vinte e sete
Sozinho no escritório dos fundos do bar, eu encarei o diário do meu avô. Já era quase meia-noite de uma terça-feira, todos os clientes já tinham ido embora e Bianca estava terminando de fechar o caixa.
Eu devia abrir. Eu devia ler tudo de uma vez.
Era o que eu repetia para mim mesmo desde domingo, quando li aquela primeira página. Depois disso, não tive mais coragem de abrir o diário.
Ergui o rosto quando ouvi uma batidinha na porta aberta. Bia estava encostada no batente, me olhando com um sorriso triste.
- Quer companhia? - ela perguntou baixinho.
- Por favor.
Ela se aproximou e eu afastei a cadeira de rodinhas onde eu estava sentado da mesa. Segurei Bia pela mão e a coloquei no meu colo.
- Eu sei que eu devia ler de uma vez - disse quando nossos olhares foram parar no caderno de couro em cima da mesa. - Afinal de contas, pode ter alguma pista sobre as joias.
- Samu, esquece as joias.
A encarei sem conseguir esconder a surpresa. Nunca imaginei que aquela frase pudesse sair da boca dela.
- Oi?
- As joias não são o mais importante. Não agora. - Ela segurou meu rosto com as duas mãos, afastando meu cabelo da testa e acariciando minha bochecha com o polegar. - Eu sei que a decisão é sua, e também que você não precisa encontrar espaço no seu peito para perdão se não quiser, mas eu acho que é importante ler o que o seu avô escreveu. Eu sei que você quer isso.
Suspirei e pousei a cabeça no peito dela. Parecia que havia um peso enorme nas minhas costas.
- A verdade é que tô morrendo de medo.
Bia correu as mãos pelo meu cabelo. Ela ficou em silêncio e eu continuei:
- Medo de que o que quer que ela tenha dito sobre mim nesse diário, me faça sentir ainda pior pelas coisas que eu não tinha controle. - Soltei uma risada baixa e seca. - Não é idiota? Ele está morto, e mesmo assim sinto como se só as palavras escritas nesse diário pudessem ser capazes de me derrubar. A opinião dele sobre mim não deveria ter importância.
- Como você se sente não precisa fazer sentido, Samu.
- Eu sei.
Ergui o rosto para olhar para ela.
- Desculpa por ser uma bagunça.
Bia me surpreendeu abrindo o sorriso mais lindo do mundo.
- Samuel, eu sabia que você era uma bagunça no momento em que coloquei o pé nesse bar. Do mesmo jeito que você sabia que eu era encrenca. - Ela encolheu os ombros. - Nós dois somos caos. Mas não é maravilhoso?
Eu queria dizer que não merecia aquela garota. Que ela era a coisa mais inesperada e fantástica que tinha acontecido na minha vida. Que eu não conseguia enxergar mais nenhum dia sem ela.
Mas as palavras que rondavam minha cabeça dificilmente conseguiam sair de forma ordenada pela minha boca, então eu apenas a abracei e tentei transmitir tudo aquilo com um beijo.
Quando a gente se levantou para ir embora, peguei o diário.
Dirigi até a casa da Bia e ela me abraçou antes de descer.
- Independente do que estiver escrito ali, você vai poder deixar tudo para trás no momento em que fechar o diário - ela me disse. As suas palavras eram tão firmes que não tive escolha a não ser acreditar naquilo. - Certas coisas precisam de um ponto final, Samu.
- Certo.
Ela apertou minha mão e se virou para abrir a porta do passageiro. Ela já estava saindo quando senti um aperto no peito e segurei seu pulso.
Bia se virou para mim, tocou meu rosto e falou:
- Vai ficar tudo bem. Eu te amo, tá?
Engoli o nó na minha garganta.
- Eu te amo também.
Ela sorriu e saiu do carro, se virou para mim antes de atravessar o portão da casa e acenou. Quis guardar o rosto dela na memória. Por algum motivo, quis desistir de ir embora e ficar ali nos braços dela.
Mas eu dei partida e dirigi até em casa. Desliguei o carro quando estacionei rente ao meio-fio e suspirei.
A rua estava deserta. O mundo parecia em completo silêncio.
Peguei o diário que tinha guardado no porta-luvas, me acomodei no banco e o abri.
08 de junho de 2006
Depois que a minha primeira esposa morreu, eu achei que nunca mais poderia amar ninguém. Achava a ideia de alguém da minha idade se apaixonar não só improvável como um tanto ridícula.
Amália começou a trabalhar aqui em casa um ano antes da Adriane engravidar. Quando o menino nasceu, ela começou a dividir os cuidados da casa com os cuidados dele. Foi em um dia em que ela estava brincando com a criança no chão da sala que nós conversarmos por mais tempo. Ela começou a me contar sobre a época em que seus filhos eram pequenos, e havia tanta alegria e bom-humor na sua voz que eu não conseguia fazer nenhuma outra coisa a não ser ficar ouvindo.
Eu comecei a convidá-la para tomar café da tarde comigo antes que ela fosse embora para casa. Amália pareceu meio desconfiada a princípio, mas logo foi se sentindo mais à vontade.
O tempo foi passando e eu comecei a contar os minutos para o horário do café, e depois dava um jeito de passear com ela pelo jardim da frente até chegarmos ao portão e ela ir para casa.
Acho que Adriane começou a perceber o que estava acontecendo, mas nunca insinuou nada. Ela só dava sorrisinhos quando eu mencionava Amália e dizia estar feliz por termos ficado amigos.
Gosto de pensar que ela não reprovaria o nosso relacionamento. Acho que ela não me condenaria por ter amado de novo. A minha filha sempre desejou que todos ao redor dela fossem felizes.
02 de agosto de 2007
Hoje, quando fui resolver algumas coisas no banco, vi Celina passear na praça com o menino ao seu lado.
Celina e eu nunca conversamos muito. Ela sabia que eu não gostava do filho dela, então nunca tentou se aproximar. Mas ela parece estar cuidando bem do garoto. Ele é alto e forte para a idade, é a cara do pai dele e poucos traços o fazem lembrar Adriane.
Acho que ele não me viu. Celina fez o possível para distraí-lo.
É melhor assim.
25 de dezembro de 2007
Há alguns natais eu dei a Amália o anel que antes pertenceu a minha esposa, junto com um conjunto de brincos e colar de ametistas. Ela costumava me dizer que nunca tinha possuído nada caro, que sempre passou muita dificuldade com os filhos e por isso vivia uma vida simples. Lembro que assim que ouvi isso, desejei poder dá-la o que havia de mais bonito nessa Terra.
Agora, com ela morta e eu sozinho aqui, tudo isso parece fútil. Eu nem sei o que ela fez das joias, mas não ficaria chateado se tivesse se livrado de tudo antes de falecer e usado o dinheiro para ajudar a família. Eu só queria ter sido bom o suficiente para ela ter ficado.
04 de abril de 2008
Hoje me sentei debaixo do abacateiro. Esse era o nosso lugar favorito da casa.
As rosas brancas que ficam ali perto também estão bonitas, mas é só porque o jardineiro cuida bem delas. Tanto Amália quanto Adriane adoravam aquelas rosas.
Quando me sentei à sombra da árvore, por um momento senti como se Amália estivesse ali comigo, como esteve tantos anos antes.
Uma ilusão, é claro.
Me pergunto por quanto tempo ficarei aqui longe de todos os que se foram.
04 de setembro de 2010
Noite passada, sonhei com Adriane. Ela chorava muito sentada junto à roseira.
Hoje é aniversário de 15 anos do Samuel.
Fiquei sabendo que ele se tornou um rapaz ainda mais forte e bonito. Me encontrei com um senhor no mercado na semana passada que me contou ser seu professor. Ele me disse que Samuel é um dos seus alunos mais brilhantes.
Às vezes, fico pensando no que Amália me disse naquela última carta.
27 de março de 2011
Hoje, me escondi perto da escola e fiquei vendo os alunos saírem após o sinal.
Não foi difícil enxergar o Samuel. Ele se destaca na multidão.
Ele estava andando com um menino franzino que não parava de tagarelar. Em algum momento esse menino disse algo que o fez sorrir. Mal consegui respirar. Aquele sorriso era exatamente o mesmo da mãe dele!
Será tarde demais para me aproximar?
Não duvido que ele me odeie. Eu ainda me lembro do que disse a ele no funeral dos pais. Será que se lembra?
Se sim, sei que é impossível tentar conversar com ele. Ainda mais depois de todo esse tempo.
03 de fevereiro de 2013
Samuel inaugurou um bar chamado Lambari na praça matriz.
Na primeira noite, eu me sentei afastado em um banco da praça e vi o estabelecimento lotar. Ele corria pelas mesas e conversava com os fregueses. Parecia brilhar de felicidade.
Celina estava lá também. Ela parecia bem fraca e Samuel colocou um casaco sobre seus ombros encolhidos. Durante toda a noite, ele sempre ia checar como ela estava.
Eu queria lhe dar parabéns pelo bar, mas que direito eu tenho de fazer isso?
Não tenho dúvida que, se me visse ali, toda aquela felicidade iria embora.
30 de junho de 2014
Acabei de voltar de uma reunião com meu advogado. Já passava da hora de colocar em ordem os assuntos do meu testamento.
Ajeitei para que, quando morrer, tudo passe para o Samuel. A casa, as terras, tudo. É direito dele, afinal. Imagino que ele não passe dificuldades, mas quando eu me for, ele não terá com que se preocupar.
Eu queria conversar com ele. Queria pedir desculpas e contar o modo como os pais dele o amavam, e que estive cego pelo luto e pelo rancor por tanto tempo que me voltei contra um garotinho que tinha sobrevivido a uma tragédia terrível.
Mas que direito eu tenho de fazer isso? Tanto tempo já se passou. Se eu pelo menos tivesse me aproximado antes, quando ele ainda era criança... Agora, não posso mais.
Eu só queria que ele soubesse que eu sinto muito.
06 de novembro de 2015
Hoje, quase bati a campainha da casa dele.
A janela da frente estava aberta e pelo outro lado da rua consegui ver Samuel sentado na sala de estar com Celina, aquele seu amigo da época do colégio e uma moça bonita que parecia ser namorada do rapaz.
Celina parecia muito fraca e abatida. Fiquei sabendo que ele teve problemas pulmonares recentemente. Apesar disso, ontem ela estava rindo com as crianças, e todos pareciam estar se divertindo.
Eu não podia estragar aquele momento.
Eu queria muito me juntar a eles, ouvir os risos e as conversas despreocupadas, e durante todo o tempo que fiquei ali do lado de fora, foi quase como se Amália estivesse comigo, me implorando para tocar a campainha.
Mas o medo falou mais alto e eu fui embora.
Eu só queria ter coragem de olhar nos olhos do meu neto e pedir perdão.
30 de setembro de 2016
Celina faleceu ontem à noite.
O jardineiro me contou. O funeral foi essa tarde.
Ela quem criou Samuel. Foi a única família que ele teve por todos esses anos.
Sou grato a ela, e me arrependo por nunca ter dito isso. Por nunca ter ajudado com nada na criação do Samuel.
Está ficando difícil escrever. Não ando bem de saúde. Abandonei a pintura há quase um ano e não acho prazer em mais nada.
Samuel deve estar sofrendo muito. Ele nunca deve ter se sentido tão sozinho.
Não consigo mais ir até ele. Mal consigo me levantar da cama sem ajuda.
Eu poderia ligar, mas o que falaria? Não tem espaço na vida dele para mim.
01 de novembro de 2016
Acho que é verdade o que dizem. Existe claridade antes da morte.
Eu sei que meu tempo está acabando e passo todas as horas me arrependendo das decisões erradas que tomei. Ou melhor, das decisões que eu não tomei.
O médico disse que eu devo ficar em repouso absoluto, mas amanhã estou saindo dessa cama e vou procurar meu neto. E eu não me importo mais se ele vai gritar comigo ou se vai me culpar pelos anos que o abandonei. Eu mereço esse desprezo. Eu mereço essa raiva. Se eu pelo menos disser para ele que eu sinto muito, que não tem um único dia desses últimos anos que não me arrependi de não ter tentado uma reconciliação, posso ficar em paz.
Eu quero dizer que sinto orgulho do homem que ele se tornou. Que o meu ciúme e o meu egocentrismo fizeram com que eu odiasse o pai dele, quando na verdade ele era uma boa pessoa e um bom marido para a minha filha. Quero dizer que ele é minha família. A única família que restou.
Mas, principalmente, quero dizer que eu nunca devia ter dito para ele aquela coisa horrível no funeral, e que vou pagar pelas minhas palavras pelo resto dos meus dias.
A culpa da morte da Adriane e do Júlio não foi de ninguém. Eles morreram em um acidente, protegendo a pessoa que mais amavam no mundo.
Eu vou consertar a bagunça que criei. Vou ver o meu neto.
Quando terminei de ler o diário, foi como se uma vida toda tivesse passado. Havia muitas passagens, mas destaquei a ponta da página das que mais mexeram comigo.
Eu sabia o motivo pelo qual ele não tinha cumprido o que disse na última passagem do diário, em primeiro de novembro do outro ano. Foi porque ele morreu naquela madrugada.
Eu não sabia o que pensar. Não sabia o que fazer.
Durante todos aqueles anos o meu avô tinha me observado de longe. Há não muito tempo atrás, ele estava do outro lado daquela rua, querendo tocar a campainha.
Por que ele não tinha feito aquilo?
Por que ele esperou até ser tarde demais?
Mas se ele tivesse tentado uma reaproximação, eu o teria perdoado? Ou teria dito que minha vida era muito melhor sem ele nela?
Descansei a cabeça no volante por um minuto. O meu corpo inteiro doía, e o nó na minha garganta era tão apertado que estava ficando difícil respirar.
Se eu nunca tivesse encontrado aquele diário, teria passado o resto da vida odiando o meu avô. Mas eu não odiava agora? Aquelas palavras tinham mudado tudo?
Independente do que estiver escrito ali, você vai poder deixar tudo para trás no momento em que fechar o diário.
As palavras da Bia ecoaram na minha cabeça.
Ela tinha razão. Como sempre.
Eu sabia o que fazer. Tudo estava muito mais claro agora.
E, se o meu palpite estivesse certo, eu também sabia onde encontrar as joias.
Deixei o diário no banco do passageiro e saí do carro para abrir a garagem. Eu precisava descansar. O dia seguinte seria longo.
Eu estava colocando a chave no cadeado quando o mundo ficou preto.
Senti braços me agarrarem e me levarem para trás, uma mão na minha boca por sobre o capuz que tinham colocado em mim. Tentei lutar e ouvi um gemido de dor, mas então fui jogado contra a parede.
Antes que eu pudesse me equilibrar e tirar aquela coisa da minha cabeça, veio a dor.
Nos meus ombros, nas minhas pernas, no meu tronco.
Pancada após pancada.
Tudo ficou turvo. Eu podia sentir o sangue jorrar das perfurações. Ouvi o estalo dos ossos se quebrando e os gritos abafados quando tentei revidar em um último impulso.
Mas havia mais de uma pessoa ali. E logo o vazio me alcançou.
________________________❤️________________
Oii, gente!!!
Por favor, não me matem kkkkkk
Faltam três capíulos para o fim do livro e é agora que vocês vão ver se são cardíacos ou não kkkk.
Desculpa. Mas é meu dever como autora provocar algum sofrimento.
O que acharam do diário? Já conseguem imaginar onde as joias estão? E o que acham que aconteceu com o Samuel?!
Vejo vocês em breve com o capítulo 28!
Beijos,
Ceci.
P.S: (estou respondendo perguntinhas sobre escrita nos stories da minha conta no instagram @terraliteraria_)se quiserem saber curiosidades sobre esse livro aqui ou outros, corram lá <3
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