seis


estava anoitecendo quando comecei a perambular ao redor da mansão dos Dutra. Eu tinha cerca de uma hora até precisar ir para o trabalho, então era melhor descobrir um jeito de invadir logo.

Eu estava vestindo um moletom com capuz para esconder meu cabelo caso alguém passasse por perto. O que eu menos precisava era que a fofoca sobre uma maluca de cabelo rosa rodeando uma mansão abandonada chegasse aos ouvidos do meu chefe, mesmo que nem uma alma viva tivesse passado por ali desde que eu tinha chegado.

Havia uma casinha ao lado do terreno da propriedade, mas as luzes estavam apagadas e pelo jeito não tinha ninguém em casa. Do outro lado da rua, apenas um terreno baldio e um prédio de dois andares na esquina mais distante ocupavam aquele lado do quarteirão. A ausência de vizinhos era benéfica para mim, e eu tinha a impressão de que todas as pessoas que poderiam cortar caminho por aquela rua até a praça preferiam dar a volta a passar em frente aquele mausoléu escuro com ares de mal assombrado.

Sorte a minha.

Me aproximei do portão e analisei as grades. Elas eram altas demais e impossíveis de escalar, sem nem um único apoio onde eu pudesse alçar o corpo para cima. Andei ao lado dos muros de pedra e liguei a lanterna do celular, procurando por fissuras, pontos de apoio e qualquer outra coisa que me permitisse invadir a propriedade.

Isso é errado, uma vozinha irritante - que eu acreditava pertencer à minha consciência - sussurrou dos confins da minha mente. Boas pessoas não invadem a casa dos outros.

Invadem quando o que está em jogo são joias da família, rebati, passando a mão pelo muro.

Você não sabe nada sobre as joias, minha consciência continuou.

E você não sabe a hora de calar a boca.

Apoiei a testa no muro e fechei os olhos.

Talvez eu estivesse ficando maluca.

Minha mãe e eu achamos duas outras goteiras em cômodos diferentes da casa naquela manhã, o que significava que estávamos ficando sem baldes. O lugar estava cheio de infiltrações e pela primeira vez temi chuvas fortes por não fazer ideia de como a casa aguentaria.

A gente não tinha para quem pedir ajuda. Meu tio, pai da Kira, passava por tantas dificuldades financeiras quanto nós. Nos últimos tempos, vinha sendo exaustivo nadar contra a maré.

Eu precisava ajudar minha mãe. Precisava me ajudar. E as joias eram a minha melhor chance de ter dinheiro depressa.

Ainda pretendia me aproximar de Samuel para descobrir mais sobre a casa e achar um jeito de ter acesso a ela, mas enquanto isso não acontecia, precisava de opções. Precisava achar um jeito de entrar. Se eu ao menos...

Franzi as sobrancelhas quando meu olhar foi atraído para a árvore que ficava na calçada, bem perto do portão. Eu não tinha considerado a ideia antes, mas alguns dos galhos quase tocavam o muro de pedra.

Guardei o celular e me aproximei, analisando a árvore. Era uma goiabeira, com um tronco inclinado e várias ramificações. Passei uma mão pelo tronco. Era tão liso que chegava a ser escorregadio, mas não impossível de escalar.

Não acredito que vou mesmo fazer isso.

Mas eu já estava fazendo.

Joguei meu capuz para trás e amarrei o cabelo com um elástico que sempre levava no pulso. Segurei o galho mais baixo e tentei içar meu corpo para cima.

Meu pé escorregou do tronco quase imediatamente, me fazendo cair de bunda no chão.

Soprei uma mecha do cabelo para longe dos olhos.

Não é hoje que vou desistir de primeira.

Me levantei de novo e dessa vez abracei o tronco da árvore como uma preguiça gigante. Devagarzinho e pingando suor, fui subindo até conseguir sentar na primeira bifurcação.

- Isso!

Minha animação foi tão grande que quase caí pra trás.

Fiquei de pé, me equilibrando nos galhos mais altos. As folhas e frutas da goiabeira me escondiam lá em cima, e subi mais um pouco até alcançar o exato galho que se estendia até o muro da casa.

Eu não tinha medo de altura, mas uma vez ali em cima, tentei me impedir de olhar para baixo.

Engoli em seco e me abaixei. O galho era grosso, mas eu não fazia ideia se seria forte o suficiente para me aguentar.

Jesus, essa é uma boa hora para olhar por mim.

Fui engatinhando pela extensão do galho, o sentindo dobrar e balançar sob meu peso.

Merda, merda, merda, merda...

Eu estava quase lá quando o barulho de um carro se aproximou pela rua. No segundo seguinte, a luz dos faróis me acertaram bem na cara.

Droga!

Olhei por entre as folhas e percebi que, seja lá quem fosse, não tinha me visto pela altura da árvore e a escuridão da noite. O motorista só precisava passar reto e...

O carro parou em frente à mansão.

Ouvi a porta bater e alguém saiu, indo até a entrada da casa e parando diante dos portões.

Bem. Debaixo. De mim.

E não era qualquer pessoa.

Era o Samuel.

Por que, Jesus? Qual pecado eu cometi para o Senhor está me castigando desse jeito?

Segurei com mais força e fechei os olhos, como se pudesse negar a realidade ao meu redor se não olhasse direto para ela. Eu só precisava aguentar firme até Samuel dar o fora, e então...

Crack.

Meu coração parou. Juro que parou.

O galho pendeu, e quando olhei por sobre o ombro vi o exato momento em que se partiu de vez e eu fui jogada de cabeça para baixo.

- AHHHHHH!

Eu estava em queda livre, com folhas, galhos e goiabas batendo no meu rosto.

A última coisa que me lembro desse momento horrível foi quando meu berro chamou a atenção do Samuel, o fazendo olhar para cima assustado.

Isso foi mais ou menos meio segundo antes de eu cair em cima dele.

Nós dois fomos para o chão, a calçada de concreto esfolando meus joelhos. Minha queda foi amortecida por mais de cem quilos de músculos e pele macia, pertencentes a alguém que estava agora estatelado no chão como uma lagartixa morta -tá, não morta, mas definitivamente abatida.

- Que porra é essa?!

Massageei a parte de trás da cabeça e tentei me situar. Meus ouvidos estavam zunindo e eu sentia meu corpo inteiro arder.

Foi aí que percebi que estava jogada por cima do corpo do Samuel, meu rosto a centímetros do dele.

Soltei um grito e pulei pra trás, me afastando tão rápido quanto o diabo foge da Cruz.

Samuel se sentou no chão e me olhou com uma mistura de ódio mortal e perplexidade.

- Que merda você estava fazendo?!

As palavras não vieram, por mais que eu me esforçasse para encontrá-las.

Não era como se eu pudesse dizer: Então, eu estava tentando invadir sua casa e encontrar algumas joias preciosas. O de sempre.

- Não é óbvio? - falei depois do que pareceu uma eternidade, fingindo estar tão aborrecida quanto ele. - Eu estava tentando pegar goiabas!

Como que para ilustrar meu ponto, uma fruta despencou de um galho e caiu bem entre nós.

- Acho que consegui uma! - E a peguei do chão com um sorriso vitorioso.

- Você é doida! - Ele exclamou, puto da vida. Samuel se levantou e tentou limpar a camisa. - Você podia ter quebrado o pescoço!

- Então ainda bem que você apareceu bem na hora de amortecer minha queda.

- Podia ter quebrado o meu pescoço!

- Mas não quebrei. - Dei uma olhada mais de perto na fruta que segurava. - Você acha que tá bichada? Se estiver, todo o meu esforço vai ter sido em vão...

Samuel jogou as mãos para o alto, como se desistisse de tentar me entender.

- Você não podia simplesmente comprar goiabas na feira?

- Podia, mas eu estava passando quando vi essas e fiquei morrendo de vontade de pegar. Você não tem uma fruta preferida?

- Isso não importa!

- É claro que importa. Todo mundo te...

- Espera, Bianca. Fica calada só um minutinho.

Prendi a respiração quando ele veio até mim.

Meu instinto foi recuar até bater no tronco da árvore.

- Calma.

Ele estava perto de mais e eu prestes a empurrá-lo e sair dali quando seus dedos tocaram a maçã do meu rosto.

Quando se afastou, vi o sangue.

Só então senti a ardência na bochecha. Era como se todo o resto que meu corpo estivesse sentindo tivesse sido deixado de lado pela adrenalina e a necessidade urgente de mentir e encontrar uma saída.

Fiz menção de tocar meu rosto, mas Samuel me impediu.

- Não, só vai sujar mais. O corte não é profundo, mas é grande. Vem, eu tenho anticéptico e um pano limpo no carro.

Antes de se afastar, vi ainda melhor seus olhos de cores diferentes, que analisavam meu machucado com tanta precisão e cuidado que fez um calafrio subir pela minha espinha.

Eu já tinha reparado naquilo antes, mas nunca tão de perto.

Uma íris era castanha, enquanto a outra era quase toda verde, salvo por uma faixa da mesma cor do outro olho.

Eu nunca tinha conhecido alguém com heterocromia antes. Era lindo na mesma medida que te dava um nó na cabeça quando reparava pela primeira vez.

Samuel me pegou pela mão e me levou até o carro. Ele abriu a porta do passageiro e me fez sentar no banco enquanto revirava o porta-luvas.

- Não precisa disso, é só um cortezinho de nada - falei, mas uma gota de sangue pingou na minha blusa. - Eu vivia me arranhando e esfolando quando era criança.

- Aposto que sim. Você parece ter uma incapacidade natural de ficar quieta.

- Olha aqui...

Mas não pude rebater, porque naquele instante ele pegou um pano cuidadosamente dobrado no porta-luvas e um vidrinho de antisséptico.

- Pode arder - ele avisou, já pingando o líquido no pano.

- Pelo menos não é álcool. Ou Merthiolate.

Pensei ter visto um sorriso no seu rosto, mas desapareceu tão rápido que não tive certeza. Ele acendeu a luz do carro e se inclinou para mim. Seus ombros e corpo enorme praticamente bloqueavam todo espaço da porta.

Senti o pano úmido sobre o machucado e me encolhi.

- Já vai passar.

Ele soprou para aliviar a ardência e continuou limpando meu rosto.

- Que tipo de pessoa tem antisséptico no carro? - perguntei para me distrair das batidas aceleradas do meu coração.

- Era o tipo de coisa que a minha avó estocava. Se abrir o porta-luvas, vai achar uns cinco tipos de remédio, pomadas e sei lá mais o quê.

- Avós e sua hipocondria...

Samuel abriu um sorriso triste.

- Ela era bem assim mesmo.

Era?

Eu sabia que ele tinha perdido a avó materna quando criança - sua herança permitiu que ele abrisse o bar - mas pelo jeito tinha conhecido melhor a outra. Ela também tinha falecido?

Engoli em seco.

Seria possível que ele não tivesse ninguém?

Fiquei tonta quando Samuel se afastou de repente.

- Já está melhor e parou de sangrar. Não vai nem deixar marca.

- Que sorte a minha. Odiaria estragar meu rosto bonito.

Samuel revirou os olhos.

- Então essa é a casa do seu avô? - perguntei, me fingindo de desentendida.

- É. - Ele olhou por sobre o ombro. - Mas não tem mais ninguém ali dentro.

Ninguém além dos fantasmas, você quer dizer...

- Eu vim pegar o micro-ondas daqui. O do bar deu pau e eu não pretendo comprar outro por enquanto, então...

- Então você decidiu saquear - brinquei.

Samuel coçou a nuca.

- Tecnicamente, tudo isso aí é meu.

- Entendi, garoto rico. - Soltei uma risada e saí do carro.

- Eu não sou rico.

- Vai ser em breve se vender essa montanha de tijolos.

Samuel ficou em silêncio e murmurou:

- Quem sabe?

Aquela não era a resposta que eu esperava.

Pretendia descobrir se ele realmente tinha planos de vender a casa, porque se isso acontecesse, eu podia dar adeus às minhas chances já escassas de encontrar as joias. Seria muito mais difícil se o lugar tivesse um novo dono, ou se algum ricaço decidisse demolir tudo e erguer um prédio no lugar.

Só de pensar naquilo eu já me sentia à beira de um ataque.

- Espera aqui enquanto eu pego o micro-ondas lá dentro - Samuel pediu. - Depois eu te levo pra casa para você trocar de roupa e a gente vai para o trabalho.

- O que tem de errado com as minhas roupas?

- Parece que você caiu de uma árvore com elas. - Ele fez uma pausa e ergueu as sobrancelhas em uma expressão fingida. - Espera, foi isso mesmo que aconteceu!

Eu balancei a cabeça para ele.

- Você não é engraçado.

- Então por que você tá sorrindo?

Fechei a cara, mas já era tarde demais. Ele já estava com aquele olhar arrogante no rosto.

Fiquei parada junto ao carro, mas meus olhos não desviaram dele quando o vi tirar um molho de chaves do bolso da calça jeans - o mesmo molho que eu já o tinha visto usar para trancar o bar - e escolher uma chave pequena e acobreada para abrir o portão.

- Já volto.

Eu o vi andar pelo caminho sinuoso e escuro que levava até a casa. Meu cérebro já fervilhava com ideias.

Olhei para a árvore parcialmente destruída pela minha tentativa de usá-la como ponte e para o portão aberto. Pensei em seguir Samuel e descobrir mais sobre a casa, mas ele tinha me pedido para esperar...

Não importava.

Eu já sabia como invadir. Só precisava dar um jeito de surrupiar a chave sem que ninguém percebesse.

Quando Samuel voltou com um micro-ondas nos braços, eu abri a porta de trás para ele colocar o aparelho no banco.

- Logo, logo você vai pegar todos os eletrodomésticos da casa do seu avô - comentei.

- Com certeza. Pelo que eu vi, todos estão ótimos.

Eu entrei com ele no carro e mostrei a quantidade de goiabas que tinha conseguido pegar enquanto ele estava lá dentro.

- Acho que valeu a pena quase quebrar um pescoço por essas.

Samuel balançou a cabeça em indignação, mas havia um sorrisinho minúsculo ali.

- Ah, qual é, você não tem uma comida preferida?

- Tenho. Mas eu não acho que chegaria a situações tão ridículas assim por elas.

- Ridículas? - Eu joguei uma goiaba nele.

- Ai!

Ele jogou a goiaba em mim de volta e falou:

- Torta de frango.

- Torta de frango?

- É. Minha comida preferida. Bem básico e nada saudável, né?

- E quem liga para o que é saudável?

- Minha avó fazia uma excelente. Eu tentei reproduzir a receita um tempo atrás, mas não ficou tão bom.

Mordi o lábio, sem jeito.

- Às vezes tinha algum truque especial que ela nunca te contou.

- É, pode ser. - Samuel passou a mão pelo cabelo castanho espesso e virou numa esquina. Ele riu sozinho. - Se eu perguntasse isso para ela, tenho certeza que diria que o ingrediente especial era amor.

Eu encolhi os ombros e sorri, sem desviar o olhar dele.

- Talvez fosse mesmo.

Samuel assentiu, seus olhos coloridos pareceram ficar mais escuros de repente.

- Samuel?

- Oi?

- Valeu por ter cuidado do corte no meu rosto. E por não ter me matado quando caí do céu bem em cima de você.

Ele pareceu se esforçar para não rir.

- Depois de trabalhar com o público por tanto tempo, você acaba adquirindo uma tolerância maior para assassinatos.

- É mesmo?

- É. Mas você me faz pensar todo dia se não é hora de eu usar meu réu primário, Bianca.

Eu sorri amplamente.

- É emocionante o modo como eu tenho esse efeito nas pessoas.

E, finalmente, ele riu.

Me recostei no banco e senti algo em mim vacilar.

Mas só por um momento.

No seu bolso, eu podia ver o volume das chaves que eu precisava roubar.

______________________❤️__________________

Dedicado à BeatrizIrlndes1

Oii, gente!!! Como vocês estão??

Outro capítulo do livro no ar!! Esse eu escrevi em frenesi tão absurdo que peço perdão se a escrita não tiver ficado lá essas coisas kkkkkkk Eu só estava me divertindo horrores! O que vocês acharam? Tiveram alguma partezinha preferida?

Hoje o livro bateu 1k de leituras e eu só tenho a agradecer a vocês por isso!! Essa nossa comunidade é uma das coisas que mais tenho orgulho <3 Se quiserem me seguir mais de perto e conversar sobre qualquer coisa, meu insta terraliteraria_ está de portas abertas para ficarmos mais próximos!

Um beijo e até o próximo cap (já tá escrito e é um xodózinho meu)!

Ceci.

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