sete
O movimento no bar sempre era tranquilo por volta da hora do almoço, ainda mais em dias de semana. O Hélio só vinha a partir das cinco e eu estava sozinho no bar, lidando tranquilo com dois velhinhos que compartilhavam uma garrafa de Coca gelada em uma das mesas e Roberto, o barbeiro que atendia no quarteirão de baixo e sempre vinha comer alguma coisa antes de voltar para o trabalho.
Liguei a TV que ficava instalada na parede atrás do balcão e ouvi as notícias sem ouvir de verdade, enquanto consertava a gaveta do caixa que tinha emperrado. Poucos minutos depois, ouvi alguém se aproximar.
- Oi, Samuel. Como vai?
Olhei para o homem baixinho sentado no banco do outro lado, exibindo um sorriso gentil sobre o bigode branco.
- Carlos! Eu tô bem, e o senhor? Hoje é seu dia de folga e decidiu fazer uma visita?
Peguei uma Fanta gelada e enchi um copo para ele. Sabia que era seu refrigerante preferido.
- Esse é só o primeiro dia de folga do resto da minha vida, filho - ele contou e ergueu o copo para brindar no ar. - Me aposentei.
Não consegui esconder a surpresa.
- Mesmo?
- Mesmo.
Eu soltei uma risada baixa e balancei a cabeça, me apoiando no balcão.
- Eu tô muito feliz pelo senhor, mas triste pelos alunos que não vão te conhecer.
Carlos sorriu por sobre o copo de Fanta.
- Você sempre foi muito gentil, Samuel.
Mas nunca tão gentil quanto ele. Carlos tinha sido meu professor de história a vida inteira, já que não havia muitos ali em Santa Cruz. Mas ele nunca tinha sido só meu professor. Ele foi meu amigo.
Quando a maioria dos docentes não dava muita atenção pra mim por acharem que meu cérebro era desproporcional ao meu tamanho, Carlos foi quebrando pouco a pouco as barreiras da minha timidez, me incentivando a aprender e buscar respostas para qualquer pergunta. Sua aula e a companhia constante de Pedro eram o que me fazia querer ir pra escola. Seu incentivo não me motivou só no colégio, mas na vida. Eu queria impressionar aquele senhorzinho. Queria ser o melhor aluno em todas as aulas. Queria ser algo mais, porque ele acreditava que eu podia.
- Como você tá, Samuel?
Eu abri a boca para repetir que tudo estava bem, mas o tom da sua voz e o olhar que me lançou me fez perceber que a pergunta não era casual dessa vez. Ele estava me encarando daquele jeito de quando eu fazia uma pergunta que no fundo já sabia a resposta.
Puxei o pano do meu ombro e comecei a limpar um balcão já reluzente.
- Levando. Ainda é estranho entrar em casa e não encontrar ela por lá. Eu... - Minha voz falhou. - Não sei se um dia vou me acostumar.
- Vai ficar mais fácil, filho. Você vai ver.
Assenti, por mais que não acreditasse muito naquilo.
Carlos tinha estado por perto durante o enterro da minha avó. Ele, Pedro, Juliana e muitos dos meus clientes mais antigos tinham ficado lá o tempo todo. Boa parte da cidade apareceu no funeral. Minha avó sempre foi querida por todos. Ela era boa demais. Sempre foi.
- Tudo aconteceu tão depressa - meu professor continuou falando. - A sua avó, o seu avô...
- O senhor sabe que eu não tinha contato com o meu avô.
- Mesmo assim, filho. Você perdeu gente demais para alguém de vinte e poucos anos.
Não disse nada. Aliás, o que tinha para dizer?
A menção ao meu avô me fez lembrar da outra noite, quando entrei naquela casa grande e abandonada pela segunda vez em anos. A primeira foi para acompanhar a equipe do hospital quando ligaram dizendo que ele tinha falecido. Eu era o único parente que restara, então toda a burocracia do enterro ficou nas minhas costas.
Quando soube da morte dele, não chorei nem me rendi a nenhuma baboseira sentimental parecida.
Eu fiquei com raiva. Aquele tipo de raiva que te consome por completo se você não colocar a cabeça no lugar.
Aquele homem tinha me ignorado por anos, se recusava a me ver e agiu como se eu não existisse. Tinha preferido viver sozinho a estar perto de mim.
E eu sabia por quê. Ele me culpava. Sempre me culpou.
Como se a minha própria culpa não fosse suficiente.
Ele morreu logo depois da minha avó, e eu estava tão entorpecido pela dor que aquela raiva foi a primeira coisa que me fez voltar um pouco aos eixos. Foi só quando o turbilhão passou que eu percebi que estava sozinho. Sozinho de verdade. Não que meu avô fosse alguma companhia para mim, mas pelo menos eu sabia que ele estava vivo, que tinha alguém naquele mundo fodido com quem eu compartilhava algum laço de sangue ou algo assim.
Agora não restava mais ninguém.
- Se precisar de alguma coisa, Samuel, qualquer coisa, você pode falar comigo, tudo bem? - Carlos disse, chamando minha atenção. - Você sabe disso, filho.
- Por que sempre foi tão bom comigo? - perguntei antes que pudesse conter as palavras. - Quer dizer, desde o primeiro dia no sétimo ano, o senhor me deu uma atenção especial. Por quê?
Carlos suspirou e pela primeira vez desde que tinha chegado, não olhou para mim. Ele encarou seu copo de Fanta agora quase no fim e respirou fundo antes de falar outra vez.
- Eu sempre tive bons instintos como professor. É algo que você adquire depois de quase quarenta anos em sala de aula. Você entra numa turma e de cara já mapeia quase todo mundo ali. Sabe quem é quem e no decorrer do ano convivendo com aqueles mesmos jovens diariamente, você acaba os conhecendo como a palma da sua mão. Mas não demorou nem dois minutos para eu reconhecer você, Samuel. - Ele abriu um sorriso triste. - Um garoto que parecia querer se esconder na última carteira da fileira colada à parede, sempre derrubando algo da mesa sem querer e ficando vermelho com os comentários maldosos de alguns colegas. Você pensava que não queria ser visto nem ouvido, mas no fundo desejava justamente o contrário. Sabe, um órfão sempre reconhece o outro.
Engoli em seco.
- O senhor...
- Perdi meus pais antes dos dez anos. Como você, se o que ouvi falar for verdade. Foi há muito tempo. Uma vida inteira já passou depois disso, mas as dúvidas e o vazio continuam aqui. E eu vi isso em você antes mesmo de saber sua história pela boca de outros professores. Naquele momento, soube que não queria só te fazer ter gosto por aprender e tornar o ambiente escolar menos torturante. Eu queria que se sentisse seguro para ser quem era.
Meu professor acabou o refrigerante, desceu do banco alto e se ajeitou no casaquinho de botão como se não tivesse acabado de me fazer passar pela maior crise existencial da história.
- Você é um ótimo rapaz, Samuel. - Ele sorriu e sussurrou: - E não conta para ninguém, mas sempre foi meu melhor aluno.
Eu queria dar a volta no balcão e abraçá-lo. Mas como ele devia ter os ossos frágeis por ser um senhor de idade e eu não sabia direito como ter contato físico com as pessoas, continuei plantado no lugar, suas palavras reverberando pelo meu corpo.
- Obrigado - foi tudo o que consegui dizer, mas não era nem de perto o suficiente. - Obrigado por tudo, professor.
- Não precisa agradecer. Eu não fiz nada. - O absurdo daquilo me fez rir. - Agora, quanto te devo pela Fanta?
- Me deve visitas mais frequentes - disparei. - Agora que se aposentou, vou te esperar uma vez por semana, no mínimo.
Carlos sorriu.
- Vou me esforçar. Você sabe, pretendo curtir meus netinhos enquanto posso.
Sorri e ele se despediu, caminhando devagar até a igreja.
Eu ainda estava com a cabeça cheia pela visita do professor quando voltei à minha tarefa de consertar a gaveta. Depois de muitos minutos tentando resolver a situação, soltei um grunhido quando ela voltou a emperrar.
- Meu Deus, é um traço da sua personalidade ficar de cara feia vinte e quatro horas por dia?
Soltei a gaveta com um tranco e olhei por sobre o balcão.
- Você me persegue? - perguntei genuinamente, encarando Bianca do outro lado.
Ela abriu um sorriso amplo e apoiou o queixo na palma da mão, se inclinando tanto que o cabelo cor-de-rosa roçou na bancada.
- Admite, você morre de saudade de mim quando não tô por perto.
Bufei e larguei de vez a tarefa com a gaveta. Ela que continuasse emperrada.
- Na verdade, eu acho que eu sorria mais antes de conhecer você.
- Samuel, mentir para si mesmo faz mal...
Eu balancei a cabeça e comecei a tirar os doces do compartimento do balcão para limpar o lugar.
Ele tinha sido limpo há dois dias, mas eu precisava ocupar as mãos - e a mente -enquanto ela estivesse ali.
- Decidiu começar o trabalho mais cedo hoje? - perguntei, me concentrando na tarefa.
- De jeito nenhum. Na verdade, vim trazer isso para você.
Ouvi um baque e me endireitei para ver a travessa gigante coberta por papel alumínio que ela tinha colocado sobre o balcão.
- O que é isso?
- Não é óbvio?
Ela levantou uma parte do papel e um cheiro delicioso subiu pelo ar. Um cheiro que eu conhecia bem.
Torta de frango.
- Você fez para mim? - perguntei, minha voz saindo mais patética do que eu esperava.
- Minha mãe ajudou. Mas, é. É pra você.
Eu cheguei mais perto da travessa.
- Eu... - As palavras ficaram presas na garganta. - É muita torta. E eu moro sozinho.
Bianca soltou uma risada que preencheu os quatro cantos do bar.
- Não vai nem agradecer?
- Obrigado. - Senti o calor subir pelo meu pescoço. - Você não precisava se incomodar. Mas obrigado.
- Não foi nada. Era o mínimo que eu podia fazer depois de ter... Você sabe, quase quebrado o seu pescoço.
Abri um meio sorriso. Ainda não tinha superado o fato daquela maluca ter caído de uma árvore bem em cima de mim. Tudo por causa de um bocado de goiabas.
- Se não fosse pelo sotaque, eu diria que você é parente do Chico Bento - brinquei.
Ela me olhou indignada.
- O único parente do Chico Bento aqui é você, com esse jeitão caipira.
- Como é que...
- E sobre o tamanho da torta -, ela continuou falando, antes que eu pudesse rebater aquela sua frasezinha prepotente de garota da cidade grande - não se preocupa. Você não vai precisar comer sozinho.
Então ela me deu espaço para ver o grupo que se aproximava.
- Ei, Samuca! Fiquei sabendo que hoje o almoço é aqui - Pedro falou enquanto entrava no bar de braços dados com Juliana. - Vou comer rapidinho porque preciso voltar para o trabalho, mas você bem que podia embrulhar um pouco pra viagem...
Atrás deles, uma garota de cabelo cacheado se aproximou, meio tímida.
- Essa aqui é a minha prima, Kira - Bianca a apresentou para os meus amigos. - Eu também chamei ela.
- Oi, Kira - cumprimentei, e ela sorriu para mim.
- Ah, a gente já conhece sua prima! - Juliana disse com um sorriso. - Ela estava alguns anos atrás da gente na escola. E aí, Kira? Planos de ir pra faculdade?
- Se os Santos do vestibular intercederem por mim, quem sabe?
As duas se entrosaram em uma conversa e Pedro já foi dando a volta no balcão para pegar pratos e talheres nos armários.
Havia tanto som e conversa de repente que levei um segundo para puxar Bianca de lado.
- Desde quando você conversa com o Pedro e com a Juliana?
Ela deu de ombros.
- Desde o meu primeiro dia aqui, ué. Mas peguei o número da Ju ontem à noite. Lembra? Eles vieram comer peixe.
- E então você convidou todo mundo para um almoço...
- Algum problema nisso?
- Nenhum. Eu só não esperava.
Bianca sorriu e jogou o cabelo por sobre o ombro. Naquele momento, notei mais uma vez a tatuagem no antebraço dela. Uma mistura de planetas, estrelas e cometas descendo em espiral até o pulso.
- Eu sou cheia de surpresas. Você ainda não percebeu?
- Nessas surpresas estão incluídas escaladas mal sucedidas em árvores?
Bianca revirou os olhos.
- Você não vai esquecer isso nunca, né?
- Improvável. Como tá seu rosto?
Ela passou um dedo pelo corte em cicatrização.
- Melhor. Obrigada por ter cuidado dele. Eu sinceramente teria só jogado água e seguido com a vida.
- Poderia infeccionar. - Olhei para ela, curioso. - Alguém já te disse que você não bate bem?
- Uma pessoa diferente a cada semana.
Ela fez menção de se afastar.
- Bianca...
Eu a teria pegado gentilmente pelo pulso, mas me impedi no meio do gesto.
Eu já tinha percebido que ela não gostava de contato físico. Do meu contato físico, mais especificamente. Não que eu ligasse. Mas me incomodava um pouco o fato de ela parecer ter medo de mim às vezes.
- Por que fez isso?
Minha voz saiu rouca e intensa demais. Limpei a garganta.
- Isso o quê?
- A torta, trazer todo mundo... Por quê?
Ela encolheu os ombros. Eu esperava uma gracinha qualquer, mas as palavras que saíram da sua boca pareceram verdadeiras demais.
- Porque você grita melancolia há dez quilômetros de distância, Samuel - ela disse. - Porque você foi gentil comigo mesmo mal me conhecendo e eu queria fazer algo gentil em troca. E, pra sua sorte, torta de frango é um dos três pratos que eu sou expert em fazer. Junto com miojo e ovo frito.
Eu não consegui dizer nada.
Fiquei ali, parado como um idiota de dois metros com uma mente tão vazia que fazia eco.
- Anda, vai lá comer - Bianca disse, indicando os outros com a cabeça. - Pode me agradecer depois de encher a pança.
- Tudo bem.
- E não se engane. - Ela estreitou os olhos para mim. - Eu ainda detesto você.
- Nunca pensei que não detestava.
- Só não envenenei a torta porque mais gente ia comer.
- E quais seriam seus planos para depois do meu assassinato?
Ela franziu o cenho, pensando.
- Assumir o bar e pintar as paredes de rosa?
- Eu voltaria dos mortos pra puxar seu pé, juro por Deus.
- Que vingativo da sua parte...
Ela piscou para mim e foi para junto dos outros, e eu não tive outra escolha a não ser segui-la.
Pelo jeito, aquilo era algo que eu fazia muito ultimamente.
_____________________❤️___________________
https://youtu.be/nTeZdWdXW4E
Oii, gente!! Mais um capítulo do livro e é sempre um prazer passar parte do meu domingo com vocês!
O capítulo de hoje foi mais calminho em comparação com o anterior, mas eu precisava dar uma passeada pelos pensamentos do Samuel e revelar pouco a pouco ele para vocês. Gostaram? A Bianca, como sempre, veio até fazer uma participação especial hahaha
Vejo vocês na semana que vem com um novo capítulo! (preparados para um pouco de ação e conflitos?)
Beijos e até mais,
Ceci.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top