quatorze
No sábado de manhã, acordei antes do sol e me ajeitei depressa no quartinho do andar de cima.
Desenterrei minha calça jeans de cintura alta do fundo do guarda-roupa, junto com uma camiseta cor-de-rosa e meu único par de botas de cano alto. Eu tinha feito algumas perguntas para Kira no dia anterior e descobri que a região chamada Cachoeira Branca tinha esse nome - adivinhem - por causa de uma cachoeira linda que ficava bem perto dali e que muitas pessoas visitavam para nadar nos dias quentes.
Eu amava nadar e não fazia isso desde que o dinheiro ficou tão pouco em casa que não conseguíamos pagar a taxa de visitante do clube universitário da UFMG que eu costumava frequentar. Eu meio que esperava logo me tornar uma estudante da faculdade e pagar o valor simbólico por semestre, mas, claro, isso nunca aconteceu.
Então vesti meu biquíni velho por debaixo da roupa - satisfeita por ele ainda servir - e me aprontei, prendendo o cabelo e descendo as escadas de dois em dois degraus.
- Onde você pensa que vai? - minha mãe perguntou quando eu já estava de saída. O café da manhã mal tinha saído do forno.
- Preciso resolver umas coisas.
- Vestida desse jeito?
Meu queixo caiu e olhei para mim mesma.
- O que tem de errado com a minha roupa?
- Nada. Tá bonita. Mas pra quê botas?
- É que eu vou visitar um lugar - revelei relutante enquanto pegava minha bolsa pendurada no cabide da sala. - Com o Samuel.
A segunda parte da frase saiu tão baixa que eu duvidei que ela tinha escutado. Mas estava errada.
- Com o Samuel? Eu ouvi direito?
Revirei os olhos e roubei uns biscoitos do tabuleiro em cima da mesa.
- É. O quê é que tem?
- Você vem passando muito tempo com ele ultimamente.
Eu estava prestes a dizer que não tinha escolha quanto aquilo, mas isso faria minha mãe perguntar porque eu insistia em sair com ele fora do horário de trabalho então, o que por sua vez levaria a perguntas que eu não podia responder, pelo menos por enquanto.
- Não vou conversar sobre isso com a senhora - disse, sem conseguir controlar o calor nas minhas bochechas.
- Eu sabia!
- Mãe, não começa.
- Ah, Bianca... Eu sabia que você não resistiria! O moço é um charme, com aqueles braços musculosos, o sorriso lindo e os olhos mais exóticos que eu já vi. Além de...
Praticamente saí correndo da cozinha, tão envergonhada que pensei que fosse vomitar no tapete.
Lá estava minha mãe, enumerando características do Samuel que eu já tinha reparado muito bem antes, obrigada, usando aquela voz de quem tinha certeza que havia rolado alguma coisa.
Mas não tinha rolado nada. E nem rolaria, pelo amor de Deus! Eu não pensava nos músculos do Samuel, nem naquele sorriso ridículo de tão perfeito e os olhos que...
- Leva mais biscoitos, Bianca! - minha mãe gritou da cozinha.
- Tchau, mãe! Se precisar de algo, me liga.
Bati a porta e fugi como se estivesse sendo perseguida por cães selvagens.
Parei no meio do caminho até o portão quando notei o carro estacionado do lado de fora.
- Há quanto tempo você tá aí? - perguntei ao dono dos músculos em questão enquanto abria a porta do passageiro e me jogava no banco.
- Uns cinco minutos. Já ia te mandar mensagem para ver se estava pronta. - Samuel girou as chaves do carro e partiu pela ruazinha de pedra. - Olha só, não é que você colocou as botas mesmo?
- Gostou? - Ergui os pés para mostrar pra ele. - Tô muito fazendeira, né?
- Ainda faltou o chapéu de cowboy. E você não trouxe o berrante.
- Fica quieto - falei, tentando esconder o sorriso.
Samuel dirigiu pela cidade que acordava aos poucos, passando pela lagoa e subindo algumas quadras até as casas ficarem escassas e o cemitério da cidade, com seus muros de um azul clarinho, ser a única construção visível. O asfalto foi substituído por uma estrada de terra poeirenta e Samuel ligou o rádio.
Um som horrendo, de dar pavor mesmo, preencheu a cabine enquanto ele desviava de buracos na estrada cercada por montes e pastos verdes até perder de vista.
- O que é isso? - perguntei sem disfarçar a careta, fazendo um gesto para o rádio.
Samuel franziu as sobrancelhas e pulou algumas músicas, que estavam todas contidas no pen-drive conectado ao som.
- Sérgio Reis, Chitãozinho e Xoróró, Milionário e José Rico... - Samuel me lançou um olhar de estranhamento. - Você sabe, música caipira.
Balancei a cabeça e desconectei o pen-drive, dando alguns cliques na tela do meu celular até outra música transbordar pelo alto-falante.
- Que merda é essa? - ele perguntou, com uma expressão de nojo ainda maior que a minha segundos antes.
- Taylor Swift. Álbum Debut. - Eu sorri satisfeita conforme Our Song tocava. Coloquei minhas botas sobre o porta-luvas e fechei os olhos com um sorriso feliz. - Você sabe, música caipira.
Samuel tirou meus pés de cima do painel e ligou o rádio.
- Meu carro, minhas regras. A gente não vai escutar nenhuma música estrangeira.
Eu levei uma mão ao peito, ofendida. Como se Taylor Swift pudesse ser reduzida a música estrangeira...
- Bom, eu não vou ouvir um monte de baboseira sobre boiadeiros, gado e mulheres vis que destroem o coração de pobres coitados que de pobres não têm nada!
Samuel e eu discutimos por uns dois quilômetros até que, na estação de rádio aleatória que ele sintonizou, uma música da Marília Mendonça começou a tocar.
A gente calou a boca no mesmo instante.
- Essa é boa - ele disse, batucando os dedos no volante.
- Muito boa - concordei, cantando baixinho e deixando pra pregar minha palavra de Taylor Swift em outro momento.
Olhei pela janela, admirando a paisagem e pensando sobre como minha avó tinha percorrido aquele mesmo caminho anos antes, embora eu não soubesse muito bem o por quê. Tão pouco nos separava, e ao mesmo tempo tanta coisa.
- Não vai ser meio estranho a gente chegar assim de surpresa? - perguntei inquieta, observando Samuel dirigir.
- Acho que não. Eu já devia ter visitado essas pessoas antes, de todo jeito. - Ele massageou a nuca. - Também já devia ter colocado todas essas terras à venda.
- Bom, talvez não todas. - Eu dei de ombros quando ele me olhou estranho. - Muita gente costuma sonhar com um pedacinho de chão. Algum lugar em que você pode ir pra fugir do barulho da cidade de vez em quando. Você não pensa nisso?
Ele franziu as sobrancelhas.
- Não. Sei lá. Santa Cruz não é tão barulhenta para mim. Acho que lá já é calmo e isolado o suficiente.
- Mas a paisagem é perfeita - disse, me permitindo sonhar só um instante enquanto olhava pela janela. - Eu não acho que me sentiria sozinha num lugar assim. E imagina como o céu deve ser lindo à noite, sem nenhuma luz artificial para atrapalhar!
- Deve ser lindo, mesmo.
Quando ele disse aquilo, estava olhando para mim.
Sorri e me aconcheguei no banco do passageiro.
- Olhos na estrada.
Samuel virou o rosto. Eu observei as linhas duras do seu maxilar e das maçãs do rosto, o olho castanho claro virado pra mim. Senti meus olhos pesados e bocejei.
- Você não vai conseguir dormir com essa estrada cheia de buracos - ele falou de repente.
- Eu não vou dormir. Vou só descansar os olhos.
Vi a sombra de um sorriso nos seus lábios antes de fechar as pálpebras.
- Vê se não ronca.
- Eu já disse que não vou dormir, seu chato.
Eu dormi.
Até tentei evitar, porque, sinceramente, que tipo de mulher em sã consciência se deixa adormecer estando em um carro em movimento com um homem no meio do nada?
Mas era o Samuel. E talvez fosse idiotice minha confiar tão cegamente assim em uma pessoa que eu só conhecia há um mês, mas quando eu olhava para ele eu sabia, de um jeito esquisito e inexplicável, que nunca me faria mal.
Mas essa certeza não me impediu de acordar um tanto sobressaltada minutos depois.
- Bianca? - Murmurei algo sem sentido quando alguém me balançou devagar pelo ombro. - Bianca!
Despertei de uma vez, dando um pulo no banco e acertando a cabeça com toda força no nariz de alguém.
- Ai!
Samuel se afastou com as mãos no rosto.
- Meu Deus, você é uma assassina até dormindo! - ele grunhiu, abrindo a porta do carro e cambaleando pra fora.
- Perdão! Foi sem querer. - Eu saí também e fui até ele. - Me deixa ver.
Fui até Samuel e segurei seus pulsos, tentando afastar suas mãos do rosto.
- Ah, não machucou nada - falei enquanto analisava o estrago. - Não tá nem saindo sangue.
- Você vai acabar me matando - ele disse, esfregando com cuidado o nariz dolorido. - Vou ter que começar a andar por aí de armadura.
- Não tenho certeza se uma armadura seria o suficiente para me impedir de fazer estrago.
- Ah, então você quer me matar?
- Não por enquanto. Primeiro, preciso que você coloque em um testamento que todos os seus bens vão passar para mim depois da sua morte. Só assim eu vou tentar mesmo te empurrar de um lance de escadas.
Samuel me olhou como se eu fosse maluca.
- É brincadeira!
Ele balançou a cabeça, resignado e incrédulo ao mesmo tempo.
- Vou te jogar num hospício um dia desses, sabia?
Dispensei o comentário com um aceno desdenhoso e olhei ao redor. Samuel tinha estacionado o carro em um ponto onde o mato estava mais baixo, perto de uma porteira feita de tábuas velhas.
- A casa fica logo ali na frente - ele disse. - Mas a porteira tá com cadeado. A gente vai ter que pular.
- Isso não é invasão?
Samuel plantou as mãos no quadril em um gesto brusco.
- Ah, então agora você quer falar de invasão?
Revirei os olhos e passei por ele, agradecendo pelas minhas botas me protegerem de todo aquele matagal.
Quando cheguei até a porteira, parei, incerta do que fazer.
- Para quem planejava entrar na casa do meu avô pulando um muro, pensei que uma porteira não ia te parar.
Observei Samuel colocar o pé sobre a tábua mais baixa e içar o corpo para cima.
- Cuidado para não partir a madeira - provoquei com um sorriso afetado.
- É melhor rezar para isso não acontecer mesmo, espertinha, porque se eu cair daqui, vai ser bem em cima de você, e aí garanto que o estrago vai ser maior do que quando você despencou de uma árvore em cima de mim.
Como eu não queria cem quilos de cara me esmagando, mantive a distância. Alguns segundos depois, Samuel pulou do outro lado levantando uma nuvem de poeira. Eu respirei fundo, estalei o pescoço e comecei a subir. Quando cheguei ao topo, ele estendeu o braço e me ofereceu a mão. Eu aceitei, e algo esquisito aconteceu quando saltei e ele precisou me estabilizar segurando minha cintura.
- Tudo bem? - Samuel perguntou, os olhos claros como nunca com toda aquela luz.
- Sim. Obrigada.
Desviei o olhar depressa e começamos a andar pela estradinha. Alguns minutos depois, avistei uma casa amarela à distância e ouvi latidos de cachorros.
- Fica atrás de mim - Samuel disse com uma voz que não me deu espaço para questionamentos.
Dois cachorros pretos enormes vieram correndo na nossa direção, e atrás deles um homem usando um chapéu de palha nos encarava sem se aproximar.
- Quem são vocês? - ele gritou de longe.
Samuel ergueu as palmas das mãos vazias para ele.
- Eu sou o Samuel. Neto do Jorge Dutra, antigo dono das terras. A gente só veio conversar. A porteira estava trancada lá atrás.
- Não sei se admitir que invadimos o lugar seja uma boa ideia - sussurrei ainda atrás dele. - Por mais que as terras sejam tecnicamente suas.
- Não é melhor contar a verdade do que inventar um monte de mentiras?
- Bom, pela minha experiência...
Mas fui interrompida quando os cachorros se aproximaram mais, influenciados pelo dono que também veio na nossa direção.
Segurei a camisa de Samuel com força e ele estendeu o braço para que eu não saísse de trás dele, mas os cães - que pareciam uma mistura de Rottweiler com alguma outra raça de cachorros gigantes - apenas farejaram o chão ao nosso redor e balançaram os rabos quando Samuel começou a conversar com eles.
- Eles não são tão assustadores - disse, estendendo o braço e coçando um deles atrás da orelha. - Viu? São bonzinhos.
- Eles devem ter mais medo de você do que você deles - disse, ainda desconfiada, mas pelo menos parei de me esconder.
Naquele momento, o homem que eu tinha visto só à distância chegou perto o suficiente para que eu pudesse analisá-lo melhor. Era um rapaz, devia ter mais ou menos a idade do Samuel e tinha a pele curtida pelo sol. Os cabelos loiros escapavam por debaixo do chapéu de aba larga e a camisa de botões estava remendada em diversos pontos.
- Então, o senhor que é o dono da fazenda agora - foi a primeira coisa que ele disse, tirando o chapéu e o torcendo de maneira nervosa.
- Me chama de Samuel. - Samuel estendeu a mão e o outro rapaz aceitou o aperto firme, embora ainda parecesse desconfiado. - É um prazer te conhecer. Eu devia ter vindo mais cedo, mas fiquei ocupado na cidade.
Torci o nariz. Não sabia se aquilo era bem verdade. Pela minha experiência, Samuel só esteve evitando qualquer coisa que tivesse vindo com a herança do avô.
- Eu sou Fernando. É um prazer senh... Samuel. - O rapaz despistou os cachorros, que agora estavam tão animados pelas visitas que tinham começado a pular nas nossas pernas. Um deles quase me derrubou. - Desculpa por eles. Não são cães de guarda de verdade. Eu até tentei ensinar, mas... - Fernando suspirou. - Eles são crianças demais para isso, eu acho.
- Não se preocupa. Eu devia ter dado um jeito de avisar que vinha antes, para não te atrapalhar, mas tudo aconteceu meio em cima da hora. Mas a gente não vai tomar muito do seu tempo, Fernando. Se puder conversar só por alguns minutos...
- Claro, claro. Podem vir comigo pra casa. Vou fazer um cafezinho.
Fernando mostrou o caminho, os cachorros saltitando na frente. Eu troquei um olhar com Samuel.
- Ele não parece nada com o senhor que a gente viu na foto - sussurrei, já temendo pelo pior. E se aquelas pessoas não morassem mais ali? E se tivessem ido embora para longe?
- Calma, Bia, a gente mal chegou.
- Mas...
Ele apertou de leve a minha mão.
- A gente não vai sair daqui sem nada. Pode ficar tranquila.
Sufoquei minhas preocupações e fiquei ao lado dele enquanto seguíamos Fernando. Ele nos levou pelas escadinhas da varanda da pequena casa amarela e abriu a porta da frente, que dava para uma sala de estar simples e de móveis antigos.
- Não reparem na bagunça - ele falou, nos guiando por um corredor com quadrinhos de vasos de flores e cestos de frutas. Outro lance de degraus levava para a cozinha, que ficava em um nível mais baixo do terreno. Um fogão vermelho, uma geladeira, armários pintados de azul e uma mesa com dois bancos compridos e sem encosto eram toda a mobília do lugar. Fernando nos convidou para sentar e começou a preparar um café e servir biscoitos, por mais que Samuel dissesse que não íamos tomar muito do tempo dele.
- Eu insisto - ele disse, vindo na nossa direção com três xícaras brancas tirados do armário. - Não tem muita coisa, porque eu ainda não fui na cidade essa semana para fazer compras, mas tá bem gostoso.
Observei Fernando preparar o café. Suas mãos tremiam de leve e ele quase derrubou a garrafa quando nos serviu.
Ele se sentou no banco oposto e tentou sorrir para mim.
- Eu não perguntei o nome da moça.
- É Bianca - respondi, levando a xícara de café aos lábios.
- Esposa do senhor Dutra, eu acredito.
Tanto eu quanto Samuel nos engasgamos ao mesmo tempo. Quase emporcalhei toda a toalha de mesa, que tinha estampa de galinhas e ninhos cheios de ovos.
- Não, não - falei, o café queimando as minhas entranhas. - A gente não é... Eu não sou esposa dele. A gente...
- Ela é minha funcionária - Samuel disse, batendo no peito com o punho fechado para desengasgar. - Eu tenho um bar em Santa Cruz. A Bianca me ajuda por lá.
Enchi a boca de biscoito. Não sabia por que ser intitulada simplesmente como funcionária me incomodava. Eu não era só isso, era?
Mas antes que me perdesse mais naqueles pensamentos, Samuel disse:
- Fernando, como eu falei, a gente não pretende tomar muito do seu tempo. A razão pra eu ter vindo...
- Eu já sei - o rapaz falou, fazendo com que Samuel e eu nos entreolhássemos. Ele encarava a toalha de mesa, o café abandonado. As linhas no seu rosto, embora jovem, se aprofundaram tanto que ele pareceu dez anos mais velho.
- Você sabe? - perguntei, cautelosa.
- Sei. Mas antes de falar alguma coisa, eu queria dizer que essa casa é tudo para mim. E a fazenda é a fonte do meu sustento. Eu não sei... - A voz dele falhou. - Eu não sei se consigo fazer outra coisa que não seja mexer com os animais, com a plantação. Não consigo viver longe do mato, do silêncio da roça. Eu... Eu sei que o senhor é o dono, que tem interesses maiores que os meus e a minha voz não vale de nada nesses assuntos, mas se pudesse reconsiderar, ou quem sabe me dar uma chance de...
- Fernando, do que você tá falando? - Samuel o interrompeu, a voz gentil e confusa.
O rapaz ergueu o olhar suplicante. Seus olhos castanhos iam de mim para Samuel com uma rapidez assustadora.
- Sobre vender a fazenda. É por isso que veio, não é? Eu soube da morte do seu Jorge há um tempo lá em Santa Cruz e imaginei que logo você fosse aparecer. A dona Dora da feirinha disse que você era o herdeiro, e eu estive esperando que fosse aparecer aqui para me mandar fazer as malas.
O desespero no seu rosto fez muito mais sentido depois daquela explicação.
- Não é nada disso, Fernando - falei, ousando colocar minha mão sobre a dele em cima da mesa. - O Samuel não veio para te avisar que vai vender a fazenda.
- Não? - a voz dele era falha e os olhos quase transbordaram lágrimas. Era como se estivesse com medo de ter esperança.
- Não - confirmei.
- Mas eu pensei... - Ele limpou a garganta, voltando os olhos para o Samuel. - A dona Dora disse que você era o único herdeiro, mas eu não acreditei nela. Sempre tem mais herdeiros por aí, ainda mais com tanta terra. Então eu pensei que tudo seria vendido para depois repartirem o dinheiro, como acontece nesses casos.
- A dona Dora estava certa - Samuel disse, a voz um tanto grave e solene de repente. - Não tem ninguém, além de mim.
Senti o nó na minha garganta se formar. Eu sabia no meu íntimo que aquela última frase se referia a bem mais coisas do que apenas a herança do velho Jorge Dutra.
- Ah, então não pretende vender a fazenda? - Fernando perguntou, e parecia prestes a se levantar e dançar pela cozinha. Ele nem esperou Samuel confirmar. - Esse é o dia mais feliz da minha vida, então! Eu fiquei morrendo de medo, não tenho vergonha de admitir. Venho até pagando o aluguel da casa e dos pastos adiantado, como deve ter reparado. Achei que meus dias aqui estavam contados. Eu não suportava essa ideia, Samuel. Não suportava. Eu moro aqui desde os dez anos, quando meus pais me adotaram. Isso aqui é a minha vida, tudo que eu conheço.
- Não precisa se preocupar com isso, Fernando. Ninguém vai te tirar da fazenda - falei, por mais que não coubesse a mim fazer tais promessas. A terra era do Samuel, afinal de contas. Ele podia fazer com ela o que quisesse. - Como eu disse, não foi por isso que a gente veio aqui. Na verdade, nós precisamos da sua ajuda.
- O que precisar - ele disse prontamente.
Eu troquei um rápido olhar com Samuel e me voltei para ele.
- Você é o único que mora aqui hoje, Fernando?
Ele assentiu.
- Tem um rapaz que me ajuda durante a semana, mas só. Meus pais morreram num curto espaço de tempo há dois anos. Eles já eram bem idosos.
Ele deve ter interpretado meu silêncio impactado como um incentivo para continuar, porque disse:
- Eu morava em um abrigo numa cidade perto daqui. Não sei quem são meus pais de verdade. Eles me abandonaram quando eu ainda era um bebê. Mas meus pais, meus pais adotivos, quero dizer, me trouxeram para cá. Eles estavam na fila há muito tempo, e podiam ter escolhido uma criança mais nova, mas me escolheram. - Sua voz ficou embargada. - Eles já eram mais velhos na época e os anos não foram gentis. Eu tô sozinho desde então.
- Eu sinto muito pela sua perda - Samuel falou. - Não deve ter sido fácil para você.
Fernando encolheu os ombros.
- Eu consegui cuidar deles muito bem naqueles meses finais. Sei que dei o meu melhor e que estão no paraíso agora.
O silêncio caiu entre nós. E por mais que eu soubesse que aquele era um assunto delicado e que deveria demonstrar um pouco de sensibilidade, não consegui.
Tirei a fotografia dobrada do bolso da minha calça e a deslizei pela tampa da mesa até os olhos de Fernando a encontrarem.
- Esses são seus pais? - perguntei.
Ele abriu um sorriso cansado e assentiu.
- Sim. Eu tenho algumas fotos guardadas no meu armário. Não olho para elas com frequência.
- E você conhece essas outras duas pessoas na foto, Fernando? - Samuel perguntou.
- Esse é o Jorge Dutra, seu avô. Sei quem é ele por que vinha de tempos em tempos checar a fazenda, apesar de nunca mais ter aparecido nos últimos anos. E essa... - Ele bateu o dedo na imagem da minha avó, o rosto franzido em concentração. - Eu me lembro vagamente dela. Veio aqui duas ou três vezes quando eu ainda era um moleque, sempre acompanhada do senhor Dutra. Costumava sentar com a minha mãe e ficar conversando na varanda enquanto os homens analisavam as terras por aí.
- É só isso que você se lembra dela? - perguntei, tentando não demonstrar meu desespero por respostas e falhando miseravelmente. - Não sabe por que ela vinha com o Jorge? Do que costumava conversar?
Fernando balançou a cabeça.
- Não. É só uma memória vaga. Eu... - Ele pegou a foto e a ergueu contra a luz. Precisei resistir à vontade de avançar nas mãos dele e recuperá-la. - Na verdade, eu me lembro de uma coisa. Algo que me impressionou na época. Era um anel.
- Anel? - Samuel perguntou.
- É. Ela usava o anel mais lindo que eu já vi. Eu era uma criança órfã que nunca teve nada na vida, então acho que fiquei impressionado com aquele anel. Ele tinha uma pedra vermelha no centro e era dourado. Provavelmente a coisa mais cara que já botei os olhos.
Então Fernando sorriu e bateu o dedo na foto.
- Arrá! Aqui está. A foto é meio ruim, mas dá para ver. Olha.
Ele colocou a foto de volta na mesa e apontou para a mão da minha avó, quase escondida por estar entre seu corpo e o da mãe do Fernando.
- Estão vendo? É esse o anel.
Eu peguei a foto. Não parecia possível... Tinha encarado aquela imagem por horas e não tinha visto aquilo: a pequena elevação no dedo da mão esquerda, algo granulado e disforme, que você só encontraria se soubesse o que estava procurando.
Encontrei o olhar de Samuel e soube que compartilhávamos o mesmo pensamento.
Seria aquela uma das joias escondidas em algum lugar da mansão em Santa Cruz?
Tentei fazer mais perguntas para Fernando, mas ele disse tudo que sabia. Quando nos levantamos para ir embora, ele nos convidou para passar por ali mais vezes, e continuou a repetir que estava muito feliz por saber que Samuel não pretendia vender a fazenda.
Nós dois fomos caminhando até a porteira e eu acenei para o rapaz ao longe, sem saber ao certo o que sentir com as descobertas do dia.
- Algo sobre esse anel me soa familiar - Samu disse quando atravessamos a porteira. Ele tinha ficado em silêncio durante todo o caminho. - Eu só não sei por quê.
- Familiar como?
- Não sei. Mas vou descobrir.
- Vamos ter tempo para pensar sobre isso em Santa Cruz - comentei, tentando não ficar obcecada com aquilo. - A gente não descobriu muita coisa, mas foi um avanço, não foi? Pelo menos a gente sabe que os nossos avós pareciam ser mais próximos um do outro. Eu só não sei bem o que fazer com essa informação.
- A gente ainda vai chegar lá. Eu espero.
Antes que ele pudesse entrar no carro, eu peguei as chaves do bolso da sua calça jeans.
- Eu dirijo. Temos uma última parada antes de voltar pra cidade.
Ele franziu as sobrancelhas para mim.
- Você tem carteira por acaso?
- Tenho. Meu pai insistiu que eu tirasse assim que fiz dezoito anos. Não adiantou muita coisa, já que minha mãe e eu precisamos vender nosso antigo Voyage para conseguir arranjar toda a mudança para Santa Cruz.
Samuel cruzou os braços.
- Não sei se te quero dirigindo o meu carro.
- O quê? Acha que eu não sou uma boa motorista por ser mulher? - desdenhei, abrindo a porta da frente.
- Não, acho que não é uma boa motorista por ser você mesmo.
- Porra, valeu pelo voto de confiança. - Tentei ajustar o banco para ficar mais perto do volante. - Meu Deus, Samuel, como você consegue dirigir assim?
- É que as minhas pernas não cabem se eu não empurrar o banco pra trás.
- É. Eu percebi. - Soltei uma risada quando ele se espremeu no banco do passageiro que eu ocupei na ida. - Coloca o cinto.
- Bianca, onde você tá levando a gente? - ele perguntou com um suspiro enquanto eu subia a estrada de terra, tentando me lembrar das instruções que Kira tinha me passado.
- Surpresa.
- Eu não gosto de surpresas.
- Você precisa relaxar.
- Mas é você quem me estressa.
Freei com força para me impedir de passar por cima de uma pedra e Samuel quase colou a cara no para-brisa.
- É melhor não me irritar enquanto eu estiver dirigindo.
- Você é um perigo pra humanidade...
Mas ele calou a boca, colocou o cinto e ficou com aquela carranca por mais alguns metros até eu dizer alguma besteira que o fez rir.
O som daquela risada fez meu estômago despencar e algo gelado correr pelas minhas veias.
Deus, estava sendo um dia cheio... E a minha cabeça parecia não estar mais funcionando direito.
Com sorte, um mergulho na cachoeira que ficava bem perto dali me ajudaria a clarear os pensamentos.
_____________________❤️___________________
Dedicado à garotadafics
Oii, gente!
Espero que tenham gostado do capítulo de hoje, quero ouvir (ou melhor, ler) tudo aqui nos comentários!!
O próximo capítulo já está escrito e eu nem sei o que dizer sobre ele... Detesto spoilers, mas digo que o meu pobre coração de autora sofreu e também se aqueceu em alguns momentos. Conseguem imaginar o que vem por aí?
Um beijo e até mais,
Ceci.
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