vinte e seis
— Sabe o que eu acho? — Pedro disse depois de muito tempo em silêncio mexendo na churrasqueira.
— Lá vem...
— Eu acho que depois que você e a Bia começarem a colocar bebês no mundo, deviam se mudar para essa casa. É um desperdício uma mansão dessa vazia desse jeito.
Quase deixei a tábua onde estava colocando os pedaços de carne assada cair no chão. Olhei na direção da Bianca e da Ju. Graças a Deus, elas estavam longe, ocupadas montando a mesa em que a gente ia comer debaixo do abacateiro.
— Para de conversa fiada, Pedro — resmunguei, tentado a jogar umas brasas no pé dele. — A gente nem namora e você tá falando de filho? Se a Bianca escuta isso, sai correndo! E com razão.
— Não namora? Então você tá só passando tempo com ela?
Senti cada músculo do meu corpo enrijecer.
— É claro que não!
Pedro sorriu para si mesmo.
— Foi o que eu pensei. — Ele riu e virou o espeto de carnes na churrasqueira improvisada que fizemos com uns tijolos abandonados no fundo do quintal. — Mas fica esperto. Do jeito que vocês não se desgrudam, logo, logo vai ter um monte de catarrentos correndo pelo quintal.
Eu estava prestes a mandar ele ir cuidar da própria vida quando Bia apareceu atrás de mim. Ela me abraçou e roubou um pedaço de carne da tábua.
— Do que vocês estão falando?
Pedro abriu um sorriso enorme.
— Eu estava falando para o Samu que essa casa devia servir para...
— Algum negócio — me adiantei, cortando a fala do Pedro antes que ele terminasse. Por que eu ainda era amigo daquele cara?! — Já que ela é grande, bonita e tudo mais.
— Ah, eu já pensei sobre isso — Bia disse, pegando mais um pedaço de carne. Ela gostava daquelas bem passadas, quase queimadas na brasa. — São tantos quartos... Uma pousada não seria má ideia. E olha esse quintal. — Ela fez um gesto amplo para o espaço. — Se a gente derrubar aquele muro, conseguimos ligar o jardim da frente com o quintal. Imagina um quiosque aqui, com mesas de madeira, toalhas brancas, varais de lâmpadas em todas as árvores... Seria lindo.
— Quando você pensou sobre tudo isso? — perguntei para ela, impressionado.
— Sei lá. Ontem enquanto a gente limpava, eu acho.
— Você tem alma de empreendedora, Bia — Pedro falou enquanto tirava a segunda remessa de carne da churrasqueira. Bianca sorriu amplamente e jogou o cabelo rosa por sobre o ombro.
— Viu? O Pedro aprecia meus talentos.
Semicerrei os olhos para ela e a puxei para mim com um pouquinho só de força.
— E eu não?
Ela ficou na ponta dos pés e me deu um beijo.
— Depende dos talentos.
— Eca. Arrumem um quarto. — Pedro passou entre nós e foi levar as carnes para a mesa. — E proteção. Lembra o que eu te disse sobre os catarrentos, Samu.
Bia olhou para mim.
— Do que ele tá falando?
Eu beijei ela de novo.
— Eu tenho uma lei que tudo que o Pedro diz para mim deve ser descartado em um prazo de no máximo cinco minutos.
— Eu ouvi isso!
Bia riu e me puxou para a mesa onde estavam nossos amigos.
Quando Ju e Pedro foram embora mais os menos no meio da tarde de domingo, agradeceram pela estadia e disseram que a gente podia fazer mais vezes. Eu falei que estava disposto a receber só a Juliana, o Pedro me mandou ir à merda e eu senti por um breve momento que tudo estava certo na minha vida.
— A gente devia ir às buscas — Bia disse quando ficamos sozinhos na sala de estar. Ela estava com o queixo apoiado no meu peito, olhando para mim com aqueles enormes olhos castanhos.
— Sério? Eu estava bem disposto a tirar uma soneca de domingo à tarde com você, já que contratei a Heloísa e o Cauã pelo fim de semana inteiro.
— Até parece que você é o tipo de cara que para pra descansar no meio do dia.
Eu a apertei junto de mim.
— Se eu puder te usar como travesseiro, por mim tudo bem.
Ela riu e se desvencilhou.
— Anda logo, se não a gente nunca vai acabar de revistar o segundo andar.
Encontrar aquelas joias parecia ter se tornado, além de tudo, uma questão de honra para a Bia. Ela não ia desistir enquanto não as encontrasse, e eu sabia que a gente sempre estaria inquieto naquela casa se nunca achássemos o bendito tesouro.
Mas não era como se eu estivesse mesmo pensando em manter a mansão, né?
Merda.
Antes, a ideia era só um sussurro na minha mente, mas agora, com todos os dias e noites que eu passava ali com a Bianca, mais difícil parecia a ideia de me desfazer do lugar.
Nós passamos o resto da tarde revistando os cômodos que sobraram no segundo piso. Bia só faltava querer arrancar as tábuas do assoalho para ter certeza de que não estava deixando passar nada, e eu precisava me concentrar nas buscas e nela ao mesmo tempo para impedir que quebrasse um pescoço quando insistia em olhar por cima dos móveis altos.
Eu estava prestes a implorar que a gente desistisse daquilo e pedisse uma pizza quando ela falou que faltava o último cômodo do corredor.
— É só mais uma sala de estar, pelo que eu me lembro — falei, praticamente me arrastando atrás daquela garota incansável. — Não tem nada lá.
— Como você pode ter certeza?
Não respondi, ao invés disso a segui em silêncio e me conformei que meus músculos já doloridos ficariam ainda piores com outra rodada de arrastar móveis.
Quando chegamos na sala de estar, me joguei em uma poltrona enquanto Bia puxava o tapete. O lugar era coberto por um papel de parede estampado com rosas cor-de-rosa e arabescos, além de sofás confortáveis e uma mesinha com um conjunto de chá completo. Me senti em Bridgerton, uma das séries que a Bia tinha me obrigado a assistir na Netflix.
— Parece um lugar em que velhas se reúnem para fofocar — Bia falou, tirando meus pés do caminho ainda na tentativa de puxar o tapete enorme.
— O Pedro ia se sentir em casa aqui, então.
Ela riu e eu joguei a cabeça para trás, encarando o teto.
— O que é aquela portinha ali?
Olhei para onde ela estava apontando. Havia uma porta pintada de branco bem na extremidade da sala.
— Não sei. — Tentei me lembrar da época em que eu morava ali, mas já tinha percebido há um tempo que mesmo a criança curiosa e inquieta que eu era não tinha conseguido explorar todos os cantos daquela casa enorme. — Deve ser um daqueles cômodos de bagunça.
— Será que tem ratos?
Dei de ombros.
— Provavelmente.
Bia ficou me encarando.
— O que foi?
— O que você acha?! — Ela jogou as mãos para o alto. — Vai abrir.
Soltei um suspiro e me levantei da poltrona.
— Sempre sobra pra mim.
— Vê se para de reclamar. — Ela ficou bem nos meus calcanhares enquanto eu me aproximava da porta. — Anda, abre logo.
Coloquei a mão na maçaneta e hesitei. Bianca ficou imóvel atrás de mim, e bem quando a tensão ficou insuportável, eu me virei para ela de uma vez e soltei um grito.
Bia quase caiu para trás. O susto logo passou e ela me bateu com força no peito.
— Seu idiota!
— Ai! — reclamei, tentando escapar dos seus golpes. Não conseguia parar de rir. — Foi só brincadeira, amor.
— Abre logo a porra dessa porta, Samuel!
— Tá bom, tá bom.
Eu estava rindo baixinho quando finalmente fiz o que ela pediu.
O cômodo era abafado e escuro, parecia um buraco na parede. Eu tateei às cegas à procura de um interruptor.
— Tem ratos? — ouvi a voz de Bianca dizer.
— Nenhum passou perto do meu pé por enquanto.
Achei o interruptor e acendi a luz. No mesmo instante, o quartinho foi iluminado por completo.
— Meu Deus.
Bianca continuou atrás de mim, mas eu não precisava olhar para ela para saber que seus olhos varriam o cômodo com a mesma rapidez e perplexidade que os meus.
Ali, alguns pendurados e outros empilhados contra a parede, havia uma infinidade de quadros pintados à mão. Havia uma estante de metal ali, abarrotada de tubos de tinta, pincéis e livros. Algumas telas pareciam inacabadas, mas a maioria estava completa.
No canto direito de cada uma delas, em tinta branca, duas palavras:
Jorge Dutra.
Adentrei o cômodo quase pequeno demais para mim. Bia me seguiu, muda e de olhos arregalados.
— O seu avô pintava? — foi a primeira coisa que ela disse, passando os dedos com delicadeza por uma tela que retratava a fachada da mansão. As pinceladas eram grossas, mas precisas. Eram um tanto brutas, e você precisava se afastar para colocar tudo em perspectiva e entender o que realmente retratavam.
Mas eram lindas.
Disso, não havia dúvidas.
— Não que eu me lembre — falei. — Ele deve ter começado depois.
Ele tinha pintado quase todos os cômodos da casa, em um conjunto de telas empilhadas perto da porta. Reconheci minha mãe, a criança e a adulta que ela foi, em pelo menos sete trabalhos, e havia quase a mesma quantidade de telas dedicadas a retratar minha avó e Amália. As três mulheres que ele tinha amado.
Vi duas telas que mostravam o abacateiro onde Bianca e eu tínhamos nos sentado tantas vezes. Em uma delas, um homem de cabelos brancos abraçava uma senhora baixinha à sombra da árvore.
— Olha esse, Samu.
Me virei para a Bia a tempo de vê-la tirar um dos poucos quadros que foram pendurados no espaço minúsculo.
Era uma criança brincando de carrinhos sobre um tapete vermelho. Ele estava sozinho, olhando para as próprias mãos ocupadas com os brinquedos. Mas eu conseguia ver a cor daqueles olhos, inconfundíveis pela escolha precisa das tintas.
Um olho verde e o outro castanho.
— Ele te pintou, Samu.
Me aproximei da tela, sem saber ao certo o que pensar.
Meu avô tinha gastado horas da sua vida me pintar?
Parecia impossível.
Bia colocou a tela nas minhas mãos. Eu não conseguia desviar os olhos dela. Daquele garoto, que não fazia ideia do que a vida ia fazer com ele.
— Tem alguns livros antigos aqui — ouvi a Bia dizer. — Em partes, é mesmo um quartinho de bagunça.
Deixei o quadro de lado e fui até ela. Senti um nó no estômago ao manusear os livros antigos. Alguns eu reconheci, da época em que eu era criança e minha mãe vivia lendo quando eu estava ocupado demais brincando para fazer bagunça, mas os outros eram manuais de pintura, em sua maioria, e tinha alguns cadernos de anotações também.
Senti um arrepio esquisito quando peguei um caderno de couro. A capa mais parecia ser de um livro antigo, de tão bem trabalhada. Minha boca ficou seca e eu me lembrei do sonho da noite anterior. Nunca tinha tido uma sensação de déjà-vu tão forte na vida.
Comecei a folhear, meu coração batendo mais rápido a cada segundo.
— O que é isso? — Bia perguntou, mas sua voz parecia distante demais, como se eu a estivesse ouvindo debaixo d'água.
Precisei engolir em seco duas vezes até conseguir falar de novo.
— É um diário — falei. — É do meu avô.
05 de abril de 2006
Todo dia eu acordo e a primeira coisa que me lembro é que ela se foi.
E não só foi embora da casa, porque estava cansada do meu rancor e das minhas palavras duras, mas foi embora desse mundo. Pra sempre.
Se eu não escrever o que se passa na minha cabeça, sinto que vou enlouquecer. Toda noite, quando me deito, penso que a escuridão é melhor do que outro dia vazio, e desejo não precisar ver o sol de novo.
Se eu soubesse que a Amália partiria, não teria perdido tempo com o meu orgulho nessa casa. Quando li a carta dela, fiquei com raiva por ela ter desistido de nós e disse a mim mesmo que não iria até ela. Não só porque ela pediu que eu não o fizesse, mas porque não queria ter meu ego ferido.
Mas ela estava morrendo. E eu a perdi. Ela não estava comigo quando se foi.
Fui ao funeral no dia seguinte à morte dela. Ela estava sendo velada no salão comunitário do cemitério e eu entrei pela porta lateral. Não suportava a ideia de não vê-la uma última vez.
Os filhos dela estavam lá, o homem e a mulher. Raquel veio de Belo Horizonte com o marido e a filha pequena, que não estava em nenhum lugar que eu pudesse ter visto.
Ninguém prestou atenção em mim. Se me viram, pensaram que eu era só o patrão querendo se despedir de uma funcionária que serviu minha casa por tantos anos. Nenhum deles sabia, não faziam a menor ideia, que era a mulher que eu amava mais que tudo deitada naquele caixão.
Amália não estava usando o anel de rubi. Seus dedos estavam vazios, e aquela ausência quase me fez cair de joelhos.
Ela realmente abandonou tudo que vivemos?
Aquele anel, para mim, era como uma aliança no dedo dela. A joia mais preciosa que a dei ao longo dos anos. Mas agora não importa mais. Se o anel estiver com os filhos dela, tudo bem. Não é como se houvesse mais alguém na minha família que pudesse usá-lo.
Estou sozinho nessa casa, e parece que Amália foi embora há anos ao invés de apenas poucas semanas. O jardineiro e a cozinheira tentam falar comigo, mas não quero interagir com nenhum deles.
Fico pensando no que Amália me pediu naquela carta que deixou. Sobre eu ir atrás do menino.
Não sei se posso fazer isso. Eu não consigo. Toda vez que eu olho para ele...
Eu não posso.
Talvez ela estivesse certa em me deixar. Não existe redenção para mim.
Mas nunca doeu tanto estar sozinho nessa casa.
Devo escrever com regularidade agora. Preciso contar tudo, e acho que as palavras vão ser a única coisa a me fazer companhia. É tudo que sobrou.
______________________❤️__________________
Oii, gente!!
Primeiro, mil desculpas por ter falhado em postar no domingo! Não tive tempo de escrever e acabei atrasando em alguns dias, mas não se preocupem que nesse domingo ainda teremos outro capítulo.
E lembra que eu falei com vocês que estava planejando a parte final do livro? Então! Caça Tesouros e Amores (segundo meu planejamento, que pode mudar) terá 30 capítulos e um epílogo, o que significa que temos mais cinco domingos de postagem antes do final do livro.
Tá doendo em mim também, mas está na hora de dar um final pra Bia e pro Samu. Esse livro já está com quase 85 mil palavras, o que na linguagem de escritor é bastante coisa para um livro de romance kkkkkk
Enfim, me contem tudo o que acharam desse capítulo e o que esperam da reta final (uma coisa eu garanto: fortes emoções)
Um beijo e até domingo,
Ceci.
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