Capítulo 2
"O OUTRO PAR"
— Bom dia, Lady-Vó.
— Bom dia, querido. Vai sair de casa mais cedo hoje?
— Tenho aula às sete e meia. — Terminando de abotoar seu uniforme, ele pegou sua pasta e suas chaves, indo até a porta. — Devo chegar em casa mais cedo. Até mais tarde, Lady-Vó.
— Até, meu querido.
Snow saiu e fez seu caminho para fora do prédio. Indo até seu carro, ele repassou a lista mental de tudo que deveria fazer durante a manhã. Ele não teria muito o que fazer após suas aulas além de entregar alguns novos projetos a Dra.Gaul, então...
— Coryo!
A voz familiar gritando seu nome chamou a atenção. Ele olhou para trás, com calma.
— Tigris.
Ela parecia um pouco envergonhada, olhando para os lados e com certo receio de olhar o primo nos olhos.
— Pode me deixar no ateliê? Por favor?
O loiro não tinha razões para negar o pedido. Seria uma parada rápida, um desvio de uma única rua do caminho até a universidade. Ele sabia que ela tinha alguma intenção com essa carona, considerando que ela pouco aceitava andar de carro com seu primo.
— Claro.
Ele deu um mínimo sorriso na tentativa de deixá-la mais confortável. Tigris entrou e sentou no banco do passageiro da frente enquanto Snow já colocava seu sinto e dava partida no carro.
Saindo de sua vaga ele começou o percurso até o ateliê.
Metade do caminho foi silencioso, não houveram palavras e Coryo nao fazia a mínima questão de começar, afinal ele não tinha problema nenhum com a prima ou como as coisas estavam, o incômodo era unicamente dela.
— Olha...eu não queria ter gritado com você ontem.
— Tudo bem.
— Mas, eu não gostei de como você desmereceu meu trabalho. E eu continuo achando que você está se afundando demais nas coisas da universidade e em ser aprendiz...
Snow suspirou, ele não era do tipo que gostava de discutir por coisas pequenas, a não ser que agregasse em algo para ele de alguma forma. Mas, nesse caso, era um drama em particular de Tigris que ele não levou a sério o suficiente a ponto de se chatear.
Mas, independente de achar a conversa inútil, ela ainda era sua prima...
— Me desculpe por ter desmerecido seu trabalho. Você é uma estilista talentosa, Tigris. Isso é inegável. — Ele pode ver um mínimo sorriso no rosto dela com seuncome comentário. — Mas, eu realmente não posso mudar minha rotina só porque você acha melhor. Eu preciso fazer o que faço. Não vou parar ou diminuir o ritmo.
— Eu sei, eu só...sinto falta de como algumas coisas eram antes. Você não se lembra?
Ele sabia o que sua prima quis dizer. Ela sentia falta dele e de como ele era, dos momentos que compartilharam, da Inocência que ele já teve um dia, dos seus olhos bondosos. Tigris verbalizou isso no dia anterior e não pediria desculpas por isso, porque não foi uma tentativa de ofendê-lo, foi apenas um desabafo.
Mas, apesar disso, Coriolanus tinha suas próprias opiniões sobre o passado.
— Sim, eu me lembro. Me lembro como eram difíceis, como alguns dias comer era questão de sorte, que vestíamos trapos e como tivemos problemas para cuidar de Lady-Vó e nós mesmos, ao mesmo tempo, sendo apenas duas crianças. — Coryo estacionou, o restante da conversa prendeu tanto a sua prima que mal notou que haviam chegado a rua de seu ateliê. Ele a encarou com um olhar sério, estoico. — O passado só parece bom porque você está escolhendo do que você quer se lembrar, não de tudo. Algumas coisas tem que ficar para trás.
Ela o devolveu um olhar entristecido balançando a cabeça e aceitando com resignação o que seu primo disse. Mal ou bem, era verdade.
Tigris tirou o cinto, abriu a porta do carro e saiu.
— Até mais tarde, Coryo.
— Até mais tarde, Tigris.
Ele saiu da vaga e voltou a fazer seu caminho para a universidade.
Coryo achava um saco que ela estivesse tão atordoada com como ele vinha agindo nos últimos anos, ele simplesmente estava mais sério, ambicioso e estava tendo sucesso com isso. Tudo estava melhor para ela e para ele, que estava satisfeito então, por que tanto drama?
"Sempre emotiva demais..." Ele pensou.
Mesmo assim, ainda era desconfortável ver sua prima tão estranha com ele, eles sempre foram muito próximos, afinal, ela era como uma irmã.
Mas, não tinha muito que ele pudesse fazer sobre isso. E não pretendia mudar quaisquer opiniões que houvesse por aí sobre ele. Nem mesmo as de Tigris.
[...]
A fama de Snow também se perpetuou na universidade. Muitos alunos queriam ser próximos do rapaz, na esperança de que o sucesso dele respingasse minimamente neles. Os professores o parabenizavam, alunos homens o respeitava, e as garotas reparavam cada vez mais nele.
Digamos que não faltavam pretendentes. Dos cinco anos para cá, ele já não era mais tão magro, e se tornou mais forte. Seu tempo como pacificador o ensinou a ser mais fisicamente disciplinado, e a importância de ter essa força, mesmo que mal a usasse.
As pessoas se jogavam em cima dele sugerindo aulas em conjunto, trabalhos de qualquer outra perda de tempo para poder ficar mais perto dele, e óbvio que ele não estava interessado. Garotas também passaram a tentar coisas parecidas, apenas perda de tempo. E, óbvio que ele não tinha a mínima intenção de aceitar. Haviam preocupações maiores no momento.
A popularidade não era algo ruim, ele sabia o quanto era importante ter os olhos dos fedelhos de famílias poderosas sobre ele. Afinal era algo que poderia fazer uso sempre que bem quisesse, com certeza, era uma vantagem.
Às vezes, podia ser um pouco sufocante...ter tantas pessoas desejando um pouco do que ele poderia a oferecer, a falsa simpatia e admiração que beirava (e chegava) a inveja.
Mas tudo bem, aquele era o preço por seu sucesso, e para ele, apenas o começo. Ao menos, isso tudo amaciava seu ego.
— Dito isso, encerramos a aula de hoje. Não se esqueçam que as datas para as provas do mês que vem já estão disponíveis, por tanto se preparem.
O professor se retirou da sala e Coryo juntou seu material o mais rápido possível, antes que qualquer puxa saco tentasse se jogar em cima dele.
Conferindo o relógio da sala, eram duas da tarde. Ele ficou mais tempo do que esperava.
Juntando suas coisas, ele saiu da sala e...
— Ei, com pressa?
Ele ouviu uma voz próxima demais a seu ouvido e, ao olhar para o lado...
— Livia.
— Hm, "oi" para você também. Não tenho visto você pelos corredores. Anda fugindo de mim?
— A esse ponto você já sabe que tenho coisas mais importantes para fazer.
— Cuidado, Snow... — Ela se aproximou, agarrando seu braço com um sorriso de canto. — Estudar tanto pode te sobrecarregar.
— Como se você não quisesse isso. — Ele respondeu seco e com certa agonia por ela estar o tocando em público. — Já terminou?
— Nós dois sabemos o que eu ganho com toda essa sua sobrecarga. — Livia soltou seu braço, corrigindo sua postura, exibindo seu corpo a passos lentos, amaciando sua voz enquanto falava com o loiro. — Quando vai me ver de novo?
— Quando eu achar necessário.
— E as minhas necessidades, hm? — Ela fez bico de um jeito travesso e entortou a cabeça, ainda o encarando. — Sabe, eu comprei uma nova garrafa de vinho. É italiano. Parece mais necessário agora?
— Vai ser divertido acabar com ela, sozinha.
— Ow, você é cruel, sabia? Sorte sua que faz parte do seu charme.
Ele não respondeu, apenas suspirou e acelerou seu passo.
— Até outra hora, Livia.
— Hum... — Ela sussurrou para si mesma: — até, Coryo.
[...]
— Projetos do mês?
Gaul pegou o envelope vermelho nas mãos de Coriolanus.
— Sim senhora. Por hora não tenho nenhuma implementação a adicionar.
Aleatoriamente, ela tirou uma folha e leu.
— "O mentiroso"? — Ela virou o papel para ele, mostrando o desenho do projeto e a descrição, tudo feito a mão por ele. — Explique.
— Um dispositivo que pode copiar a voz de qualquer um competidor ou animal. Aquele que portar precisaria de uma amostra de sangue daquele que quer ter a voz. Dito isso, o usuário digita o que quer que seja dito pela máquina e ela replica com a voz de quem quer que seja o sangue. Pode afastar inimigos ou servir de armadilha.
— Garoto, garoto...é uma vantagem grande demais sobre outros competidores.
— Por isso que, hipoteticamente, só pode ser disponibilizado com patrocínio. É exclusivo.
— Vou avaliar isso. — Ela deixou o papel e o envelope sobre sua mesa e alcançou um pote de vidro, o mostrando. — Oh, e sua mistura funcionou.
No pote, havia o novo Zangão que ele havia desenvolvido, estava vivo e saudável, com o corpo amarelo e o ferrão vermelho.
Ele sorriu.
— Agora precisamos trabalhar nos toques finais da Arena. — Gaul caminhou até sua mesa principal, pegando um pequeno dispositivo e o ativando. Com isso, a imagem da nova arena foi projetada por um holograma. — Dez quilômetros de diâmetro circular, cornucópia no centro de arena, com sete metros de altura. Como está o solo?
Coriolanus alcançou sua prancheta, folheando algumas páginas.
— Vejamos, solo de pedregulhos e terra úmida, com sete quilômetros de mata fechava e três de água.
— Armadilha naturais?
— Areia movediça camuflada, frutos venenosos e troncos que soltam sulfato de hidrogênio com a queima.
A doutora sorriu com certo orgulho, para ela, quando ela conheceu Coriolanus, ela o via como um experimento em potencial e após cinco anos sendo sua tutora, ela poderia dizer que ele era um de seus maiores sucessos.
— Liste as criaturas.
— Noctivíbora, Terrosas e os Zangões. Todos estão alimentados e agora estamos esperando o transporte para mandá-los para a arena.
— E seus Zangões estão estáveis?
Ele sorriu minimamente, antes de responder.
— Perfeitamente.
— Muito bom garoto. Agora...
De repente, um apagão!
O laboratório tudo ficou escuro e as criaturas enjauladas se agitaram. Coriolanus recuou e ficou alerta ao ouvir passos apressados, mas não ousou fugir!
De repente, tudo se acendeu de novo, luzes fracas e amareladas tomaram conta do laboratório, ao invés das habituais.
Gaul estava longe, com as mãos em uma alavanca que estava abaixada. Ela ligou o gerador de emergência.
— Há algo errado. — Ele disse, andando com pressa até o elevador. — Ande, vamos subir!
Coriolanus correu para o elevador, e quando chegaram no hall principal da mansão, os pacificadores da entrada já estavam esperando.
— Senhora não é seguro aqui! Precisamos que volte ao laboratório e espere até que as luzes se estabilizem!
— Bobagem! Apenas guardem a entrada e o elevador. Garoto, me acompanhe!
Os dois seguiram pelos corredores da mansão até chegarem a um cômodo de portas trancadas. A doutora tirou um molho de chaves do bolso e demorou pouco para achar certa.
Com a porta destrancada os dois entraram e Gaul foi direto a escrivaninha. Aquele era seu escritório. Um local de cortinas fechadas, paredes vermelhas, estantes e pilhas intermináveis de livros, pastas e arquivos. Na mesma escrivaninha bagunçada, havia uma pequena televisão desligada.
— Precisamos ficar atentos. — Ela disse, abrindo uma gaveta qualquer e pegamos um controle. — Se esse apagão for geral, significa que...
— Algo aconteceu na hidroelétrica da cidade.
Ele completou. A doutora ligou a televisão, caído justamente no canal de notícias.
"— E voltando ao grande foco desta quinta-feira: A Capital acaba de enfrentar um grande apagão! As turbinas da usina hidrelétrica número quatro, a principal fonte de energia da Capital, foram destruídas! A polícia afirma que um grupo de rebeldes do Distrito doze tentaram explodi-la por completo com bombas caseiras..."
Coriolanus estreitou os olhos e franziu a testa, ainda mais concentrados na notícia.
" — os rebeldes foram capturados antes do feito e mandados para o presídio da Capital, onde aguardam até a segunda ordem para serem enviados de volta a seus distritos e executados. Os rebeldes atendem por Joseph Junior, William Molk, Janine Brown e Maude Ivory Baird."
O nome prendeu a atenção de Coriolanus.
Maude Ivory Baird.
Ela...era prima de Lucy Gray.
A foto tirada dos quatro rebeldes, já presos, foi colocada na tela, enquanto a reportagem continuava.
"— Os rebeldes foram encontrados a poucos quilômetros na usina, entre as principais linhas de trem da..."
A reportagem continuou, mas, para ele, o mundo foi ficando em silêncio aos poucos quando ele prestou mais atenção na foto...
Na orelha direita de Maude, entre os cabelos bagunçados, a sujeira, os machucados...
Estava lá, o outro par do brinco de Lucy Gray, aquele cujo outro par Snow guardou por cinco anos. Ele não estava louco...ou estava?
Ele encarou aquele objeto por noites incontáveis antes de dormir e podia ter certeza de que aquele, na orelha de Maude, era o outro par.
Seu corpo congelou, assim como sua expressão. Dúvidas e questionamentos invadiram violentamente sua cabeça.
— Criaturinhas repugnantes! — Coriolanus piscou algumas vezes e acordou daquele transe rapidamente, olhando para a doutora, cheia de ódio em sua expressão. — Eles não vão escapar disso...
— Provavelmente serão enforcados.
— Às vezes os enforcamentos não me parecem o suficiente para animais tão insubordinados como eles. — Ela disse, largando o controle sobre a mesa e saindo. — Preciso ir à mansão presidencial. Vá para casa garoto, já não tem mais nada para você fazer aqui hoje.
[...]
— Coryo! — Tigris chamou assim que viu finalmente entrar em casa. — Eu voltei correndo quando o apagão aconteceu! Onde você estava?! E o que houve?!
— Não precisa entrar em pânico. Onde está Lady-Vó?
— Ela foi dormir mais cedo.
— Ótimo, ela não precisa ouvir sobre essas coisas. — Disse, tirando seu casaco e penteando seus cabelos para trás. Mesmo que conseguisse disfarçar, ele mesmo ainda estava processando o que viu. — Um grupo de rebeldes do doze atacou a usina da cidade, por isso o apagão.
— Rebeldes do doze? E, por que eles fariam isso?
— São animais Tigris, eles usam violência gratuita...não precisam de motivos.
Coriolanus andou pelo apartamento, indo até a cozinha e procurando alguma coisa para comer, a garota foi atrás dele, ainda parecendo nervosa e preocupada.
— Tem alguma ideia de quanto a energia deve voltar?
— Provavelmente amanhã à tarde. — Ele viu nela aquele olhar medroso, o mesmo que já viu algumas vezes durante a guerra. — Não precisa ficar preocupada, nós estamos seguros aqui.
Seu olhar preocupado entregava que ela não se sentia tão segura assim, mas não havia muito que ele pudesse fazer a respeito.
— Eu vou acender algumas velas.
Tigris saiu da sala sem dizer muito mais. Coriolanus deu um breve suspiro e andou até o banheiro. Ainda na escuridão, ele desabotoou sua blusa, se desfazendo de suas roupas aos poucos, entrando embaixo do chuveiro.
A água quente caiu sobre seu pescoço, ombros e costas, sentindo seus músculos relaxando aos poucos. Ele apoiou as mãos na parede e encarou o piso, respirando fundo, pensando...e pensando.
A situação de mais cedo invadiu sua cabeça mais uma vez, Maude Ivory Baird, aquele brinco...Coriolanus não estava acostumado a se sentir incerto sobre as coisas que via, e por isso aquela cena não saia de sua cabeça. Era realmente o outro par; Será que estava apenas cansado demais quando assistiu a aquela reportagem; Ele pode ter certeza absoluta de que, da última vez que viu Lucy Gray, ela usava os...não.
Ele não queria relembrar aquele momento, reviver aquela memória, não.
Seu único objetivo era se lembrar da raiva, do mal que ela o fez. Nada mais. Não o seu rosto, seu sorriso, ou seus olhos. Nada. Nada sobre ela. Apenas a raiva, apenas o ódio, apenas a constante lembrança de que ele deveria focar apenas e unicamente em sua busca pelo poder.
Coriolanus balançou a cabeça e fechou o chuveiro, se recompondo e respirando fundo.
Não valia a pena se entregar a esse delírio.
O passado está no passado, Lucy Gray está morta.
Nada vai mudar.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top