você é cruel!
Na infância, curioso, ficava tentado a enfiar um clipe na tomada somente para ver no que realmente daria. Porque todos diziam que era perigoso, iríamos ao hospital, morreríamos eletrocutados. Fascinado pela vontade de testar, ficava no meio-termo de tentativas e desistências. Porque às vezes não basta só a palavra do próximo, precisamos ter a certeza, precisamos quebrar a cara um pouquinho. Meu pai havia me impedido num momento desses, sacudiu-me e gritou para que nunca mais fizesse outra vez. Senti medo, não quis mais tentar. Mas não tem ninguém aqui comigo, me sacudindo para que eu não tente mais me encaixar em formatos previamente moldados por alheios. Eu ainda estou tentando. Parece que as coisas não mudaram.
Percebi isso tarde demais, simplesmente não dá para fugir. Consigo ver seu reflexo no espelho, deslizando a lâmina de barbear pelo queixo e um olhar focado. Tão focado e cuidadoso! Sinto vontade de sair desse box e abraçá-lo bem forte por trás. Dizer que, ainda que ele um dia venha a me aparecer com a barba de Moisés no rosto — grossa, espetada, àspera —, ele continuaria genuinamente adorável e lindo. Mas eu não faço nada disso e não digo nada. Apenas me enrolo na espessa toalha creme e surjo ao seu lado para escovar os dentes.
— Que música é essa? — quer saber, curioso, ao ouvir-me cantarolar uma canção primaveril de um cantor britânico.
Arremesso a espuma do creme dental à pia e bochecho a água do copo. Em seguida, viro-me para Ten e encontro-o com um olhar expectativo.
— Sunflower de Rex Orange County — enxugo os lábios e guardo minha escova. Estou feliz por ter me organizado quanto a isso, mesmo que eu saiba que tenho uma escova para mim aqui.
— Hm... Nós não temos gostos musicais parecidos — ele comenta, agora enxaguando o rosto lisinho. — Quer dizer, não que eu saiba.
— Ontem no carro você colocou Location de Khalid e ela é uma puta música — encosto-me na pia e passo a observa-lo admirar-se através do espelho. Eu gosto da sua autoestima.
Ten sorri e passa a cantar o refrão da música. A melódica voz e doce, assim como mel fresco, esfregando na minha cara quão perfeito é: "Send me your location, let's focus on communicating cause I just need the time and place to come through..." Ainda armado com o maldito sorriso, que eu juro de joelhos que está é fingindo o modo despretensioso, vira-se para mim e espera que eu continue. Mas eu não continuo. Eu quero muito abraçá-lo agora. Quero muito. Muito mesmo.
— Ah, que sem graça, Taeyong! — ele solta uma gargalhada, divertindo-se com a minha travada pouco sutil ao vê-lo sorrir assim para mim. Então passo a assisti-lo ajeitar o roupão no corpo e ele percebe minha atenção. — Você está desocupado assim, é?
— Não — rio de nervoso para disfarçar e coço a nuca. Queria poder falar mais, dizer o que estou sentindo. Mas eu não posso jogar as coisas na lata assim.
E eu sei que Ten não é de falar o que sente, sei que mesmo que me amasse, nunca chegaria para dizer as benditas palavras. Por isso nunca sei o que ele está sentindo. Porque é muito fácil se enganar com ele e esse jeitinho despreocupado, leve, calmo e doce. Esse sorriso que me faz pensar que a vida é bela porque ele existe. E que não há razão para o sol nascer periodicamente se não for para contemplá-lo. Porque até eu, às vezes, gostaria de ser moléculas de oxigênio para estar com ele sempre. Assim ele precisaria de mim. Assim eu estaria no seu coração. Só assim mesmo. Só assim.
— Vem cá... — puxa-me pela cintura, surpreendendo-me. Me arrepio de nervoso (ou talvez seja seu toque?). Ainda estamos molhados, consigo sentir seus dedos úmidos na minha pele, tateando vagarosamente. — Por que você sempre perde tempo?
Por que eu sempre perco tempo? Por que ele foi mais rápido que eu? Por que ele me puxa pela nuca e eu não faço nada? Segurar a ponta da pia atrás de mim conta como ação, certo? Espero que minhas pernas não estejam bambas. Ele se aproximou tão rápido. Meu Deus, nem pude imaginar! Nem consigo acreditar! Nem paro pra pensar, porque ele vem com três selinhos e então vem sua língua. Vem. Essa é uma boa palavra. Ele só vem e vem. Nos encaixamos bem e eu aqueço-me na sua boca. Os quadris se chocam, ainda que o nó irritante do roupão de Ten esteja nos atrapalhando um pouco. Eu odeio gostar disso. Eu odeio. Queria odiá-lo. Por que ele me faz tão bem? Queria odiá-lo.
— Não faz isso, não — impeço quando ele começa a desmanchar o laço. Eu sei que ele está pelado por baixo. Eu sei o que eu acabaria fazendo se ele deixasse isso cair. E voltar a estaca zero não me ajuda muito.
Quer dizer... Ah, vamos lá! Yuta falou com todas as letras: se eu gosto dele, se ele é minha pessoal especial, eu deveria ir. Mas não tão rápido assim, certo? Não que eu seja criterioso sobre como e quando vamos fazer, só queria que fôssemos com calma. E nisso não quero dizer que não estamos com calma agora, mas eu percebi que a cada vez que eu fujo disso, Ten aparece mais determinado e rápido demais.
— Não vamos fazer nada. Isso está me atrapalhando — afasta suas mãos das minhas e volta a desamarrar, mas eu abraço-o para complicar. Fico assim, abraçando ele e isso já é o suficiente. Ele me abraça também. Eu gosto quando nos abraçamos, porque eu posso fazê-lo perceber quão rápido meu coração fica quando estou com ele. — Tae?... Yong?
Sua pausa ao pronunciar meu nome e a mudança de tom evidenciam que ele apenas iria me chamar de Tae. Só de Tae. Mas levou alguns segundos para completar e assim concluo que talvez ele não queira me chamar de Tae porque outra pessoa já me chama assim. Parecido. Eu sei disso. Eu sei que ele não gosta da ideia de outras pessoas serem (talvez um pouco) íntimas minhas. O que é irônico, já que não posso nem comentar sobre aqueles caras na cola dele.
— Hm? — resmungo com o rosto no seu pescoço cheiroso e macio. Queria lamber e morder, mas ele se jogaria sobre mim e acabaríamos no quarto.
— Eu... Poderia ver sua tatuagem? — Só pra eu saber como é. Você não precisa me mostrar muito... — afasta-se, me olha cheio de expectativa. — Tatuagens na virilha são bem perigosas, sabia? E doem bastante. Não acredito que teve coragem de fazer isso. Não faz o seu tipo. Ou a imagem que tenho de você.
— Eu estava bêbado.
Ten ri e desce o olhar para a pontinha da tatuagem que está escapando da toalha enrolada no meu quadril. Fico pensando no quão ele quer isso, quão ele quer me ter dessa maneira. Eu não me acho o cara mais atraente do mundo e eu acho ele mais que eu. Mas, sei lá, é difícil gostar de alguém que gosta de mim assim.
Me sinto o próprio Platão e o dilema do dualismo psicofísico: alma e corpo, em sintonia, em oposição. Sinto que amo nele a sua parte imaterial, imortal, perfeita. Amo sua alma. Sinto que ele gosta da minha parte material, imperfeita, mortal. Ele gosta do meu corpo, do que tateia, do que sente. Não sei se, assim como o dualismo platônico, há uma relação interdependente entre nós. Sonho que sim, mas clamo que não.
— Você sempre está bêbado quando faz as coisas — comenta, dedilhando a área da tatuagem que ele pode ver. Eu deixo.
— Você sabe que eu não me dou muito bem com bebidas — seguro sua mãozinha levada que já estava escorregando para dentro da toalha quase sem querer. Viro Ten de costas pelos ombros e agarro uma toalha para enxugar o cabelo dele. — Seu cabelo está todo molhado. Deixa eu te ajudar.
Ele não diz nada, mas pelo espelho posso vê-lo sorrir com a situação. Eu sei que ele não iria fazer nada que eu não quisesse, só estava provocando para saber até onde iria dar. Fecha os olhos, apertando-os, sentimento meu carinho, minha delicadeza ao esfregar a toalha nos seus fios úmidos. Percebo que nunca fui de fazer carinho nele, mas que sempre é o contrário. É o contrário. Eu lhe faço massagem, ele me faz carinho. Tão opostos! Como corpo e alma. Como algo platônico. Ah, Platão...
— Posso olhar rapidinho? — indago, pousando a toalha na bancada da pia e inclinando-me para afastar um pouco o roupão do seu peitoral. Ten abre os olhos e me encara através do espelho. Concorda com a cabeça e então empurro o tecido para o lado. Sinto ele grudar o corpo ao meu. Tipo, de verdade. — Você está mais moreninho. Estive observando isso.
Abraço-o pelos ombros, sentindo tua íris crua fritando meu rosto. Beijo-lhe a mandíbula bem devagar, para matá-lo. Beijo e vou descendo para o pescoço. Distribuindo beijos molhados, porque eu não consigo mais segurar essa vontade. E eu sei que ele gosta. Ele se derrete por inteiro.
— Ai, Taeyong, sua barba... — se esquiva, após alguns segundos de estranhamento ao seu corpo enrijecer. — Está me dando agonia.
— Mas nem está grande — me defendo, internamente guardando a informação de que ele aparentemente abomina isso. Nunca cheguei a ver um pelo no seu corpo. Mas também não tenho muito o que falar sobre, uma vez que nunca vi seu corpo inteiro. — Por que se incomoda?
— Você está com a barba assim desde a semana passada, mas agora está maior — faz uma careta e eu sorrio. — Me dá agonia. Vai fazer a barba.
— Ah, te dá agonia, é? — sorrio diabolicamente, pronto para infernizar ele com isso. Enfio a mão esquerda nos seus cabelos e faço um carinho. — Isso realmente é sério?
— Claro. Incomoda muito. Fica cutucando — torce o nariz, reclamando, grudando-se mais a mim. Agora percebo que a parte de trás do seu corpo está completamente grudada a minha frontal e isso é interessante. Eu sei que ele fez propositalmente. Eu não vou negar que é bom. Se ele for sensato, que por favor não mova a droga do quadril. É uma prece aos deuses.
— Mas isso é normal. Somos homens — abaixo o rosto para o seu pescoço e passo a roçar os lábios pela sua pele, como pretexto para meu queixo entrar em contato e provocar incômodo com o atrito da barba pequena.
— Mas eu não gosto — ele abaixa a cabeça, tenta me impedir, não me dar espaço. Faço-o deixar o pescoço livre ao puxar seu cabelo para trás. Ele morde os lábios e sei que interpretou isso de uma maneira muito, mas muito impura. E eu também não quis fazer isso com inocência.
— Tem certeza que não gosta? — brinco, fazendo de tudo para tirá-lo dos eixos. Não sei se quero deixá-lo com tesão ou raiva. Talvez os dois. Mas prefiro deixá-lo com raiva.
— Poxa, mas você é insuportável, Taeyong! — tenta afastar o rosto de mim, mas não adianta muito quando eu estou no controle. Esfrego nossos queixos, provoco-o com os os pelinhos arranhando sua pele. — Ahh, você é cruel!
Eu rio, feliz por estar tirando ele do sério. Talvez ele esteja irritadiço não só pela minha provocação com a ínfima barba que tenho no rosto, mas também porque estou controlando a situação e ele é quem normalmente faz isso. E mesmo que ele reclame e me xingue, eu continuo a esfregar a barba nele. Com olhos fechados e a boca cheia de palavrões, ele tenta esquivar. Mas está rindo, então ainda estamos brincando. Ainda que esteja vagarosamente (desconheço ser despretensioso ou não) esfregando seu corpo ao meu. Estamos em total atrito.
— Merda, você é muito chato, Taeyong! — reclama rindo, empurrando-me com o cotovelo para trás. Percebendo que já foi o suficiente, largo-o e passo a sorrir vitorioso. — Pronto, agora está ardendo.
— Não está, não — digo, aproximando-me devagar para avaliar. Eita. Talvez esteja sim. — Está muito?
— Não muito, mas é incômodo. Que saco você! — vira-se para mim e deita um tapa no meu peito. Eu olho para a região do seu rosto que irritei e percebo que ela está muito rosada. Ele passa a mão no local e faz uma cara feia. — Está sensível e irritada.
— Me desculpa, eu não sabia que ia ficar assim!
Seguro seu rosto com minhas mãos e passo a contemplar seus olhos. Não sei se encontro ou me perco no formato, na íris, no brilho estrelar que vem dele. Galileu Galilei nunca falou sobre isso, deixou-me como pioneiro: as estrelas são apenas o reflexo do brilho deste homem. O céu é um espelho. A atmosfera é um prisma. Tudo brilha porque ele brilha.
— Me desculpa, docinho, me desculpa — beijo-lhe toda a face. Queria sussurrar que amo-o, mas ele não está nesse vibe de me abraçar quando escutar isso. Ele nunca nem disse o "também". Nem o mísero "também". Talvez ele não queira mentir. — Você me desculpa?
— Só se me deixar fazer sua barba.
Respiro fundo. Tive que aceitar, tive que concordar com a cabeça. Ninguém nunca tinha me feito a barba, então é uma novidade para mim. Ele me faz sentar na tampa do sanitário, ergue meu queixo, pega a espuma de barbear e mais outros apetrechos. Fico com vontade de sorrir o tempo todo, porque ele é cuidadoso e gentil. Ele se atenta aos detalhes, decerto, é muito focado. Desliza a lâmina cuidadosamente, mais delicado que eu. Às vezes me corto, mas ele não chega nem perto de fazer isso. Quando termina e alisa meu rosto para checar o trabalho, me faz fazer mesmo e ficamos trocando sorrisos.
Acho que quero me casar com ele.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top