vinte e três
- Samuel, esse olho tá muito inchado - Bia comentou enquanto eu dirigia para a mansão naquela manhã. Ela estava debruçada sobre o meu banco, examinando a pele ao redor do meu olho direito. - Tem certeza que não tá sentindo nada?
- Tenho, sim. - Peguei a mão dela e beijei os nós dos seus dedos. - Que gracinha, você toda preocupada com o meu bem-estar...
Ela soltou um humpf.
- Nada disso. Só quero ter certeza que seus dois olhos estão funcionando. Já é difícil o suficiente procurar as joias sem um caolho na dupla.
Ri baixinho.
- Delicada como uma mula.
- Não me faz perder a paciência logo pela manhã, por favor.
Fiquei em silêncio, mas não conseguia parar de sorrir. Uma parte irracional e possessiva de mim queria abrir a janela do carro e gritar pelos quatro cantos de Santa Cruz que aquela garota no banco do passageiro era minha. E que eu era dela.
Cem por cento dela.
Era estranho o modo como eu já tinha me acostumado completamente com a presença da Bianca na minha casa. Ela enchia de vida aquele lugar pequeno e silencioso onde eu tinha crescido, com sua risada alta, piadas maliciosas e incapacidade de ficar quieta. Eu nem me importava com as brigas. Como quando a gente discutiu sobre o que fazer na janta e qual filme assistir na Netflix - por mais que no fim a gente não tenha assistido filme nenhum.
Arrisquei um olhar para ela, linda enquanto olhava tranquila pela janela.
Eu já me pegava pensando no quão difícil seria ir dormir sozinho naquela noite. Será que se eu a chamasse depois do trabalho, ela iria outra vez? Mas o que a mãe dela estava pensando sobre aquilo? A gente devia conversar. Devíamos dar um nome para o que quer que estivesse rolando entre nós dois.
Eu estacionei na frente da casa e Bia foi logo descendo do carro e abrindo o portão. Ela olhou para mim e tocou meu maxilar de leve.
- Esse hematoma aqui também tá bem feio.
- Mas você viu que o Henrique estava pior, né?
Me arrependi da brincadeira quando ela me fuzilou com o olhar.
- É. Eu vi. Você deu uma surra nele.
- Não tem nenhuma parte sua que tenha ficado um pouco satisfeita com isso?
- Não. Ao contrário de você, eu sou civilizada.
- Vou fingir que acredito.
Não aguentei aquela sua expressão arrogante. A abracei por trás e a levantei no ar enquanto dava beijos no seu pescoço.
- Samuel! - ela reclamou, mas não tentou se desvencilhar. Eu sabia que estava sorrindo.
- Eu já te disse que você fica mil vezes mais linda quando tá puta comigo?
- Eu tô puta com você noventa por cento das vezes.
- Então vai ver é por isso que você é linda o tempo todo.
Ela riu e se virou pra mim. Bia ficou na ponta dos pés, mas ainda precisou puxar a frente da minha camisa para que eu me curvasse e ela pudesse me beijar.
Um beijo.
Era só aquilo que bastava para eu praticamente virar um cachorrinho aos seus pés.
- Vamos - ela disse quando se afastou. - A gente tem trabalho a fazer.
- Já era difícil o suficiente procurar as joias tendo que fingir para mim mesmo que eu não queria te beijar em cada cômodo dessa casa. Agora, então, vai ser impossível.
Bia riu e me deu um tapinha na bochecha.
- Confio que você vai agir como um bom menino.
Eu queria dizer que se ela pensava assim, então não fazia nem a mais remota ideia do quanto mexia comigo, mas Bianca foi adentrando a casa de uma vez.
Fazia tanto tempo que não achávamos mais nenhuma pista das joias, que minha esperança diminuía a cada vez que acabávamos de revirar um cômodo. Eu me perguntava o quão bem Amália conhecia aquela casa se tinha escondido as joias de um jeito que nem o meu avô, que viveu os últimos anos ali sozinho, as tinha encontrado. Ou talvez ele as tivesse encontrado, e Bianca e eu só estávamos numa busca perdida.
Mas eu não ia falar aquilo para ela. Não podia.
Por mais que as demandas mais urgentes da casa dela tivessem sido atendidas com a reforma que contratei, eu sabia que Bia ainda precisava do dinheiro, e que toda aquela busca também tinha mais a ver com entender os últimos anos de vida da sua avó do que ela queria admitir.
Mas a casa era enorme, antiga e escura, e parecia que quanto mais a gente procurava, mais lugares faltavam para olhar. Sem contar que cada canto daquele lugar me fazia lembrar de algo da minha infância, e embora os primeiros anos dela não tivessem sido uma tragédia absoluta, eu nunca conseguia deixar de pensar no que poderia ter sido.
Se eu não tivesse entrado naquele rio, meus pais poderiam estar aqui.
Se eles estivessem aqui, meu avô poderia não ter me odiado e me exilado da sua vida até o dia da sua morte.
Se ele não tivesse me odiado e culpado, eu poderia ter levado uma vida menos amarga.
- Eu duvido muito que você vai achar alguma joia nos bolsos das camisas do seu avô - ouvi Bianca dizer enquanto a gente virava de cabeça para baixo um dos quartos do andar de cima.
- Eu pensei que você tivesse dito que era para eu olhar em tudo.
- Bom, sim, mas a gente também devia otimizar as buscas.
Eu estava prestes a rebater com alguma coisa só pelo prazer de contrariar quando, enquanto apalpava as roupas antigas penduradas ali por anos, senti algo sob o tecido.
Franzi as sobrancelhas e puxei os cabides até achar uma camisa pendurada. Ela com certeza pertencia ao meu avô, porque era bem o tipo de coisa que eu me lembrava dele vestir. Havia algo no bolso da frente.
- Bia, vem cá.
Eu puxei a foto e a observei na luz.
Não havia dúvidas de quem era a senhora cuidando das rosas que ficavam no quintal capturada ali.
- Minha avó - Bia sussurrou, puxando a foto com delicadeza e passando o dedo pelo rosto dela. - É ela.
- Tem algo escrito na parte de trás.
Ela virou a foto e leu as palavras em voz alta.
Querida Amália, eu acho que nunca vou conseguir me perdoar por ter te perdido.
Não havia assinatura, mas nem precisava. Eu reconhecia aquela caligrafia de alguns documentos que os advogados que estavam tratando da herança tinham me apresentado assim que meu avô morreu.
Bianca virou a foto outra vez, o cenho franzido.
- Olha, ela tá usando o anel de rubi. E não só ele. - Apontei para as suas orelhas e pescoço. - Esse colar e brincos parecem bem caros. Devem ser algumas das joias que o meu avô deu pra ela.
- Então a gente fica com a teoria de que todas essas joias realmente foram um presente dele para ela? - Bia perguntou, ainda atordoada.
- Depois das fotos que a gente achou no sótão mostrando o anel com mulheres da minha família por gerações, parece óbvio que sim. Meu avô deu o anel para ela e todas as outras joias também. Se a gente tinha alguma dúvida sobre isso, essa foto acaba de mudar tudo. - Eu apontei para a frase escrita no verso. - Ele realmente gostava dela. E parece ter feito algo que a fez ir embora.
- Será que ele não escreveu isso depois da morte dela?
- Pode ser, mas isso não anula o fato de que ele ainda sim se sentia culpado por alguma coisa. - Eu balancei a cabeça e soltei uma risada sarcástica. - Meu avô, se sentindo culpado... Acho que você não é a única descobrindo coisas sobre a sua família nessa história.
Bia ergueu os olhos para mim.
- Eu posso ficar com a foto?
- Claro que pode. - Eu beijei a lateral da sua cabeça. - Quer fazer uma pausa para comer alguma coisa? A gente pode sentar lá debaixo do pé de abacate.
- Tá bom.
Peguei a mão dela e a guiei até a cozinha. Fiz suco de laranja e abri o pacote de biscoitos que tinha guardado no armário. Minutos depois, aconcheguei Bia entre minhas pernas e me recostei no abacateiro.
- Minha avó estava cuidando daquelas rosas na foto - ela disse, apontando para o canteiro perto dali. As flores já tinham sido mais bonitas antes, mas mesmo sem ninguém para lhes dar a devida atenção, elas continuavam morrendo e florescendo por conta própria.
- Elas costumavam ser lindas antigamente, quando meu pai cuidava delas.
Senti Bia ficar rígida contra mim. Era compreensível. Eu nunca mencionava meus pais, e acho que ela tinha curiosidade em saber mais, mas temia perguntar.
Eu não queria que ela ficasse com medo de me dizer qualquer coisa, mas a culpa era minha. Eu não tinha sido o cara mais convidativo do mundo quando a gente se conheceu.
- Ele era jardineiro - contei, juntando seu cabelo e fazendo uma trança, do mesmo jeito que eu fazia na minha avó quando suas articulações começaram a ficar rígidas demais até para que conseguisse arrumar com capricho o próprio cabelo branco. - Foi assim que ele conheceu a minha mãe, na verdade. Meu avô o contratou e ele acabou ficando próximo dela. Os dois se apaixonaram, mas meu avô não aprovava o relacionamento.
- Por que não?
- Ele era pobre. Não tinha um diploma, a família não era conhecida na cidade... Essas coisas. - Suspirei, manuseando as mechas com cuidado. O cabelo dela parecia seda, quase escapava dos meus dedos. - Mas a minha mãe não ligava. Meu pai até tentou terminar com ela, depois de dizer que não queria que ela se separasse da família por sua causa, mas a minha mãe simplesmente bateu o pé e disse "não". Sempre que me contava essa história, ela dizia que aquele era um amor pelo qual valia a pena lutar. Então ela lutou.
- Eles se casaram?
- Sim, para a grande tristeza do meu avô. Foi uma cerimônia simples e meu pai até conseguiu alugar uma casinha nos limites da cidade para os dois, mas minha mãe ficou grávida logo em seguida e eles descobriram que não conseguiam cobrir todas as despesas. Meu avô, por pior que fosse, não queria ver a minha mãe grávida e na miséria, então falou que os dois podiam morar aqui até meu pai encontrar um emprego melhor.
- Você disse que passou sua infância aqui até seus pais falecerem, então imagino que as coisas não tenham melhorado muito financeiramente...
- Não. Meu pai detestava depender da boa vontade do meu avô, mas o dinheiro nunca era o suficiente e ele e a minha mãe continuaram morando aqui. Os dois brigavam muito e a minha mãe sofria. Eu ainda me lembro de vê-la chorando escondido.
- E seu avô te tratava bem na época?
Terminei a trança e perguntei se ela tinha um elástico de cabelo. Bia me ofereceu um e eu prendi a ponta.
- Eu era a prova viva de que meu avô tinha perdido a filha para um homem que ele não aprovava. Ele desprezava meu pai e, por extensão, acho que me desprezava um pouco também. Mas não era ruim o tempo todo. Acho que, às vezes, ele via reflexos da única pessoa com quem se importava em mim, então me tolerava.
- E depois?
Engoli em seco e fiquei em silêncio. Ainda era difícil falar sobre aquilo.
Bianca se virou para mim. Senti sua mão no meu rosto, passando suavemente pelos machucados que o Henrique tinha deixado na noite anterior. Ela colocou a mão aberta no meu peito.
- Ele me culpou pela morte dela - contei, minha voz a única coisa audível além do vento que chacoalhava a copa da árvore naquele jardim esquecido. - Ele soube que ela entrou no rio para me salvar e não voltou mais.
Bia tampou a boca com uma mão, como se não pudesse acreditar.
- Você só tinha seis anos!
Encolhi os ombros.
- Isso não parecia importar para ele. Ele só conseguia pensar na morte dela. Tinha perdido a última pessoa da família. A última pessoa que amava.
- Isso não justifica culpar uma criança pela morte dos próprios pais!
- Mas foi o que aconteceu. Ele não falou mais comigo depois do velório. Minha avó paterna conseguiu minha guarda e ele não ajudou a me criar nem com um real, mesmo quando nós dois passamos dificuldade. Para ele, eu também morri no rio.
Eu não estava olhando para Bianca, perdido demais em pensamentos enquanto encarava aquelas roseiras que costumavam ser a alegria dos meus pais. Mas então ouvi um soluço baixinho e me virei assustado.
- Não, Bia. Não chora.
Mas as lágrimas escorriam pelo seu rosto e pingavam no chão de terra.
A puxei para um abraço apertado.
- Desculpa. Eu não queria te aborrecer com essa história.
- Você não me aborreceu - ela disse com veemência. - Eu só não consigo aceitar que você passou por tudo isso. Uma criança que tinha acabado de perder os pais do jeito mais traumático possível sendo culpada pelo próprio avô! A pessoa que devia te amar e te proteger no mínimo por respeito a sua mãe. - Ela se desvencilhou e olhou nos meus olhos. - Por favor, me diz que você nunca acreditou nas coisas que ele te disse.
Eu não consegui. Por que, se falasse que não, estaria mentindo para ela.
E eu não mentiria para a Bianca nunca mais.
- Ah, Samuel... - Ela balançou a cabeça quando entendeu tudo. - Você não teve culpa de nada. Foi um acidente.
- Eu já era velho o suficiente para saber que não deveria entrar na água sozinho.
- Com seis anos a gente não é velho o suficiente para nada! - Ela segurou meu rosto outra vez. - Você não acha que carregou peso demais nessa vida? Se o que esse homem horrível disse para você quando era criança cresceu seu peito, você devia procurar ajuda e tentar arrancar isso pela raiz.
- Eu não sei se é tão fácil assim.
- Não, não é. Mas você devia pelo menos tentar.
Ela deitou no meu peito e eu passei as mãos pelos seus braços repetidamente enquanto encarávamos a mansão.
- Eu me pergunto como a minha avó conseguiu se apaixonar por esse homem - Bia falou depois de um tempo.
- Acho que a pergunta certa é como ele conseguiu se apaixonar por alguém.
- Talvez. Para ser sincera, eu não tenho certeza de nada.
- Eu tenho. Só uma.
Bia olhou para mim. Meu peito doía só com a visão do rosto dela.
- Eu amo você.
Ela sorriu de leve e se aconchegou ainda mais contra mim. Minha vontade era de nunca mais soltá-la.
- Eu também amo você, Samuel.
Bianca tinha derrubado minhas barreiras devagar, de um jeito que nenhuma outra pessoa no mundo tinha conseguido. Às vezes, eu sentia como se estivesse em carne viva nos braços dela, sem nenhuma armadura para me proteger caso tudo acabasse mal. Mas, ao invés de ficar com medo, eu me sentia aliviado. Ela me conhecia como nenhum outro, e ainda estava ali. E ainda me amava.
- Você já pensou no que fazer com a casa depois que a gente achar as joias? - Bia perguntou no silêncio que se seguiu.
- Eu devia colocar à venda.
- Devia? Você não quer?
Encarei a mansão opulenta.
- É uma sensação estranha. Eu devia desprezar esse lugar e tudo que tem dentro dele, mas a maioria das lembranças que eu tenho com os meus pais se passam aqui. O início da minha infância não foi ruim. Nem de longe. - Eu brinquei com a ponta da trança dela. - Mas o que eu faria com esse lugar? Eu não tenho mais família. Moro sozinho. Eu não sei se passaria uma temporada nessa casa nem se precisasse, para começar. Tudo nela é triste.
- Não precisa ser assim pra sempre. - Bia mordeu o lábio e franziu o cenho, em uma expressão de quem estava pensando profundamente sobre alguma coisa. - Talvez tenha um jeito de fazer esse lugar ser menos um mausoléu deprimente e assombrado e mais um lar.
Ri baixinho.
- Bom, isso seria uma surpresa.
Me curvei pra frente e a beijei. Ela suspirou, seu prazer só me dando mais satisfação.
- Mas algo que a gente pode fazer, é aproveitar as camas enormes de cada quarto dessa casa - eu disse para ela, capturando seu sorriso com outro beijo.
- São muitas camas. Levaria uma eternidade para profanar cada uma delas.
- Sem problemas. Essa é exatamente a quantidade de tempo que eu quero passar com você.
Bia soltou um gritinho quando a peguei no meu colo e a levei para dentro da casa.
Aliás, se houvesse uma chance de transformar aquela mansão em um lar, por que não começar amando a mulher nos meus braços em cada canto dela?
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Dedicado à Leli_leli
Oii, gente!!! Como vocês estão??
Espero que tenham gostado do capítulo de hoje! Me contem tudo!!!
Eu, particularmente, sempre amo quando a Bia e o Samu descobrem mais um sobre o outro ❤️
Vejo vocês no próximo domingo com um novo capítulo!
Beijos,
Ceci.
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