— Não, não sou a primeira opção — respondo e acato seu conselho.
— Associação abandonados pelos pais. É assim que a Rita diz.
Solto uma risada que denuncia que a resposta é "sim".
— Acontece. Eu também sou.
— E tá aqui porque tentou comer camarão sabendo que tem alergia para chamar a atenção ou... — me exponho demais.
Sei lá, ela é assim, então... vai que me entende.
— ...não? Calma, você fez isso? Puta merda, você fez isso? — Que mico.
Desvio o rosto.
— Eu acho melhor não falar o porquê estou aqui.
— Por que não? Algo pior do que ter uma alergia de propósito e quase morrer? — pergunto, curiosa. — Fala sério.
— Não, é que pessoas costumam ficar muito sensíveis quando descobrem que uma desconhecida vai morrer e choram. Ou parece que é um velório de gente viva. Prefiro evitar.
Parece algo simples. Cassandra tem a voz rouca e calma. Exceto quando ri, ainda lembro das gargalhas altas que ela deu ontem a noite. Mas aí meu cérebro repete a frase aqui dentro e...
— Você vai morrer?
— Todos vamos. Mas é, talvez eu vá mais cedo.
— É uma piada ou... — começo, nervosa.
Pode ser uma piada. Eu não sei diferenciar os tons das coisas que ela fala.
— Sério. Eu tenho uma doença rara, na verdade. Meu coração é uma merda. Acho que ele vai parar em breve. Deveria ter parado já, mas sabe como é.
— Ah, você tá esperando um transplante de coração? — Tento pensar positivo.
Não que eu esteja sensível demais por alguém que não conheço, mas... ela é nova.
— Não. Até tentamos, mas nunca tem doadores compatíveis. E tipo, talvez isso nem funcione porque na real eles nem sabem o que está rolando comigo. Só que vou morrer, claro. E que já tive duas paradas cardíacas, então o negócio é sério. Provavelmente vão descobrir quando eu morrer porque autorizei que meu coração seja usado para estudo na universidade daqui.
Ok, estou sem palavras. Primeiro, ela vai mesmo morrer. Segundo, meus pais querem que eu faça medicina então eu vou para essa faculdade e vou tocar no coração dela? Tipo, literalmente.
Continuo parada. Sentada na cama, sem dizer nada. Eu ainda estou com fome. Infelizmente esse não é um momento de adrenalina que eu esqueço de necessidades básicas, meu estômago é barulhento.
— É... — coço a nuca — eu...
Não sei o que dizer. Não tem nada para confortar e, tá, eu não vou chorar porque estou perplexa demais pra isso, mas...
— Eu provavelmente vou fazer medicina na universidade daqui. Eu...
— Acho que vai ser só para pesquisadores, mas se você conseguir chegar perto do meu coração, por favor, cuide bem dele.
Separo os lábios.
— Ah. Você lida como se fosse uma coisa normal.
— É uma coisa normal. Não esquenta, você provavelmente vai sair em breve e esquecer o que eu disse. Será no máximo uma memória meio tragicômica — diz e olha para a tela do computador. — Mas você pode comer. Eu não vou morrer hoje.
Sem reação.
Na verdade, minha reação é seguir novamente seu conselho e pegar o pedaço de pão seco junto com a xícara de café com leite.
— E seus pais mesmo assim não ficam com você? — pergunto com a xícara em mãos. — Sei lá, eu não acredito que meus pais seriam tão péssimos a ponto de não ficar comigo sabendo que vou morrer.
— Ah, eu fui péssima nos últimos anos. — Ri. — Acontece.
Uau.
— Foi mal, estraguei seu espírito natalino.
Sorrio.
— Que espírito natalino? Eu estava sozinha em uma casa de quatro quartos e duas suítes comendo camarão mal cozido — retruco, apesar de que sim, ela piorou.
— Agora seu café da manhã é esse pão e esse café. Não melhorou tanto. — Olha novamente para a tela do computador e suspira. — Meu filme baixou, então...
E aí o quarto fica silencioso. Sem voz rouca falando muito ou interações mórbidas. Eu termino o café, alguém vem buscar o que sobrou e depois fico vidrada na tela do celular. Bem, não vou morrer mais de crise alérgica, então quando vou ser liberada?
Não tão cedo, pelo visto. Só passam enfermeiras por aqui. O almoço chega, a tarde chega. Eu até pergunto, mas ninguém sabe me dizer. E parece que Cassandra só falou comigo porque o filme ainda não tinha carregado.
— Você não cansa? — pergunto, mas ela não escuta.
Eu não sei se é exatamente de bom tom atrapalhar uma desconhecida que está no hospital, mas foi ela que começou.
— Cassandra — a chamo.
Tento me levantar da cama, mas eu me embaralho inteira e antes de conseguir por o primeiro pé no chão, eu caio. E o acesso sai. De uma vez. Junto com o esparadrapo que é puxado da minha pele.
Solto um dos maiores gritos da minha vida. E Cassandra finalmente percebe.
Aperta o botão vermelho, tira os fones de ouvido e desce da cama. Eu estou quase me contorcendo enquanto o sangue escorre no meu braço e as lágrimas começam a sair desesperadamente. Dói tanto. Cassandra provavelmente diz alguma coisa enquanto segura no meu braço para pressionar a pequena vazão de sangue, mas a dor é muito mai-
Oi, gente. Tudo bem? Espero que sim! Faz... seis meses que a gente não se vê por aqui? 🤟 Feliz natal!
Essa ideia minha é antiga e /vamos dizer/ que segue a premissa experimental de Amélia Lobos. É meio cômica, um pouquinho de drama e acontecimentos exagerados. Mas muito mais do que isso, é uma história sobre amadurecimento da fase adolescente para adulto (e a principal é um desastre!!!) e encontrar sua própria família (alô, trope found family!).
Espero que gostem. É um presente para vocês 🤏. Esse não é um livro natalino, mas acho que é legal começar exatamente (ou quase) quando ele também começa. Beijos!
Obs. já tem sinopse e capa na área! Pra quem checou com o "em breve", hihi.
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