vinte e dois
Eu estava num canto da cela minúscula que fica na sede da Polícia Militar em Santa Cruz. O lugar era frio e escuro e eu nem me dei ao trabalho de sentar na cama armada junto à parede, porque era só olhar pra coisa pra saber que ela desmontaria com metade do meu peso. Meu nariz ainda pingava sangue e os nós dos meus dedos ardiam pelos machucados.
Era o fundo do poço, pra dizer o mínimo.
Mas pelo menos o cara a duas celas de distância da minha estava pior que eu.
Sorri quando ouvi uma tosse seca seguida por um gemido baixo.
Eu podia apostar que, pelo menos pelos próximos dias, Henrique se arrependeria de ter nascido.
— Isso não vai ficar assim, seu desgraçado — o ouvi dizer. Ele tinha repetido variantes da mesma frase pela última meia hora.
Apoiei a cabeça na parede.
— Sabe, Henrique, da próxima vez vou acertar a sua mandíbula com mais força — falei. — Assim quem sabe você fica com a merda da boca fechada por mais tempo.
Ele murmurou algo que eu não consegui distinguir.
Bom, talvez eu tivesse acertado com força o suficiente...
Eu não me arrependia do que tinha feito. Não até precisar ligar pra Bianca para ela me tirar dali, pelo menos.
Tentei falar com o Pedro primeiro, mas a chamada caiu direto na caixa postal. Fábio, o policial que estava comigo, resmungou que só me daria mais uma tentativa.
A Bia era a opção mais segura.
Na chamada, ela pareceu assustada demais para falar qualquer coisa que não fosse um apressado "tô indo", mas eu sabia que teria que ouvir mais que isso depois.
E eu merecia ouvir, por tê-la envolvido naquilo. Mas, de novo, não me arrependia.
Eu tinha encontrado Henrique em um dos bares da cidade. Seu vício em bebida parecia aumentar de semana em semana, um fato interessante o suficiente para as senhoras que viviam sentadas nas calçadas de casa começarem a comentar.
Mas Henrique não tinha tomado mais que uma lata de cerveja quando me notou parado na esquina no fim da tarde, à sombra da carcaça de um prédio abandonado. Assim que percebeu que eu estava observando, ele sorriu pra si mesmo e acabou de beber o conteúdo da lata de uma vez, a abandonando sobre a mesa antes de atravessar a rua.
— Grandão! — ele disse, tirando as mãos dos bolsos da jaqueta de couro e estendendo os braços em uma espécie de saudação. — Decidiu vir pedir desculpas pelo jeito que você me tratou no Lambari aquele dia? — Ele maneou a cabeça para um lado e abriu um sorriso de escárnio. — Não que eu tenha ficado tão ofendido assim, pra ser sincero. Tem tantos outros lugares melhores na cidade...
Eu nem ouvi o que ele estava falando. Estava pouco me fodendo para as suas provocações infantis.
— Você incomodou a Bianca de novo, não incomodou?
Ele semicerrou os olhos, o sorriso ainda presente.
— O que foi? Você veio defender a honra dela? — Henrique riu. — Larga de ser idiota, Samuel! Eu estava fazendo a garota um favor. Alguém precisa abrir os olhos dela antes que ela tome uma decisão estúpida. Tipo dar uma chance para alguém como você.
— Você age como se a gente ainda estivesse na escola — falei, com nada mais que desprezo.
— Você também. É o mesmo daquela época. — Henrique se aproximou de mim, quase me rondando. — Grande, desajeitado, lento. Mas você deve ter aprendido algumas coisas se conseguiu que aquela gostosa fosse burra o suficiente para abrir as pernas pra você.
Não foi por um impulso que eu agarrei a gola da camisa do Henrique naquele momento em específico. Não teve nada de brutal no jeito com que eu o arrastei devagar até o interior do prédio abandonado e o joguei contra a parede de tijolos. Eu já sabia que tinha vindo até ali para aquilo. Boa parte do meu ódio tinha se diluído com as horas, e agora ardia só uma raiva fria.
Henrique arfou diante do impacto do corpo contra a parede. Com dois passos, eu cheguei até ele e o mantive no lugar sem esforço nenhum.
— Me solta, seu filho da puta! — ele cuspiu.
— Mas eu nem comecei...
Meu aperto ficou mais forte conforme Henrique se debatia.
— Eu não sou uma piada tão boa agora, sou? — sussurrei com satisfação, observando seu rosto ficar roxo. — Você devia ter percebido da primeira vez que eu te dei uma surra depois da escola que só era bom fazer graça do meu tamanho até eu parar de ser trouxa e usar ele pra alguma coisa.
Vi uma sombra de medo cruzar os olhos do Henrique.
Como aquela era uma mudança bem-vinda... Eu tinha passado minha vida inteira olhando para ele e para os seus amigos com um terror muito parecido.
— Mas ao contrário de você, eu cresci — continuei, tirando Henrique de contra a parede e o soltado. Ele cambaleou para trás e tentou se afastar de mim. — E eu fiquei bom em ignorar suas provocaçõezinhas no bar e quando a gente se encontrava por aí. Eu sabia que você não passava de um idiota rico e mimado tentando agir como se a vida ainda fosse aquela sala de aula que você comandava. — Eu parei por um momento, o encurralando entre mim e uma viga. — O seu único erro foi ter mexido com ela.
Então eu o acertei no rosto.
Henrique caiu no chão de concreto com um baque e eu fui pra cima dele.
O mundo ficou silencioso e eu só conseguia pensar no prazer animal que sentia toda vez que via o sangue dele espirrar.
— Você nunca mais vai chegar perto dela de novo, entendeu? — grunhi com as mãos no seu pescoço.
Henrique me acertou e por um momento conseguiu me desequilibrar, mas eu nem senti dor, nem notei o sangue quente escorrendo pela frente da minha camisa.
— Eu não vou precisar — ele conseguiu dizer, antes que a raiva fervesse e eu o pressionasse contra o chão e o socasse de novo. E de novo, e de novo. — Assim que ela perceber o nada que você é, pode ter certeza que vai sair correndo para achar qualquer coisa melhor.
Eu ouvi o som da sirene antes das luzes vermelhas e azuis iluminarem a construção abandonada.
Alguém tinha visto alguma coisa e ligado pra polícia.
Dois policiais me tiraram de cima dele, enquanto outro erguia Henrique do chão e nós dois éramos algemados e jogados no banco de trás da viatura.
Henrique gritava que eles estavam cometendo um erro em levá-lo preso também, já que ele tinha sido atacado, mas como meu rosto também não estava dos melhores e Hernandes, o policial mais velho, conhecia nós dois desde que éramos crianças, deve ter juntado dois mais dois e percebido que aquele desgraçado tinha tanta culpa no cartório quanto eu.
Em menos de meia hora, eu tinha sido jogado ali. E esperava muito não ter que passar a noite.
O som estridente das barras da cela sendo abertas me fez levantar os olhos. Hernandes fez sinal para que eu me levantasse do chão.
— A moça veio te tirar daqui.
Me levantei a tempo de ouvir Henrique balançar as barras da própria cela.
— E eu? Por que ele vai embora primeiro, se o criminoso aqui não sou eu?
— Sua mãe ainda não apareceu, rapaz — Hernandes disse. — Você devia ficar calado até alguém vir, entendeu?
Henrique xingou enquanto o policial me levava pelo corredor.
— Você vai ter que esclarecer o que aconteceu, Samuel — o homem mais velho disse. — O Henrique vai querer prestar queixa. E você?
Engoli em seco. Não tinha como explicar tudo sem falar sobre o que ele tinha feito com a Bianca. E não era papel meu falar daquilo se ela não quisesse.
— Fui eu quem procurou ele, senhor — admiti. — Mas eu te garanto que não machuquei aquele filho da puta nem a metade do que ele merecia.
Hernandez suspirou e parou na minha frente antes que entrássemos na sala principal, onde eu tinha certeza que Bianca e os outros policiais de plantão estavam.
— Filho, eu não vou mentir, tenho certeza que seja lá o que o Henrique fez, não foi coisa boa para mexer com você desse jeito. Eu te conheço desde que era um moleque. Sei que é um bom rapaz. — Ele colocou a mão no meu ombro. — Mas você não vai querer arrumar confusão com a família dele. Isso vai acabar mal e você sabe disso. Eu conhecia muito bem a sua avó, e sei que ela não ia querer nada disso pra você.
Olhei para o outro lado.
Eu não queria pensar na minha avó e nem no que ela diria se estivesse ali agora.
Hernandez apertou meu ombro e me soltou.
— Vem. É melhor você pegar suas coisas e sair daqui antes que a família dele chegue. Não quero confusão nessa delegacia.
Passamos pela porta e no mesmo instante meu olhar foi atraído para a garota de cabelo rosa sentada do outro lado da escrivaninha onde um policial estava. Assim que ela me viu, Bianca arrastou a cadeira para trás e veio correndo na minha direção.
— Meu Deus, parece que um trator passou por cima de você! — ela tocou o meu olho direito e eu me encolhi. Aquela parte doía.
— O Henrique tá pior — quis deixar claro.
Bianca praticamente me fuzilou com o olhar, toda a preocupação substituída por uma raiva mortal.
Ela engoliu em seco e se virou para o policial sentado na frente do computador.
— Bom, já foi tudo resolvido? A gente pode ir embora?
— Por enquanto. — Ele abriu uma gaveta e entregou para ela um envelope com os objetos que tinham sido confiscados quando eu cheguei. — Você não tem nada a dizer, rapaz? A gente ainda vai ouvir o Henrique.
— Não tenho.
— Bom, nesse caso, nem pensa em sair da cidade por alguns dias. Vamos ficar de olho em você.
Bia se adiantou pra ele.
— Senhor, eu queria ver o Henrique. Só por uns minutos.
O policial olhou para ela e depois trocou um olhar com Hernandez.
Eu abri a boca para impedir, mas ele me interrompeu:
— Você tem dois minutos. Hernandez, acompanha a senhorita.
Ela sumiu pela porta antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.
O que a Bianca estava pensando?!
Fiquei ali parado, contando os segundos e no fim quase indo atrás dela. Quando eles finalmente voltaram, Bianca sorriu radiante para os policiais e desejou uma boa noite a todos, além de garantir que eu não traria mais problemas.
Então ela me pegou pela mão e me levou pra fora da delegacia.
— Onde tá seu carro? — ela perguntou assim que deixamos o prédio.
— Bia...
— Onde tá o carro, Samuel?
Contei onde eu tinha estacionado. Ficava a uns três quarteirões dali, perto do lugar em que eu tinha encontrado Henrique.
Ela andou na minha frente e eu não tive escolha a não ser segui-la. Quando finalmente chegamos perto da construção abandonada, ela pegou as chaves do veículo no envelope e destrancou as portas.
Aquele silêncio estava me matando, mas eu era covarde demais para tentar falar de novo. Ela dirigiu até a minha casa e foi abrindo as portas e acendendo as luzes quando chegamos.
Eu não aguentava mais aquilo.
— O que você foi falar com o Henrique?
Bianca parou na metade do caminho até meu quarto e olhou para mim.
— Eu disse pra ele pensar duas vezes antes de prestar queixa contra você e levar essa palhaçada adiante — ela respondeu, a voz dura como aço. — Disse que se ele abrisse a merda da boca, eu diria pra polícia sobre os dois episódios de assédio que ele comentou contra mim.
— Você não precisava...
— Ah, eu precisava sim — ela me interrompeu, chegando mais perto e me encarando. — Alguém precisava dar um jeito na bagunça.
— Eu sinto muito por ter te envolvido nisso. Eu não teria te ligado se o Pedro tivesse atendido. Vou te devolver todo o dinheiro da fiança.
— Sério, Samuel?! — ela praticamente gritou, abrindo os braços em um gesto amplo. — Não é sobre a porra do dinheiro! Nem sobre eu ter recebido uma ligação da delegacia quando estava muito contente me arrumando para o trabalho. É sobre você não ter cumprido o que me prometeu!
— Eu não podia, Bianca. Não quando ele, por duas vezes, se sentiu no direito de assediar você.
— Eu podia lidar com isso. Não precisava que você agisse que nem um animal tentando proteger seu território!
— Não foi isso. Não foi sobre mim.
— Tem certeza? — Bianca ficou bem perto de mim e enfiou o indicador no meu peito. — Por que eu dei uma boa olhada no que sobrou do rosto do Henrique naquela cela, e o que você fez com ele foi o suficiente por anos de ressentimento!
— Não fala como se eu fosse um monstro — grunhi, me afastando dela.
— Eu não disse isso.
— Você não precisou. — Eu passei as mãos pelo cabelo e me apoiei na parede. — Se eu não tivesse feito o que eu fiz, ele teria voltado. O Henrique não te deixaria em paz, Bianca. Seria só questão de tempo até ele fazer algo pior e eu não estar por perto pra impedir. Então, eu sinto muito por ter prometido que não iria atrás dele quando no momento em que você me contou tudo, eu decidi que iria. — Olhei para ela. — Mas eu não sinto muito por ter mostrado pra ele que se aproximar de você de novo é um erro.
Bianca suspirou. Parte dela ainda parecia querer brigar, mas quando se aproximou de mim e tocou meu rosto, seus olhos eram gentis.
— Você agiu como um homem das cavernas — ela disse baixinho.
— Eu sei.
— E você não é assim.
Sorri de leve e a puxei pela cintura.
— Eu disse antes. Por você eu posso ser qualquer coisa.
Bia balançou a cabeça em censura, mas notei o sorriso no canto da sua boca.
— Só para deixar claro: eu nunca mais vou te tirar da cadeia de novo. Por isso, é melhor andar na linha.
— Vou me lembrar disso.
— E fica longe do Henrique. Eu não acho que ele vai levar essa coisa da briga adiante, mas eu também sei que ele não vai deixar barato. Ele tá com ódio de você.
Eu descansei a cabeça no seu ombro.
— Ele não consegue superar que você tá comigo e não com ele.
— Bom, não foi uma escolha muito difícil da minha parte.
— Não?
— Não. — Ela riu e fez carinho no meu cabelo quando me aconcheguei contra ela. — O Henrique pode ser rico, mas nós vamos achar um tesouro!
Ri e me levantei para olhar para ela.
— Então é tudo sobre a minha herança?
— Nossa herança. Parte das joias é minha.
— Sua interesseira...
— O seu sorriso bonito colaborou também, não vou negar — ela provocou. — E os olhos, os músculos...
— Se continuar com isso, eu vou ficar exibido que nem um pavão.
— Um pouco de exibicionismo faria bem pra você. — Ela ficou na ponta dos pés e me deu dois tapinhas na bochecha. — E um banho também. Tem sangue seco por toda parte. Eu cuido dos machucados quando você sair.
Eu a segurei pela mão antes que se afastasse.
— Você fica essa noite? — Era mais um pedido que uma pergunta.
Bia deu de ombros.
— Não vou trabalhar mesmo. Então, sim.
Gemi baixinho.
— É a primeira vez que o bar fica fechado desde que eu inaugurei.
— Não se preocupa. Eu fiz umas ligações no caminho até a delegacia. O Hélio me contou que tinha uma chave reserva e o número do Cauã, o filho do barbeiro que você contratou para cobrir os horários que a gente não estivesse lá. — Bia sorriu orgulhosa. — O Lambari deve estar a todo vapor nesse momento.
Tive que resistir à vontade de puxá-la para um abraço de novo. Eu amava aquela garota cada vez mais.
— Se continuar desse jeito, vou ser obrigado a te promover à sócia.
— Eu gosto dessa ideia.
Então ela entrou no meu quarto, jogou uma toalha limpa na minha direção e disse que eu tinha dois segundos para entrar debaixo do chuveiro.
Eu obedeci depressa.
Não era maluco de contrariar aquela garota mais nenhuma vez pelos próximos séculos.
_______________________❤️_________________
Oii, gente!!
Finalmente domingo chegou e com ele capítulo novo. Queria dizer que sinto muito pelo gancho enorme que deixei na semana passada, mas a verdade é que eu não sinto, não hahahaha. Adoro ver vocês maluquinhos da cabeça com esse livro (mas juro que amo vocês também <3)
Enfim, quero saber tudo que acharam!! A surra no Henrique foi tão satisfatória para vocês quanto foi pra mim?
Vejo vocês em breve, em uma certa mansão por aí... Tá na hora de intensificar à caça ao tesouro.
Beijos e até logo,
Ceci.
P.S: Estou tentando ficar mais ativa no meu insta essas férias, então quem não me segue lá, o @ é terraliteraria_ Adoro papear de livros e cultura pop com vocês. <3
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