vinte e quatro
No fim da noite de segunda-feira, quando o movimento no bar tinha praticamente acabado e não havia mais que dois bêbados na praça, eu escapei do olhar atento do Samuel e me sentei com a Juliana em uma das mesas do lado de fora.
Ela tinha aparecido uma hora antes com o Pedro, e depois de pedirem feijoada e beberem refrigerante, ela ficou ali enquanto o namorado ia atormentar Samuel no balcão.
- Finalmente uma chance de colocar os pés pra cima - comentei com um sorriso satisfeito, arrastando uma das cadeiras para perto de mim. - Vou te contar, a vida de garçonete não é fácil.
- Nem a de cabeleireira. - Ju sorriu e pousou o queixo na mão. - Eu adoro deixar as mulheres mais bonitas, mas chega uma hora que cansa mexer tanto na cabeça dos outros!
- Eu imagino - falei com uma risada, enquanto servia nossos copos com mais refrigerante que eu tinha buscado lá dentro.
- Então... - Ergui os olhos para Juliana, sua voz arrastada e o sorrisinho no canto da boca diziam mais que mil palavras. - Quando você ia me contar que tá saindo com o Samu?
Tentei disfarçar o sorriso, mas não consegui. Não me surpreendia que Juliana soubesse. Pedro apareceu um dia no bar quando Samuel e eu estávamos quase fechando. A gente estava no escritório, guardando algumas caixas e... Bom, se beijando no meio da bagunça. Nós três gritamos ao mesmo tempo quando ele acendeu a luz, Samuel jogou um engradado na sua direção e Pedro saiu se desculpando e rindo ao mesmo tempo.
- É recente - contei. - Só faz algumas semanas.
- Eu podia jurar que já tinha rolado há um tempão! Era só ver o jeito como vocês se olhavam. Estava na cara.
- Então ele me olhava? - perguntei interessada. Nada melhor que acumular informações e usá-las contra o Samu mais tarde.
- Ele babava! Quando estavam no meio de uma briga, então, era só você virar as costas que a pose de malvado dele ia para o ralo.
Ri e bati palmas ao mesmo tempo.
Eu com certeza usaria aquilo mais tarde.
- Mas, então? É oficial? Entre vocês?
Comecei a brincar com a ponta do cabelo, sem saber ao certo o que dizer.
- A gente não deu um rótulo ainda. E, sinceramente, estou bem assim.
- Então é um relacionamento aberto?
- O quê? Não! - Fiquei surpresa comigo mesma com a veemência da resposta. Juliana começou a rir.
Eu, que me considerava até bem moderna, tinha náuseas só de imaginar Samuel com outra pessoa.
Do lugar onde eu estava, conseguia vê-lo andando pelo bar enquanto Pedro tagarelava. Observei o modo como levantava as caixas, limpava as mesas e botava tudo em ordem. Eu conhecia cada traço do rosto e do corpo dele agora. Sabia exatamente qual era a sensação de quando me beijava (apesar de ser pega de surpresa por ela toda vez), conhecia sua risada como a minha própria, sabia o modo como seu rosto ficava vermelho quando estava nervoso e o cuidado com que segurava tudo ao seu redor, inclusive eu. Sabia como era dormir do seu lado e acordar com a sua respiração na minha nuca e o braço protetor ao redor do meu corpo. Eu reconhecia quando a dor tomava conta dele e também cada uma das vibrações que seu corpo emanava quando ria de alguma besteira.
Aquele homem era meu.
E eu esperava que ele soubesse disso.
- Já entendi tudo, só de olhar para você - Ju falou diante do meu silêncio. Ela sorriu e apertou minha mão. - Não deixa isso escapar, Bia. Relacionamentos são difíceis. No início, em longo prazo... - Ela suspirou e olhou para o interior do bar. Sabia que observava o Pedro. - Gostar de alguém também significa se decepcionar às vezes, quebrar a cara. Mas só porque a gente se importa demais com a outra pessoa.
- Você e o Pedro estão legais? - perguntei, olhando atenta para o rosto dela.
Ju suspirou e abriu um sorriso cansado.
- Isso muda de hora em hora. Agora? Sim. Amanhã? - Ela deu de ombros. - Amanhã talvez eu jogue todas as cuecas dele no quintal.
- Ele continua bebendo?
- Menos, agora. Mas só porque ameacei ir embora para a casa da minha mãe e nunca mais voltar. - Ela brincou com o copo de refrigerante. - Ele não cresceu num ambiente muito saudável, sabe? E não sabe lidar direito com o que sente. Para sufocar os pensamentos, ele bebe. Então eu fico puta, porque sei que isso acaba com a saúde dele e com a minha. Aí eu coloco ele pra correr, mas não aguento de saudade. - Ela riu de si mesma. - Mas ele tá tentando melhorar. Ele é uma pessoa boa, só tem a mente um pouco fraca. Logo, eu espero que a gente construa uma família.
- Eu torço muito por vocês. De verdade. E o Pedro te ama, Ju. Ele idolatra o chão que você pisa.
- E tem como não idolatrar? Eu sou um mulherão!
Nós rimos e eu ergui meu copo de refrigerante para um brinde. A gente bebeu em nossa homenagem.
- Nossa, eu devia falar com o Pedro para parar de matracar lá dentro. O Samuel já deve estar pedindo socorro. - Ela disse depois de um tempo. - Ah, antes que eu esqueça, por acaso o Samu te falou da festa junina que vai ter aqui na praça no sábado?
- Não. Vai ter uma festa junina? Já?
- É tradição. A prefeitura que organiza toda vez na primeira semana de junho. Vai ter um monte de barraquinhas com comida gostosa e forró! O Pedro comentou com o Samuel, mas ele disse que justamente pela festa, o bar vai ter muito movimento. Será que você não consegue convencer ele a ir?
- Pra esse bar fechar, só na volta de Jesus! - falei. - O Samuel não perde venda nem a poder de reza. Mas eu posso ver com ele se chama o Cauã para ficar no balcão e contratar alguém extra pra ajudar.
- Tomara que ele tope! Eu quero muito que vocês vão.
Prometi que ia falar com ele e Ju me deu um abraço de despedida quando ela e o Pedro saíram do bar e foram para casa. Eu ajudei Samuel a fechar o caixa e entrelacei minha mão na dele quando estávamos a caminho do carro.
- Eu comentei o quanto você tá lindo hoje?
Samu semicerrou os olhos para mim.
- Eu não sei. Se foi entre você ter me mandado ir a merda quando eu disse para parar de bater a porta do freezer e a nossa discussão sobre quem esqueceu de fazer o pedido de mais energéticos, eu posso ter me esquecido.
- Eu já disse que não bati a porta coisa nenhuma e que quem devia ter feito o pedido na semana passada era você!
- Posso garantir que não era, não.
- Dá para parar de ser teimoso?
- Olha só quem tá falando!
Abri a boca para discutir mais, mas parei quando percebi que Samuel estava rindo baixinho.
Dei um soco no braço dele.
- Você me tira do sério de propósito.
- Não consigo evitar, amor.
Eu ia acertar outro soco nele, mas Samuel segurou meu punho e me arrastou para trás da igreja, onde o carro estava estacionado.
Mas ele nem esperou a gente entrar. Roubou um beijo bem ali.
- Você estava dizendo alguma coisa sobre eu ser muito lindo - ele disse, me abraçando forte. - Não precisa me bajular, Bia. Você sabe que é só pedir e eu faço o que você quiser.
- É? Então eu quero uma viagem para as Maldivas!
Ele riu contra o meu pescoço.
- Vou ver o que consigo fazer. Mais alguma coisa, Majestade?
- Na verdade, sim. Vamos na festa junina no sábado.
Ele se afastou pra olhar pra mim. Quase soltei um resmungo. O corpo dele estava me mantendo bem aquecida antes.
- Para pagar sua viagem para as Maldivas, o Lambari tem que se manter funcionando. Ainda mais num dia de festa na praça! O caixa vai transbordar.
- Você pode ligar para o Cauã. E tenho certeza que a gente acha alguém para atender as mesas por uma noite.
Samu passou o polegar pelo meu rosto. Sabia que estava traçando as pintinhas na minha bochecha.
- E sabe o que mais eu pensei? - disse, me aproveitando da sua distração. - A gente podia falar pra Ju e pro Pedro jantarem na mansão com a gente. Nós até podemos usar a mesa de jantar da sala! A gente se apronta por lá, vem pra festa, depois voltamos pra dormir e fazemos um churrasco de domingo!
- Tá doida?! Eu não aguento o Pedro por tantas horas seguidas, não.
- Para com isso - falei com uma risada. - Vai ser divertido. Você tem uma mansão! Por que não receber nossos amigos lá?
- Não é isso. É claro que podemos fazer o jantar, o churrasco e tudo mais. Mas e a festa junina? A cidade inteira vai estar aqui.
- E o que tem isso?
Ele ficou em silêncio e eu notei o modo como parecia escolher as palavras com cuidado.
- Vão ver a gente.
Pisquei, um tanto atordoada.
- Isso incomoda você?
- É claro que não! Eu estava me perguntando se incomoda você.
Olhei para o rosto dele. Aquelas linhas na sua testa pareciam mais profundas agora. Se eu alcançasse, beijaria cada uma delas.
- Se as pessoas acharem que estamos juntos, o que tem? - falei do jeito mais leve que consegui. Segurei a mão dele com as minhas e a levei até a altura do meu peito. - Não seria uma mentira, mesmo. E consigo pensar em coisas piores do que ser vista com você.
Samuel jogou a cabeça para trás e riu.
- Você é inacreditável.
- Obrigada?
Ele apertou minha mão de leve.
- Tá bom. Se eu encontrar alguém pra fazer um bico de garçonete, a gente vai na festa junina.
Bati palmas, animada.
- Combinado!
- Dói deixar o bar ao cuidado de outras pessoas, sabia?
- Samuel, você trabalha demais! Tem que relaxar - falei, roubando a chave do carro do bolso dele. Samu revirou os olhos, mas nem tentou brigar comigo pelo controle do volante.
- Trabalhar é a minha diversão.
- Sua única diversão?
Ele me olhou de um jeito sugestivo.
- Eu preciso mesmo responder?
Minha risada se perdeu na noite.
E eu, como sempre, me perdi nele.
No fim, não foi nem um pouco difícil achar alguém para me cobrir no bar. Todo mundo precisava de um dinheirinho extra e Heloísa, uma mulher muito simpática que sempre trabalhava como garçonete em festas e bares nos fins de semana, disse para o Samuel umas cinco vezes que não precisava se preocupar em deixar o atendimento nas mãos dela.
- Vai estar lotado hoje - ele disse quando chegamos na mansão às cinco e meia da tarde, depois de sairmos do bar. - Será que eles vão dar conta?
- Samuel, pelo amor de Deus! Você parece uma mãe que deixou o filho para a babá cuidar pela primeira vez!
- Eu tenho certeza que ficaria menos preocupado em deixar meu filho com alguém ao invés do Lambari.
Não disse nada. Estava ocupada abrindo as janelas e recolhendo os tapetes. Juliana e Pedro iam chegar daqui algumas horas, nós íamos comer alguma coisa, se aprontar e irmos juntos pra praça. E eu é que não receberia nossos amigos em uma casa tão empoeirada daquele jeito. Já tinha reunido as vassouras, os baldes e os espanadores ao longo da semana.
- Nada de ficar me olhando trabalhar - falei quando trouxe todo o material de limpeza pra sala. - Pode usar esses braços fortes pra alguma coisa. Tipo arrastar os móveis.
Samuel não protestou. Ele podia reclamar, mas eu sabia que gostava quando podia se mostrar útil.
Quando Juliana e Pedro chegaram, já era noite. Eu tinha varrido todo o caminho de pedra que levava até casa, assim como as escadas e a varanda. Samuel tinha usado sua abençoada altura para esfregar toda a parede de espelhos da sala até a superfície reluzir, assim como os objetos de decoração em cima da lareira, a mesa de jantar e os outros móveis. Depois de insistir bastante, ele concordou em me colocar sobre os seus ombros e eu usei um paninho úmido para limpar os lustres.
- Vamos ver se vai fazer alguma diferença - falei, indo até o interruptor.
Assim que acendi a luz, a sala foi banhada em um brilho dourado aconchegante. O cômodo enorme, de repente, parecia ter saído de um catálogo de um hotel cinco estrelas, mas ao mesmo tempo era aconchegante como só um lar podia ser.
- Esse lugar não é nem um pouco tão tenebroso quanto eu pensava! - Ju disse quando a recebi com um abraço. - Meu Deus, é a casa mais linda que eu já vi!
- A gente separou uma das suítes lá de cima para vocês - contei, toda animada. Nunca pensei que bancar a anfitriã pudesse ser tão divertido! - É o quarto azul. Ele é um dos meus favoritos!
- Não deu pra deixar a casa toda apresentável - Samu disse, passando um braço carinhoso pela minha cintura e pousando o queixo no meu ombro. - Mas a gente tentou.
- Caralho, eu não lembrava do quanto essa mansão é maneira! - Pedro falou, praticamente colocando a cabeça para dentro do buraco da lareira.
- Deve ser porque da última vez que você veio aqui, estava vomitando as tripas de tanta cachaça - Samu pontuou com um sorrisinho.
- Ah, é. Foi a mesma noite que eu apanhei da sua mulher. - Pedro levou uma mão à base das costas com uma careta, como se ainda pudesse sentir a dor. - O que era aquilo mesmo? Um porrete?
- Um suporte de cortina velho.
- Tá explicado. Não sei como você não me deixou paraplégico!
Levei Ju para conhecer os cômodos de cima enquanto Samuel levava a comida que a gente tinha preparado para a sala. Não era nada muito pesado, já que eu sabia que nós quatro íamos querer nos empanturrar de comidas típicas da festa de São João.
Juliana ficou encantada com a casa, e embora ela ainda me desse arrepios às vezes, eu precisava admitir que a faxina, a iluminação e as conversas altas e animadas produziam um efeito diferente no lugar.
Um efeito que eu gostava. E que parte de mim queria manter.
Enquanto comíamos na sala de jantar, Pedro fazendo piadas sem graça, Juliana contando sobre as clientes mais absurdas que tinham passado pelo salão aquele dia e com Samu e eu trocando olhares e sorrisos ocasionais, eu pensei que era assim que a vida ali poderia ter sido: uma casa com risadas, com pessoas para preencher os cômodos e com amor.
Eu estava me tornando uma idealista? Não queria achar que era pedir demais um pouco de mudança naquele lugar e, consequentemente, na vida do Samuel também.
Quando subimos para nos aprontar, Samu e eu ficamos no mesmo quarto. Enquanto ele tomava banho, eu tirei meu vestido da mochila que tinha trazido e o vesti na frente do espelho. Ele era vermelho de veludo e mangas compridas, a saia caindo suavemente até a altura dos meus joelhos. Eu não era de usar vestidos, muito menos vestidos bonitos como aquele, mas quando o vi na vitrine de uma das lojas de roupa da cidade, não resisti à vontade de experimentar.
Era bobo, mas quando olhei para mim mesma no espelho do provador, senti meus olhos arderem e a minha respiração falhar. Eu não usava roupas que mostravam minhas pernas ou meu decote desde aquele dia na festa. A única exceção foi quando mergulhei na cachoeira naquele dia horrível e Samuel pensou que eu tinha me afogado. Mas era diferente. Pela primeira vez em meses, eu iria usar algo sem me culpar caso algum homem se sentisse no direito de me tocar ou encarar. Porque a culpa não era minha. E eu não iria me privar de mais nenhuma felicidade, por menor e inocente que ela fosse.
Samuel saiu do banheiro já vestido, com uma blusa preta, jeans e casaco xadrez. Ele estava secando o cabelo molhado com a toalha quando me viu parada na frente do espelho oval que ficava na parede.
Ele encarou meu reflexo.
- Uau - foi tudo que disse, com uma expressão atordoada.
Ri baixinho.
- Gostou do meu vestido novo?
Ele não respondeu, ao invés disso ficou atrás de mim e me abraçou pela cintura.
- Você tá perfeita, Bia. Não consigo parar de olhar para você.
- Você também não está nada mal.
- Tô um verdadeiro caipira se comparado a você.
- Bom, é uma festa junina. Não vai ter problema.
Ele riu e me beijou de leve.
- Tenho uma coisa pra você.
Ele abriu um dos zíperes da própria mochila e tirou de lá uma caixinha preta.
- O que é isso?
Mas ele simplesmente a abriu e segurou entre nós um colar dourado com um pingente de meia lua.
Arquejei baixinho quando Samuel ficou atrás de mim e colocou a joia no meu pescoço.
- Segura o cabelo, linda.
Fiz o que ele pediu, maravilhada demais para dizer qualquer coisa.
- Caramba, acho que não vou conseguir fechar. Essa coisa é pequena demais.
Imaginei as mãos enormes do Samu lutando contra o fecho delicado.
- Quer que eu tente?
- Não, acho que já foi. Pronto. - Soltei meu cabelo e segurei o pingente com cuidado, observando o modo como reluzia contra minha pele.
- Samu... - Eu mal conseguia formular uma frase.
- Antes que você diga que não pode aceitar, saiba que não tem devolução - ele falou. - Eu levei um relógio de pulso que eu tenho para consertar essa semana e vi o colar em um dos mostruários da loja. Na hora lembrei de você. Combina com as suas tatuagens.
- É lindo - eu disse, fascinada. Dei as costas para o espelho para olhar diretamente pra ele. - Obrigada. Depois de você, esse é o melhor presente que eu já ganhei.
Samu passou o dedo pelo pingente e prendeu uma mecha do meu cabelo atrás da orelha.
- Então eu sou um presente? - ele perguntou com um sorriso na voz.
- Uma que a vida jogou aos meus pés, sem laço e sem embrulho, disfarçado como um chefe rabugento. - Eu coloquei minhas mãos em volta do pescoço dele. - Não é verdade o que dizem, sabe? Nem todos os melhores presentes vem nas menores caixas. Olha só pra você!
Sua risada grave e linda fez meu corpo inteiro arrepiar.
- Eu fico feliz que tenha gostado. Pensei que eu deveria te dar alguma joia, já que as buscas pelas outras tá tão difícil.
Pousei a cabeça no seu peito.
- Nem me fala. Se eu não fosse tão teimosa e doida por dinheiro, já teria desistido.
- Mas não é só sobre o dinheiro, é?
Olhei para aqueles olhos diferentes que pareciam entender tudo.
- Não. Não é.
Samu beijou minha testa.
- Eu vou lá pra baixo fechar as janelas e pegar a chave, tá bom? A Ju e o Pedro já devem estar quase prontos.
- Tá bom, vou só calçar minhas sandálias e já desço.
Samu assentiu e me deixou sozinha no quarto. Fui até a beirada da cama e me sentei para abotoar as sandálias, radiante de felicidade com o meu presente que eu pretendia exibir por aí, assim como o homem ao meu lado.
Parte de mim queria brigar com o Samuel por gastar tanto dinheiro comigo, mas se eu fizesse objeção ele só diria "a gente desconta do valor das joias depois", como sempre fazia quando me dava alguma coisa. No rumo que as coisas estavam indo, eu tinha medo que nenhuma joia pudes...
Meus pensamentos foram interrompidos quando pensei ver alguém passar pela porta do quarto e seguir pelo corredor.
- Pedro?
Ninguém respondeu. Eu me levantei e fui até a porta. Olhei para os dois lados do corredor, mas não tinha ninguém. O quarto da Ju e do Pedro ficava mais perto das escadas, mas eu pensei ter visto alguma coisa caminhar na direção dos quartos dos fundos.
Fiquei parada, minha respiração suspensa.
Devagar, andei pelo corredor, sentindo uma sensação esquisita, mas não inquietante, me impulsionar.
Passei por todas aquelas portas de quartos e cômodos fechados, até parar em uma que ficava quase no fim do corredor. Era a única que estava entreaberta.
Estranho. Eu pensei que Samuel e eu tínhamos fechado todas no último dia que viemos aqui.
Coloquei a mão na maçaneta. Eu não sabia o que estava fazendo. Com certeza não estava no meu juízo perfeito, mas algo parecia implorar para que eu entrasse. E, por mais estranho que pudesse parecer, eu não estava com medo.
Empurrei a porta e meus olhos passaram pelo quarto. Estava tudo silencioso e relativamente arrumado. A cama estava coberta com uma colcha verde esmeralda, e os móveis eram feitos de mogno reluzente.
Eu conhecia aquele quarto. Samuel e eu o tínhamos vasculhado superficialmente algumas semanas antes e ele disse que aquele costumava ser o quarto do avô quando ele era criança.
É isso. Tô caindo fora.
Mas não consegui sair. Simplesmente, não parecia certo.
Adentrei o cômodo, passando de leve a mão pela colcha.
Tudo estava exatamente do jeito que a gente tinha deixado. Nada fora do lugar.
Meu olhar foi atraído para uma caixinha entalhada na mesinha de cabeceira. A abri, me deparando com os mesmos objetos que tinha visto da última vez: um par de óculos antigo, cartelas vazias de remédios, uma fivela de cinto. Quinquilharias. Coisas deixadas por alguém que não estava mais ali.
Aquilo era ridículo. Eu devia sair dali antes que Samuel voltasse e me encontrasse no antigo quarto do avô. Ele se ressentia tanto do homem - e com razão! - que sempre ficava azedo quando precisávamos mexer em coisas e ir em cômodos mais marcados pela presença dele.
Eu já ia fechar a caixa quando algo gelado pareceu correr pelas minhas veias.
Não, por favor.
Olhei para trás assustada.
- Santo Deus - murmurei. Eu tinha mesmo ouvido aquilo?
Não. Estava ficando louca.
Voltei a olhar pra caixa. Não havia nada ali. Se eu...
Foi naquele momento que notei que o interior do objeto era forrado por um paninho de veludo, que não estava grudado à madeira como eu pensava.
De uma vez, despejei todo o conteúdo da caixa no colchão. O pano também caiu, e, junto dele, um pedaço de papel dobrado.
Meu coração começou a bater desenfreadamente. Com as mãos trêmulas, peguei o papel e o abri.
Jorge,
Eu sei que você deve estar zangado por eu ter ido embora desse jeito, sem me despedir. Mas a verdade (e você sabe bem dela) é que eu já vinha me despedindo há meses.
Quero que saiba que eu te amei com todo o meu coração. Parte de mim ainda ama. Quando eu comecei a trabalhar nessa casa, você não era nada mais que o meu patrão, um homem frio que, sinceramente, até me aterrorizava. Sua gentileza e sagacidade se apresentaram para mim aos poucos, como aquele dia no jardim, quando me ofereceu uma das rosas brancas mais lindas que eu já tinha visto. Nossas conversas escondidas deixavam os meus dias mais felizes, e eu me perguntava como era possível uma mulher da minha idade ainda corar e se derreter pelas palavras de um homem.
Eu te amei, Jorge. Te amei tanto que fiquei ao seu lado nos momentos mais difíceis, quando sua dor e negação por ter perdido a filha te transformaram em alguém de atos e palavras duras. Mas eu não te culpo por isso. Nunca culpei. Eu também tenho filhos e o simples pensamento de que eles possam partir antes de mim é capaz de me colocar de joelhos.
Fiquei tanto tempo nessa casa que praticamente moramos juntos nos últimos anos. Encontrei um amor lindo ao seu lado, mas sua raiva e ressentimento pelas coisas que perdeu, aos poucos, minou essa relação. Eu vivia para ganhar um único sorriso seu, Jorge, e descobri que passar meus dias esperando o mínimo afeto de outra pessoa, barganhando para conseguir migalhas de carinho, não é um jeito muito bom de se viver.
Você se cercou de muralhas, desprezou a vida mais tranquila e amena que poderíamos ter. E eu aguentei tudo. Todas as palavras ríspidas que depois eram apagadas por você com um beijo ou um presente bonito, todos os hábitos reclusos que você parecia querer compensar transformando esse lugar em um palácio bonito para nós dois. Eu aguentei tudo, Jorge, mas simplesmente não consigo aguentar o modo como você ignora aquele menino.
Ele é a única família que você tem, e por cinco anos vem ignorando por completo a existência dele, por mais que eu tente te convencer a fazer o contrário. E eu sei, eu tenho certeza, que um dos motivos pelos quais você é tão duro consigo mesmo e com os outros, se dá por esse seu rancor e ódio destinado a uma criança. Seu neto, Jorge. Seu neto.
Toda essa raiva, todo esse luto, acumulados por anos e anos te tornaram uma pessoa que cada vez mais me repele. Você nem se dá conta disso, mas eu sim.
Por isso estou indo embora. Sei que não tenho lá muitos anos pela frente, já estou velha, mas não é por isso que vou passá-los com alguém que parece tão determinado a viver infeliz e, por consequência, me tornar infeliz junto.
Tudo o que você me deu, Jorge, roupas bonitas, aposentos luxuosos, uma montanha de joias para me enfeitar e para que você apenas pudesse me admirar entre essas paredes, nada disso tem importância para mim quando na verdade tudo que eu sempre quis foi o seu coração. Um coração sem mágoas e sem rancor.
Você ainda tem uma vida pela frente. Por favor, não a desperdice. Tem um garotinho de onze anos, órfão e sozinho, que você poderia amar e cuidar se quisesse. Aproveite o que ainda tem, antes que seja tarde.
Por favor, não me procure. Quero viver tranquila e serena o tempo que ainda me resta. Fomos felizes em muitos momentos, mas é melhor nos separarmos agora antes que todo o afeto que sentimos um pelo outro se transforme em algo terrível.
Fique bem, querido.
Com amor,
Amália.
_____________________❤️___________________
Oii, gente!! Como vocês estão?
O capítulo saiu mais tarde, mas saiu kkkkk <3 E quero saber tudo o que acharam!!
Aconteceu tanta coisa, que eu sinceramente nem sei o que dizer kkkk
Vejo vocês na semana que vem!
Um beijo,
Ceci.
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