RACHEL


I

(Dezoito horas antes)

Diana atirou a mochila no banco traseiro de um Troller laranja, estacionado ao lado de um SUV preto e um Corolla prata, na garagem. Perdeu-se, momentaneamente, na vontade de ficar e esquecer, de vez, o tio e a vingança.

Queria paz.

Ansiava ser uma mulher normal outra vez. Desejava pôr uma pedra sobre o passado e esquecê-lo, mas não seria assim enquanto o tio continuasse vivo.

Seus planos, no início, eram de se vingar tirando tudo o que Aquiles mais prezava: prestígio, dinheiro, fama, nome. Obviamente, não se tratava apenas disso. Ela nunca teve estômago para tirar uma vida e orgulhava-se desse fato, mesmo não se incomodando em ver Carla matar com tanta facilidade. Com efeito, tinha esperanças de que, ao arruinar o tio, seus inimigos fariam o trabalho sujo por ela.

Entretanto, o tempo passou e Aquiles ainda era poderoso o suficiente para manter os inimigos longe. Sendo assim, havia chegado o momento em que ela teria de sujar suas mãos de sangue e isso a deixava aterrorizada.

Seu encontro com Max seria naquela mesma noite e não na noite seguinte, como dissera à Carolina. Optou pela mentira, pois sabia que ela falaria para a esposa e não queria Carla interferindo.

Aquilo era algo que precisava resolver sozinha.

Estava ciente de que o encontro era uma armadilha do tio. Max nunca abreviava as palavras usando o "internetês" e jamais assinava suas mensagens com seu nome completo. O rapaz havia sido esperto, embutindo uma segunda mensagem na mensagem original e isso a deixou muito orgulhosa dele, mas, também, apreensiva. Afinal, Aquiles não se contentou em capturá-lo, mas também arrastou uma amiga de Vanessa para aquela confusão.

— Não vai se despedir?

Vanessa a fitava, recostada à porta que dava acesso ao interior da residência. Tê-la tão perto e, ao mesmo tempo, tão inalcançável lhe tomou o ar por alguns instantes. Sorriu, encenando confiança e enfiou as mãos nos bolsos do jeans, encostando na porta do carro.

— Não irei muito longe e não pretendo demorar — respondeu.

Vanessa tinha os braços cruzados. Sentia-se estranha ao admirá-la como uma mulher livre. Estava se acostumando ao sentimento de culpa por desejar outra, enquanto mantinha um relacionamento com Cristina. Contudo, ainda sentia o peso da separação recente e isso a impedia de lhe oferecer mais que um sorriso charmoso e amigável.

— Me desculpe por ontem. Não tenho sido eu mesma desde que essa história começou e os meus pensamentos andam bastante nublados.

— Sou eu quem tem de se desculpar. — Abandonou seu refúgio junto ao carro e se aproximou. — Cristina é uma boa mulher e estou, sinceramente, feliz por você tê-la.

Tocou-lhe os cabelos de cachos pesados e longos, em um carinho singelo e rápido.

— Apesar de todas as minhas burradas, acho que a deusa¹ resolveu me agraciar com um acerto. — Sorriu, abrindo os braços e Vanessa se encaixou neles, aspirando o perfume dos seus cabelos com os olhos cerrados e o coração descompassado e, assim como ela, prolongou o contato o quanto pôde.

— Precisamos ter uma conversa séria! — Vanessa comunicou quando se afastaram, sentindo o vazio que a ausência do calor dela lhe trazia.

Seguiria os conselhos de Cristina; daria uma chance ao seu coração de tentar perdoar e ser feliz ao lado de Diana, outra vez. A possibilidade de, finalmente, poder construir uma vida ao lado dela a deixou sem ar por alguns instantes.

Contudo, o peso do fim do relacionamento com Cristina fazia com que mantivesse os pés no chão. Diana não era mais a "sua" Diana. Aquela diante de si, era uma mulher vivida, conhecedora de inúmeros caminhos tortuosos e com muitos pecados na bagagem.

Seu maior desafio não seria voltar a entregar-lhe o coração, seria confiar nela outra vez.

— Está insinuando que não sei conversar com seriedade? — A ladra questionou, exibindo um sorriso quando, na verdade, queria fugir dela e da dor que lhe tomava por saber que as coisas jamais voltariam a ser como antes.

— Tenho mesmo que responder?

— Não. — Deu um passo atrás com o projeto de um sorriso que não se concretizou. — Conversaremos quando regressar, está bem?

Ok.

Afastou-se em direção ao carro, devagar, ouvindo a porta conectada a residência se abrir com bruscamente. Voltou-se, imaginando que encontraria apenas o branco frio da porta, porém Vanessa permanecia de pé no mesmo lugar. Ao lado dela, Carolina a fitou com olhos marejados, contudo não chorava. Ela tinha o celular nas mãos e a voz soou aflita quando falou:

— Carla sumiu.

Assustada com a notícia, Diana a levou para o interior da casa e a fez contar o que se passava com calma.

O gerente de um dos hotéis que pertenciam ao casal, havia ligado para informar que o carro de Carla, que tinha estado no hotel na noite anterior, visitando um "amigo", fora encontrado naquela manhã com as portas abertas e chaves na ignição. Depois disso, as câmeras de segurança revelaram as cenas de um sequestro, em que a loira foi abordada por homens armados e enfiada em outro veículo.

— Que inferno! — Diana esbravejou, escondendo o rosto entre as mãos. Respirou fundo, assistindo Carolina afundar no sofá e depois se abrigar nos braços de Bento.

Tomou o celular dela e ligou para o tal gerente. Apresentou-se como sendo do departamento de gerenciamento de crises das empresas da amiga. Exigiu que o sequestro não fosse relatado à polícia e, muito menos, a imprensa, pois tomaria as devidas providências para isso e solicitou as imagens das câmeras de segurança.

Meia hora depois, analisava os vídeos ao lado de Bento e Cristina. Enquanto isso, Vanessa, preocupada com o estado emocional de Carolina diante da sua gravidez, tentou levá-la para a cozinha com a desculpa de fazer um chá para acalmá-la. Todavia, a moça se negou a ir, ainda que estivesse agradecida com o cuidado.

— Desgraçada! — Diana falou, erguendo-se da cadeira. — Eu sabia que ela ia se intrometer! Loira cretina e idiota!

— Do que está falando? — Cristina a questionou, ligeiramente assustada com o rompante dela. Entretanto, foi Bento quem respondeu:

— Carla se deixou capturar. Ela fez de propósito.

Diana chutou o pé da mesa.

— Filha da mãe! — Berrou, passando a mão nos cabelos, nervosa.

— Por que ela faria isso, gente? — Cristina voltou a perguntar, descrente. Contudo, conhecendo a Carla de dezesseis anos atrás, sabia que era verdade.

Bento deu de ombros. Nem sempre os planos dela ficavam claros, mas sabia que a esposa da sua melhor amiga não costumava dar pontos sem nós. E se tinha se permitido ser capturada, era porque sabia que podia lidar com os sequestradores.

— Não sei — disse, cofiando a barba por fazer. — Mas tenho pena dos caras. Essa mulher é quase uma máquina mortífera.

Depois do que havia acontecido na casa do lago, Cristina concordava.

— Ela fez por você — Carolina respondeu. — Por que mais seria?

Mirava Diana com seriedade, mas não parecia furiosa, como era de se esperar que estivesse. Pelo contrário, aparentava estar aliviada.

— Se ela foi porque quis, significa que irá voltar logo. — Suspirou, curvando os ombros para frente, obrigando-se a não pensar nas intenções assassinas da esposa ao tomar tal atitude. — Odeio quando ela me assusta assim!

Ao seu lado, Vanessa perguntou:

— Isso é loucura! Por que se arriscar assim?

Diana jogou-se no sofá, com a cabeça entre as mãos.

— Ela fez porque acha que eu não consigo matar o meu tio. — Deixou as mãos caírem sobres as coxas, erguendo o olhar para a ex-namorada.

Um silêncio pesado e sufocante tomou conta do ambiente até que Carolina o quebrou. Caminhou até a ladra e sentou ao lado dela, observando o olhar atormentado que ficou ligeiramente marejado.

— Não é que ela não a ache capaz de matar o homem que tirou a vida do seu pai... — Pousou a mão sobre a de Diana, revelando que sabia dos fatos. Um sorriso triste lhe tomou os lábios, enquanto falava.

— Apenas não quer que "você" o faça — Vanessa concluiu.

Recordou as palavras de Carla quando as salvou na casa do lago. Ela tinha deixado claro que protegeria Diana a qualquer custo, até de si mesma se fosse preciso. De repente, sentiu uma profunda admiração pela assassina.

Desde que Carolina entrou na cozinha, algumas horas antes, e se apresentou como esposa dela, perguntava-se como alguém tão fria podia conquistar o amor de uma mulher como aquela. Agora, entendia que ela e Diana eram muito parecidas e, de um modo estranho, possuíam os mesmos valores e anseios.

Diana se pôs de pé. Olhou Carolina, com os lábios crispados, e voltou a pegar as chaves do Troller.

— Me desculpa, Carolzinha, mas a sua mulher é uma loira irritante, cabeça dura, estúpida e... Droga! É a melhor amiga que já tive! — Riu, abanando a cabeça. — Só que agora me deixou um grande problema.

— Como assim?

Com voz levemente exaltada, explicou a situação. Contou sobre o encontro com Max e aguardou uma explosão de Vanessa, mas esta se limitou a abrigar-se ao lado da janela, mirando o oceano.

— Não tenho dúvidas de que Carla possa sair ilesa de toda essa história, mas ela não sabe sobre Max e Beatriz.

Bento fez um careta, enfiando as mãos nos bolsos da bermuda. Baixou a cabeça, encurvando-se levemente, o que o fez parecer ainda mais magro que o normal.

— Eles podem acabar morrendo. — Concluiu ele, ao entender o raciocínio de Diana.

Ela brincou com as chaves por alguns instantes, fazendo-as tilintar incomodamente.

— Pretendia resolver essa confusão sozinha. — Esclareceu. — Mas, agora, vou precisar de ajuda.

Enquanto contava sobre a mensagem de Max, Cristina voltou a assistir as imagens do sequestro, deixando um vinco se formar na testa quando ergueu as sobrancelhas. Falou:

— Talvez, as coisas não sejam tão ruins. Podemos ter ajuda especializada.

Ela mostrou a tela do notebook para que todos pudessem ver a imagem congelada de outro carro seguindo o dos sequestradores. No ponto em que o vídeo parou, era possível ver uma mulher no volante.

— Essa é... — Ela começou a explicar, porém Diana completou:

— Rachel Lorenzzo, sua ex-chefe. — Soltou o ar com força. — Afinal, Carla planejou as coisas direitinho. Que cretina!


II

Max e Beatriz foram envolvidos em um abraço apertado que quase lhes tomou o ar. Mal podiam acreditar que estavam com Vanessa.

— Que bom que estão bem! — Ela os soltou. Usava roupas largas e negras e tinha uma máscara, da mesma cor, nas mãos.

Max ainda tremia, um pouco assustado, e sentou num dos bancos de uma van semelhante a que ele e a mulher que pensava ser Diana tinham sido transportados. Não sabia em que momento a troca aconteceu, mas quando Gillian ordenou que fossem levados de volta para o esconderijo, quatro dos sete capangas no transporte eram, na verdade, Diana, Bento. Vanessa e Carolina limitaram-se a seguirem o veículo de forma discreta e de um distância segura e só puderam fazer isso após muitos protestos.

Diana e Bento se misturaram entre os demais capangas, aproveitando-se do fato de que as máscaras e roupas largas ocultavam suas identidades. Conhecedora das táticas de ação de Gillian, Diana os preparou para assumirem esses papéis e durante a captura de Cristina e Max livraram-se de dois deles e tomaram seus lugares.

Bento conduziu Max para seu quarto, com um dos capangas verdadeiros e o nocauteou quando lá chegaram. Com sua ajuda, encontraram Beatriz e retornaram para a van estacionada fora da propriedade, onde Vanessa e Carolina aguardavam. Sair da casa não foi difícil e nenhum dos capangas verdadeiros os parou. Assim que alcançaram a parte externa da propriedade, dirigiram-se para um dos portões laterais.

Um homem mal-encarado meneou a cabeça à sua passagem. Aos pés dele, o verdadeiro vigia daquela saída, estava caído.

O homem no portão era um mercenário. Um dos quatro contratados por Carla para ajudá-la naquela empreitada. Ele e amigos haviam passado a noite em um furgão que estava estacionado nos arredores do imóvel. Eles aguardavam o sinal verde de Carla, que seria dado através de um sinal de rádio embutido no relógio dela, para invadirem a chácara.

Longe de serem criminosos, como os que ela comandou no passado, aqueles homens já tinham servido seus países nas forças armadas. Agora, lutavam por quem pagasse o maior preço, entretanto, se davam ao luxo de escolherem somente o que consideravam causas nobres. E, embora trabalhassem com Rachel Lorenzzo, não faziam parte da empresa que ela comandava.

Foram contactados de forma repentina para uma tarefa especial. Acharam a investida estranha, mas Rachel fez questão de dizer que estava pagando um favor e que eles seriam bem recompensados por isso.

No meio da manhã, ela entrou em contato anunciando a presença de outros participantes na ação. Informou sobre os reféns na casa e que estes seriam resgatados pelos novos companheiros, depois disso, deveriam prosseguir com o plano original.

— O caminho está limpo para vocês. — Bento disse para o sujeito, que quase sorriu ao ouvir o apito do relógio anunciando o sinal verde que Carla enviou.

Max se encolheu no fundo da van, aliviado por não estar mais sob a mira de uma arma. Por um breve momento, o rapaz até imaginou que estava participando de um filme de ação, mas logo o peso da realidade lhe caiu. Contudo, a felicidade de reencontrar Vanessa e saber que estava bem, afastou seus medos.

Ele sorriu para a amiga e depois para a moça que a acompanhava, notando ansiedade desta. Carolina fez menção de abrir a porta do veículo com intenção de sair, mas Bento a impediu.

— Onde pensa que vai?

— A espera está me enlouquecendo. Preciso de ar.

Ele riu, balançando a cabeça e a puxou para o banco ao seu lado.

— Você precisa é ficar quieta. Já correu perigo demais vindo até aqui. Não irá se arriscar indo lá fora. Já fizemos o que tínhamos combinado. Agora, é com Diana, Cristina e o pessoal da tal Rachel.Fica na sua e relaxa.

— Como se fosse fácil! — Fez um muxoxo e ele segurou-se para não rir.

Vanessa compartilhava da sua ansiedade, afinal, as duas mulheres que amava estavam no meio daquela confusão, arriscando suas vidas. Assim como Carolina, queria correr para ajudá-las, no entanto, estava bem consciente de que não possuía as habilidades necessárias para contribuir naquela situação mais do que já tinha feito.

***

Gillian apontou a arma para Diana, mas antes que efetuasse o disparo, Cristina o golpeou. Ela chutou a parte de trás de seu joelho, atirando-o no chão. Apesar do tamanho avantajado, ele rolou pelo chão com uma cambalhota e voltou a se pôr de pé, com a arma em punho.

Sorriu para Cristina, antevendo o buraco da bala que cravaria em seu peito, então algo grande o atingiu. Carla havia lançado a cadeira que ocupava nele, desarmando-o e lacerando seu rosto.

Por um breve instante, Diana se distraiu com a luta e Aquiles avançou. Os dois se chocaram contra a parede, brigando pela posse da arma. Ele segurou firme o objeto e esmurrou sua barriga atingindo, em cheio, o ferimento ainda em fase de cicatrização. Ela soltou a arma e deixou-se cair sentada no chão, quando ele efetuou o disparo. Usou as pernas como uma tesoura, trazendo-o para o chão também e a arma escorregou pelo cômodo até a base da porta de vidro que levava a sacada.

O tio jogou-se sobre ela, envolvendo seu pescoço com ambas as mãos. Diana o socou no pescoço e ele caiu de lado. Enquanto erguia-se, buscando o ar que ele lhe tirou, viu o quarto ser invadido por mais dois capangas e Cristina, com mão firme, os alvejou com a arma do capanga que ela tinha nocauteado. Enquanto isso, Carla e Gillian trocavam socos.

O grandalhão era forte, mas Carla era ágil. Quando ele tentou socar o rosto dela, achando-se em vantagem por tê-la encurralado, a ex-mafiosa esquivou-se e o golpe atingiu a parede. O som dos ossos da mão dele se partindo ecoou pelo cômodo. Gillian recuou, contendo um grito de dor, e ela lhe atingiu com um soco no queixo, depois outro nas costelas e mais um no estômago.

Ele retribuiu, atirando-a contra a parede outra vez e chutando seu ventre. Quando principiava um novo chute, ela lhe travou a perna. Com um sorriso malvado, desceu o cotovelo no joelho dele. Um urro gutural escapou do capanga quando, em seguida, ela o golpeou na virilha.

Gillian caiu, mas Carla não soltou sua perna. Em vez disso, girou-a com força e, outra vez, o som de ossos quebrados se fez ouvir. Ele esticou o braço bom e pegou a arma que estava caída ao seu lado, mas ela esmagou sua mão pisando-a forte. O grandalhão gemeu, um som esganiçado, quase tímido. Por sua vez, mostrou um sorriso vermelho e chutou o rosto dele, que cuspiu sangue e saliva.

Gillian tentou se afastar dela, mas estava bastante ciente de que o seu fim era inevitável, então parou abruptamente e a encarou sem piscar os olhos, enquanto ela encostava a arma na sua testa.

— Nos vemos no inferno. — Ele disse.

Carla sorriu, o costumeiro sorriso distorcido que sempre lhe vinha a face na hora de matar. Balançou a cabeça e puxou o gatilho.

Nesse meio tempo, Diana caminhou até a arma junto à porta. Abaixava-se para pegá-la, quando Aquiles jogou-se sobre ela novamente. Atravessaram o vidro, caindo sobre dezenas de cacos. O sangue dos dois misturava-se no chão, formando uma massa escorregadia e cortante.

Ela se pôs de pé primeiro, desorientada graças a pancada. A visão estava ligeiramente borrada e, quando, finalmente, conseguiu focalizar algo, o tio tentava cravar um pedaço de vidro em seu peito.

Ela cambaleou para o lado e, como avançava em um grande impulso, ele passou direto sobre a balaustrada.

Quando chegaram ao térreo, o encontraram se arrastando até uma árvore, havia uma fratura exposta na perna. Um de seus braços estava estranhamente retorcido.

Não havia mais capangas de pé para protegê-lo. No caminho até ali, os dois últimos que escaparam dos mercenários e ainda estavam acordados e sãos, desceram as escadas rolando, graças a Carla e Cristina.

Diana se aproximou do tio, claudicante. Uma pistola na mão, a qual apontou para o peito dele. Às suas costas, as duas amigas aguardavam o desfecho daquele embate. Aquiles sorriu, cuspindo sangue. Mal dava para reconhecê-lo, graças aos cortes na face.

Diana tremia pela mistura intensa de dor física e os sentimentos que se digladiavam em seu interior pelo que estava prestes a fazer.

— Por que você o matou? — Questionou com voz entrecortada. Tinha passado o último ano se perguntando os motivos de ter perdido a pessoa mais importante da sua vida, o homem que a criou e lhe ensinou sobre valores que, nos dias atuais, eram raros e motivo de deboche. O homem que a amou incondicionalmente e respeitou seu coração quando lhe disse que amava uma garota, que fez troça do seu jeito de moleca apaixonada, que lhe ensinou a lutar por seus sonhos e buscar sua felicidade com respeito e dignidade. — Por que matou o meu pai?

Aquiles riu, expulsando uma grande quantidade de sangue pela boca. Sabia que havia perdido. No fim, ele havia se tornado a caça da sua preciosa Caçadora. Era irônico que tudo acabasse assim.

— Muitas coisas nos separaram — falou, a voz pastosa. — Poderia citar uma dezena delas, mas só uma interessa.

Riu outra vez, enquanto Carla se aproximava mais da amiga.

— Por quê?

Ele ergueu o olhar para o céu. As cores do amanhecer começavam a afastar o negro da noite.

— Porque ele me deixou. Ele me abandonou. Primeiro, foi pela sua mãe, depois por você. Eu era o irmão dele e ele traiu o sangue que nos unia! — Foi interrompido por um acesso de tosse. — E você fez o mesmo, depois de tudo que lhe ensinei e dei. São farinha do mesmo saco, afinal!

Era absurdo, quase ridículo que toda a dor pela qual passara se resumisse àquilo. A vida do seu pai foi salva para, depois, ser arrancada dele pelo ciúme de um homem mesquinho e inescrupuloso como o que tinha diante de si.

Nunca sentiu tanto ódio quanto naquele momento. Era um sentimento tão intenso, tão doloroso e cruel que corrompia suas forças.

Lágrimas lhe chegaram aos olhos, embaçando a visão. Tentou enxugá-las com as costas da mão, mas só conseguiu piorar seu estado, já que esta sangrava fartamente, graças a um corte. Então, usou a gola do casaco para limpar-se e, quando voltou a mirar o tio, ele ainda sorria.

— Você não tem coragem. Você não sabe matar, mas é bom aprender. Se me deixar vivo, irei gastar cada segundo do meu tempo para caçá-la. Eu vou te pegar...

As mãos dela tremiam, violentamente. Ele tinha razão, Carla tinha razão, todos tinham razão. Ela não fora feita para a morte, mas iria matá-lo, pois, como havia prometido a si mesma, não permitiria que ele lhe tirasse mais alguém querido.

No entanto, era muito difícil apertar o gatilho.

A amiga se aproximou mais, envolvendo sua cintura com uma das mãos e pousando a outra sobre a arma.

— Você não precisa fazer.

— Sim, preciso — sussurrou em resposta.

Carla a puxou para mais perto.

— Olhe para mim — pediu e, com muito custo, Diana a mirou e surpreendeu-se com os hematomas em sua face. Gillian a castigara, mas nunca duvidou que ela pudesse vencê-lo. — Uma das coisas que mais admiro em você é a vida que vibra em cada um dos seus gestos, até mesmo nas piadinhas infames. Quando se mata alguém, morre-se um pouco também. É por isso que estou aqui, para carregar esse fardo por você. Estou aqui para fazer o que você não é capaz de fazer, assim como você esteve "lá" por mim e fez aquilo que eu não podia e nem tinha capacidade.

Ela lhe sorriu, dona de uma serenidade inquietante.

— Ele destruiu a minha família — retrucou, os lábios trêmulos.

— "Nós" somos a sua família e ele não destruiu isso. Nem irá.

Diana voltou a mirar Aquiles. Passou um ano inteiro sonhando com aquele momento, mas acreditando que lhe tirar seus bens e orgulho era a melhor vingança. Agora, tudo pelo que passou e o que fez, lhe parecia insignificante e estúpido.

"É só puxar o gatilho", pensou. Mas continuava sem forças para fazê-lo.

Voltou a olhar para a amiga. Ainda estava escuro, mas viu-se refletida no azul dos olhos dela; uma lembrança de uma época distante em que lhe prometeu cuidar e proteger a qualquer preço.

O preço de uma morte sobre os seus ombros, lhe parecia alto demais. Contudo, para Carla, era nada. Com um suspiro doloroso, cedeu ao choro. Entregou a arma a amiga e buscou abrigo entre seus braços.

Carla a embalou por alguns segundos, sussurrando que tudo ficaria bem, então mirou Aquiles com desdém e, pela primeira vez em sua vida de assassinatos, não estava sorrindo quando atirou.

________

¹ Diana refere-se a deusa grega Ártemis, cuja versão romana deu origem ao seu nome. Como revelado em outro capítulo, a referência a deusa da Caça e da Lua é uma espécie de piada entre ela e Vanessa.

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