CAPÍTULO 03 - IAN MARTEL

Narrado por Ian Martel

                                              CAPÍTULO 03

Meu nome, acredito que seja Ian Martel. Meio louco a maneira como vim parar aqui. Eu tinha uma família num dia e no outro fui adotada por outros. A Família Que Sobreviveu. Não nego achar uma paródia com Harry Potter, mas é assim que aconteceu. Sobrevivemos a tragédia que matou 5000 mil pessoas. No início éramos famosos, brincávamos cada dia num lugar, visitamos cada uma televisão, comíamos em todos os restaurantes de graça, ganhávamos presentes até por fim, sermos apenas nós três. Não posso reclamar da minha vida. Tenho dois pais homens. O primeiro é Cael, é o chefe da família, ele que põe ordem na casa. Ele que escolhe quase tudo o que temos que fazer e ir. Gosto muito dele, mas ele é bravo e mandão. Quase nunca é gentil e, quando é, é por causa do meu outro pai. O segundo, Yuri, sempre de bem com a vida. Gosta de tudo o que fazemos. Ele tem estilo da hora, fala da hora, é amigo de todos. Meus amigos o invejam, pois queriam um pai como o Yuri em casa.

O pai Yuri tem um problema de saúde sério. Por isso nós somos obrigados a ficar em casa a maioria das festas que temos na cidade. Quero dizer, das raras festas que temos, somos obrigados a ficar em casa. Do nada ele está normal e, de repente, ele fica cheio dos trimiliques e fica raivoso. Eu não gosto de vê-lo assim. Não gosto mesmo. Choro sempre que presencio uma dessas cenas. Sempre acontece coisas terríveis e do nada o pai Yuri esquece de tudo. Ele nunca lembra dos problemas, nunca lembra das brigas, nunca lembra nas minhas festas de aniversário, nunca lembras das notas boas que tiro, nunca lembra dos gols que faço, das apresentações que tenho, dos segredos que conto a ele. Já o pai Cael nem faz questão ser gente boa, até porque, ele vive pelo pai Yuri. Pior é que ninguém precisa passar pelo que passo. Viver com medo do meu pai. Queria fugir daqui, fugir dos meus amigos, fugir desse povo que só sabe zoar com a cara de quem tem problemas.

Queria dizer pro pai Yuri, que me acabou de deixar no colégio, que eu poderia ficar tranquilo, que eu arrumaria meu emprego e moraria sozinho, já que não posso fazer parte da família. Assim o Cael não precisaria descontar tudo em mim e nem o Yuri fingir que está tudo bem. Teria minha própria casa e minhas próprias coisas. Os visitaria de final de semana.

- Señor Alberto donde acho um emprego? - perguntei ao zelador da escola.

Ele olhou bem no fundo dos meus olhos, deu uma risada larga e virou as costas.

- Estou falando sério!

- Quantos años tienes?

- 11 señor?

- Vai brincar com seus amigos moleque – disse ele num tom grosseiro – deixe o trabalho para os adultos.

- Yo posso trabalhar como adulto!

Mas ele virou as costas novamente e me deixou falando sozinho.

"Talvez eu devesse perguntar alguém mais importante!"

Aquele dois ali a frente são meus melhores amigos, Alejandro e Hugo. O Hugo vive no campo de refugiados do meu pai, já o Alejandro vive com sua família em San Carlos. São as duas únicas família que, da soma total de amigos, aceitam ter amizade com o meu pai Yuri. As outras famílias tem medo de deixar seus filhos com a nossa e meu pai ter um Surto e as machucarem.

- Buenos dias Alejandro e Hugo.

- Seu pai Yuri é muito legal! – disse o Alejandro com sorriso largo.

- Super! – concordei num tom irônico.

- Sério! Deve ser muito legal ter um pai como ele.

Apenas concordei que sim!

- Você já... já o viu fazer o que fez com aquele touro?

- Montar?

- Não!

- Encantar o touro! – disse o Hugo que estava muito quieto – como se usasse a mente? – ele esticou a mão e, com a outra, tocou a testa como se fosse fazer alguma coisa telepática.

Mas nossa alegria durou pouco. O Miguel, um garoto que seu eu pudesse, passaria com o carro por cima, chegou com a sua gangue.

- Estão todos interessados no pai da Pocahontas fazendo o boi dormir.

- Vamos pessoal – chamei os meninos, mas fomos barrados de passar pela turminha do Miguel.

- Sério! Fazer boi dormir todos aqui já viram, mas o que ninguém sabe, é como o seu pai fica dentro da sua casa. Se eles ficam... mumumumu se beijando na sua frente.

- Ou... passando o pinto um no outro – disse o outro amigo de Miguel.

- Arrrg que nojo – cuspiu um dos meninos da turma.

- Fala como só meus pais fossem homossexuais aqui!

- A mãe da Vitoria e da Claudia são lésbicas! Duas mulheres pode! – disse o Miguel co o peito estufado.

- Se você não sabe, a palavra homo significa igual e duas mulheres são homo. Assim como a palavra burro significa você!

- E daí? – indagou o Miguel – mulher com mulher é bom. Mulher com mulher pode sim! Agora seus pais. Dois homens barbados...

- O que está acontecendo aqui? – perguntou a professora.

Nos entreolhamos por uns momentos. O Miguel fizera um gesto pra não dizer, mas...

- Eles estão tirando sarro nos pais do Ian. Dizendo que são dois homens que se beijam.

- Que falta de educação. O senhor Yuri ajuda tanto com essa escola e prometemos ajuda-los Miguel.

- Na verdade professora...

- Sem verdades aqui. Somos um país livre. E agora seja bom anfitrião e leve todos de volta a classe – ordenou a professora.

Tivemos todas as aulas normais. Para minha alegria o Miguel e seus amigos nos deixara quietos a manhã toda. Quer dizer quase a manhã toda. A professora de Espanhol pediu para que fizéssemos uma redação sobre o melhor tema da minha vida: família. Leríamos em voz alta no final da aula. Como se não bastasse, mais um dia de mico para mim. As pessoas, antes mesmo de começarmos a expor nossos trabalhos, já riam da possível redação que fiz. Esperei batendo os pés com força no chão, na esperança que o sinal tocasse antes do meu nome, mas não. Ao me chamar, a classe toda ficou em silêncio, como se fosse novidade a minha família.

- Bom, sou Ian Martel, filho do Cael e Yuri Martel...

Mas fui interrompido por uma onda de risos. A professora fez o famoso "shiiiiiiiiiiii" e todos voltaram a me olhar e ouvir.

- O meu pai tem 45 anos...

- Qual deles? – perguntou um dos idiotas.

- Vai começar com as piadas? – perguntou a professora abrindo o diário de classe – dou uma advertência para o primeiro palhaço.

- Mas professora, ele tem dois pais homens... qual ele tá falando?

Ela olhou o garoto com cara de bosta, mas teve que concordar com a pergunta.

- Meu pai Cael tem 45 anos. Ele trabalha com plantações, criações de animais. Ele mesmo cria e os vende para cidade.

- Seu pai escraviza o pessoal que trabalha com ele. Vende o que os outros plantam – disse o Miguel.

- Nas terras dele! Todos vivem das terras dele.

- Se deixou morar lá, então não deveria roubar de ninguém!

- Vamos parar com essa idiotice. O pai dele não rouba nada de ninguém! Ian, tenho certeza que todos são gratos pelo seu pai ter dado suas terras para eles morarem. E Miguel, você não tem pais homossexuais, você não tem pais que moram nos campos. E... até onde sabemos, seus pais adoram os pais do Ian. Por isso, cale a boca até o final da aula. Prossiga Ian.

- Tem o meu pai Yuri, tem 45 anos, ele põe no papel tudo o que meu pai Cael faz!

- Isso chama administrar querido! – disse a professor fazendo minhas bochechas arderem.

- Ele administra os trabalhos do meu pai Cael.

- Você é filho de qual deles? – perguntou uma das meninas.

- Ele é adotado sua mula. Uruguay inteiro sabe da história – retrucou um dos moleques.

- Calem a boca!

- Eu sou filho dos dois! Os dois me amam e me dão tudo de melhor no mundo!

- E não tem curiosidade de saber quem é sua mãe...?

- MARIA? – chamou atenção a professora – cada pergunta.

-professora, você quer que nós façamos perguntas, mas não deixa. Por que não pula o queridinho Ian?

- Minha mãe é uma índia que deve ter morrido, ok? Está feliz com a resposta – respondi sentindo o peito arder – meus pais são o Yuri e o Cael. Gostem disso vocês ou não. Meus pais passam o dia cuidado de famílias e eu sou prova disso, porque fico com eles o dia todo.

- Muito obrigado Ian, pode sentar!

- Ian, quero fazer uma pergunta? – perguntou um dos meninos da trupe do Miguel.

Olhei para professora na esperança que ela me dispensasse, mas ela quis saber o conteúdo.

- Queria saber se... se você já viu seu pai o Yuri fazer aquilo com os touros?

- Você sabia que meu pai o Cael foi um dos maiores montadores de touros do Brasil. Que ganhou muito dinheiro e fama por onde passou?

- Ele faz o touro dormir também?

- Não!

- Então não me interessa! Quero dizer... – recomeçou ele ao ver a cara da professora – o Cael é tão normal quanto os outros peões famosos. Já o Yuri... ele tem poderes.

- Meu pai não tem poderes!

- Mas todos viram o que ele fez!

- Não, ele nunca fez isso perto de mim.

- Por quê? – perguntou outro menino.

- Porque ele não compete mais!

- Ele, pelo que meu pai disse, fez outro tipo de touro dormir – disse o Miguel arrancando gargalhadas da classe.

Sem pensar, sai correndo com toda minha velocidade para cima do Miguel e, antes que chegasse perto dele, joguei meu corpo no chão e acertei seus joelhos, derrubando em cima de mim. Aproveitei para catar sua cabeça e arremessar contra a carteira. Mas na terceira pancada, fui segurado pela professora.

- Vocês dois, para diretoria, agora! – disse ela chamando o zelador que nos encaminhou para diretoria.

Ficamos lá por mais de 40 minutos, um em cada canto. Primeiro o pai do Miguel apareceu, com a cara roxa e séria.

- Miguel, pela 3 vezes nesse bimestre?

- Isso significa suspensão por 03 dias!

- Pelo menos posso saber o motivo?

- Ele estava fazendo chacota com os pais o Ian?

- Chacota Miguel? Que tipo de chacota?

- Homofobia! – respondeu a professora – comentários bem pesados para um garoto de 11 anos.

- Miguel, não tem vergonha na sua cara? Sou muito amigo do Cael e o Yuri. Trouxemos na nossa casa por tantas vezes. Não tem vergonha? Sabia que você come o que o Cael planta?

Mas o Miguel olhava enojado para mim.

- Gostaríamos que o senhor orientasse o seu filho em questão a homofobia...

- NÃO HÁ HOMOFOBIA NA MINHA FAMÍLIA! – Berrou o pai do Miguel indo para cima do filho e o levantando.

- Senhor, entendo bem. Mas são jovens tendem a ter comportamentos bem diferentes dos de casa.

- És uma vergonha Miguel. Nunca na minha família se admitiu uma barbaridade dessas – bravejou junto com um tapa bem dado com as costas das mãos.

Ninguém interviu. Todos viram aquela cena calados. Da outra aporta entrou o meu pai Yuri. Como sempre sorridente e com as bochechas coradas. Coradas por estar nervoso com não saber o que houve.

- Senhor Yuri! – cumprimentou todos, inclusive o pai do Miguel, com um forte abraço no meu pai.

- Posso saber o que houve? - perguntou meu pai me abraçando por trás. Como forma de proteção – o que o Ian fez?

- O Ian é um excelente garoto...

- Yuri, me desculpe. O babaca do meu filho fez piadas idiotas contra sua família. MIGUEL, PEÇA DESCULPAS AO YURI.

- Yuri... me... me desculpe mesmo. Eu não queria ter chegado aonde chegou.

- Mas preciso ressaltar que é a 3 vez nesse bimestre. Se o senhor Yuri puder ter uma palavra com o seu filho.

- Meu filho? – perguntou o Yuri sem entender – o que meu filho fez de errado que não entendi?

- Eu bati no Miguel por ele fazer piada da nossa família...

- E digo que sempre repudiei isso na minha família Yuri – prontificou o pai do Miguel novamente.

- Vamos facilitar. Senhor, durante esses três dias, tente ensinar seu filho sobre o que é família, núcleo família e amor. Yuri e Ian estão dispensados. Apenas uma ressalva, seu uso de brigas de mão.

- Obrigado – despediu o meu pai.

Caminhamos pelo pátio, rumo a saída da escola. Meu pai pegou minha mochila e segurou minha mão para irmos até nosso carro. Pra minha alegria, o pai Cael estava no volante. Olhei fundo para seus olhos negros e sérios que nãos esboçava nenhum sorriso. Nem mal entrei e ele já veio com a metralhadora de discursos.

- Mais uma vez Ian? Mais uma vez tirando nós dois do trabalho pra vir aqui te ajudar pense bem se um dia vai morar sozinho quando crescer. Porque se querers viver sozinho um dia, tem que resolver seus problemas sozinhos.

"Vai se foder pai! Nem quer saber o que houve!"

- Ele nem participou da briga. Quer dizer, se defendeu!

- De novo?

"E lá vai os dois, discutindo por algo que nem estavam!"

- Deixe o menino contar – pediu o Yuri

- Nem quero. Tudo o que o pai Cael disser é lei!

- Olha essa boca rapaz! – ponderou o Cael.

- Ah, vai meu. EU DEFENDI VOCÊS DOIS. DEFENDI NÓS TRÊS E VOCÊ ESTÁ MAIS UMA VEZ ME CULPANDO. NÃO QUERO FALAR. NÃO QUERO NEM OLHAR PRA VOCÊS. SEMPRE EU ERRADO. JÁ SE PERGUNTOU "POR QUE SEMPRE EU BRIGO POR VOCÊS!"

- Olhe a boca de novo! – disse o Cael muito sério.

- Ok, calo a boca e me deixem quietos!

E essa é a introdução da minha pequena vida. Minha vida é viver explicando como um índio virou filho de dois homossexuais. Ganhando ou perdendo um dialogo, sempre sou o culpado para o pai Cael. Quero muito mudar meu conceito, muito mesmo. Mas quanto mais adulto fico, mais com vontade de fugir eu tenho. Fechei minha cara, não quis falar com os dois e por fim, passei a tarde toda dormindo. Quando acordar, quero ver o que há de novo para minha alegria.

s://cm.

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