onze
Minha invasão não saiu como planejado.
Nem perto disso, na verdade.
Eu ainda estava lambendo as feridas naquela noite no bar, pensando em como um medo bobo de supostos fantasmas e um guarda-chuva tinham me feito entregar os pontos e ter Samuel inserido no meio de toda aquela história.
Ao mesmo tempo, era bom não precisar mentir mais e ter alguém com quem compartilhar aquele segredo pesado e monstruoso. Mas eu ainda não sabia se era tão bom assim ter Samuel como parceiro. Na real, não tinha nem ideia de como aquilo iria funcionar.
- Você tá pensando sobre as joias, não tá? - ele perguntou quando precisei ir até o balcão pegar pedidos.
- É só nisso que eu penso ultimamente - falei, olhando para os lados antes de completar: - E vê se fica esperto. Não dá pra ficar comentando sobre isso aqui.
- Desculpa. - Ele começou a limpar o balcão, como sempre fazia quando estava estressado ou precisava se distrair enquanto um cliente tagarelava. - É que é tão doido! Parece enredo de novela.
Tentei disfarçar o sorriso, mas não consegui.
- Nas novelas, os mocinhos ficam ricos no final. Vamos torcer.
Samuel riu.
- E desde quando você é a mocinha?
- Desde sempre.
- Mocinhas não são gentis e bem comportadas?
Bufei.
- Que tipo de novela você assiste? As dos anos 60? Tá na hora de rever seus conceitos sobre mulher ideal.
- É que as mocinhas não invadem casas. Nem tentam matar pobres rapazes inocentes.
- Inocente? Você? - Samuel e eu trocamos um olhar e caímos na risada. Eu balancei a cabeça para ele. - Vai trabalhar. Já tá me distraindo.
Peguei os pedidos e os transferi para a minha bandeja. Tinha acabado de servir uma roda de amigos quando alguém deu batidinhas no meu ombro.
- Tem algum lugar disponível para mim?
Me virei e vi minha mãe parada com sua bolsa debaixo do braço, vestindo suas melhores roupas e com uma camada fina de maquiagem no rosto.
- Mãe! - A abracei, feliz e confusa ao mesmo tempo. - O que tá fazendo aqui?
Ela riu e acariciou minhas costas.
- Decidi vir conhecer o lugar. Espero que a comida seja tão boa quanto você diz.
A levei até uma mesa vazia perto da porta. Ela andava devagar e com cuidado, mancando um pouco. Percebi o modo como tentava disfarçar o incômodo no joelho ruim.
- Mãe, a senhora não devia ter vindo andando até aqui - falei, arrastando uma cadeira para ela.
- Eu tô bem, Bia. Não se preocupa. - Mas eu vi a dor no seu rosto, e ouvi o suspiro de alívio que soltou quando finalmente pôde descansar na cadeira.
O movimento do bar estava lento naquela noite. As poucas mesas ocupadas já tinham sido atendidas e ninguém parecia estar precisando de mim, por isso me sentei na cadeira aposta à da minha mãe.
- E então? Onde ele tá? - ela perguntou, arriscando uma olhadela para dentro do bar.
- Ele quem?
- Seu chefe, é claro. Tô doida para colocar um rosto no nome que você apedreja tanto!
Apoiei minha cabeça na palma da mão e sorri de leve.
- Ele não é tão ruim assim - admiti baixinho. - Eu exagero um pouco.
- Eu sei. Você sempre foi meio dramática.
- Isso não é verdade!
- É sim.
Mordi o lábio para não deixar escapar a risada que estava segurando.
- Ele é uma boa pessoa. Só meio irritante e mandão, às vezes. E sério. Parece um gigante zangado.
- Bia...
- E arrogante. Nossa, quando ele me olha daquele jeitão sabichão eu tenho vontade de socar a cara dele! E quando não tá calado, tem aquela língua afiada que...
- Que imagem boa você pinta de mim para a sua mãe, Bia. - Levei um susto tão grande que quase caí da cadeira.
Samuel estava parado atrás de mim, aqueles braços enormes cruzados em frente ao peito e o justo olhar arrogante que eu tinha acabado de falar sobre cintilando na minha direção. Ele não parecia nem um pouco chateado por eu estar falando mal dele pelas costas - ou nesse caso, na frente -, mas muitíssimo satisfeito por ter me pegado no ato.
- Garanto que eu não sou tão ruim assim - ele disse se aproximando. - A senhora é a Raquel, certo? É um prazer.
Samuel apertou a mão da minha mãe.
- Desculpa pela minha filha - ela disse com um sorriso sem graça. - Ela não tem muito juízo.
- Mãe!
- Sempre teve a língua solta. Mas apesar do que ela fala, é muito grata pela oportunidade de trabalhar aqui.
- Ela é uma boa funcionária. - Samuel me encarou, divertido. - E a gente se dá bem, na medida do possível. Não é, Bia?
- Claro - disse por entre os dentes cerrados.
- Espero que a senhora goste do Lambari - Samuel continuou, a imagem do bom moço. - Já olhou o cardápio? Pode pedir o que quiser. É por conta da casa.
Minha mãe estava maravilhada. Eu bufei e me afundei na cadeira, fuzilando Samuel com o olhar.
Os dois bateram um pouco de papo até ele se afastar, prometendo pedir para Hélio caprichar no prato dela.
- Bia, como você pode falar mal desse rapaz?! - minha mãe sussurrou quando ele sumiu para dentro do bar. - Ele é tão lindo e educado...
- E falso - completei. - Falso que nem uma nota de três reais.
- Bianca!
- Ele só quer te conquistar para me pagar de maluca.
- Você é meio maluca, mesmo.
- Mãe! - repeti, indignada.
- Você devia ser mais legal com ele - ela declarou.
Escondi o rosto nas mãos.
- Não acredito que tô ouvindo isso...
- É verdade. Você pode ser muito dura com as pessoas às vezes, Bianca. Principalmente com aquelas que se parecem um pouco com você.
- O Samuel não tem nada a ver comigo! - falei. - A gente não podia ser mais diferente...
- Será mesmo? Porque ele não parece levar desaforo para casa. Igualzinho a alguém que eu conheço.
Revirei os olhos.
Eu não tinha nada a ver com o Samuel. Nem aqui nem na China.
Eu estava prestes a me levantar para voltar ao trabalho quando minha mãe disse:
- Eu vi seus desenhos ontem, enquanto limpava o quarto. E os cálculos também.
Levei um tempo para me situar na mudança repentina de assunto, mas então lembrei que tinha deixado um monte de páginas de caderno espalhadas pela escrivaninha na noite anterior, quando passei horas observando o céu para tentar me distrair do meu plano de invasão no dia seguinte.
- Os desenhos são lindos, Bia - minha mãe falou baixinho. - E apesar de eu não entender muito a respeito dos cálculos...
- Não é nada importante - falei, tentando cortar o assunto. - São coisas já mapeadas. São só uma distração.
- Você sabe que não é tarde demais para tentar de novo, não sabe? Se você quiser. - Engoli em seco e olhei para o outro lado da praça, tentando me concentrar em qualquer coisa que não fosse o olhar atento da minha mãe. - Tem uma ótima faculdade federal na cidade vizinha. Dá para ir e voltar todo dia se você quiser. Eu até olhei os cursos que oferecem e tem...
- Mãe, eu não vou para faculdade - disse apesar do nó na garganta. - Não quero mais isso. - Arrastei a cadeira antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa. - Eu preciso voltar para o trabalho. Já, já volto com seu pedido, tá?
Me levantei e dei um beijo na lateral da cabeça dela.
- Você vai ver que ótima garçonete eu sou.
Me afastei antes que ela me convencesse a ficar mais.
Não conseguia olhar para ela. Não conseguia ver a esperança, o pedido no seu olhar.
Eu queria tanta coisa... antes. Meus sonhos se amontoavam um por cima do outro em uma torre que podia atingir o céu.
Então teve aquela festa, logo depois meu pai. E tudo perdeu o sentido. Todos os sonhos só eram bons porque ele podia estar ao meu lado para ver cada um se tornar realidade. Agora...
Passei o dedo pelas estrelas no meu pulso.
Agora eu me sentia um céu noturno escuro demais. Um vasto infinito com rastros do que tinham sido astros brilhantes um dia. Até toda aquela loucura com as joias começar, era assim que eu me sentia há meses: vazia, solta e sem nada a que me agarrar.
- Então eu não sou tão ruim assim... - ouvi a voz de Samuel. Ele tinha ido atender as mesas de dentro e passou por mim com garrafas de cerveja vazias.
- Eu te chamei de arrogante, mandão e rabugento e você se agarra a essa parte? Inacreditável.
Ele sorriu, parecendo muito satisfeito consigo mesmo.
- Todas essas outras coisas você já falou na minha cara, então não faz lá muita diferença. Mas eu sou uma boa pessoa, segundo você. E nem tão ruim assim. - Ele estava insuportavelmente metido. Desamarrei meu avental e bati em seu braço com ele.
- Isso, guarda bem essas palavras. São os únicos elogios meus que você vai receber.
- Pelo menos são elogios e não sombrinhadas.
Joguei as mãos para cima.
- Deus, você nunca mais vai esquecer essa história.
Assim que o pedido da minha mãe ficou pronto, fui atendê-la. O bar esvaziou depressa depois daquilo e nós três acabamos ficando sozinhos quando o Hélio terminou o trabalho na cozinha.
Ele, que era sempre bem calado e na dele, comentou comigo antes de sair:
- Por que o Samuel não para de sorrir? Não combina com ele.
Cruzei os braços com uma cara afetada.
- Ele pode ter me ouvido dizer que ele não era uma pessoa tão ruim assim.
- Ah, faz sentido. - Hélio me deu um tapinha consolador nas costas. - Como você deixou essa escapar, Bia?
- Achei que ele não estava por perto. Samuel pode ser bem silencioso para um cara de dois metros de altura.
O cozinheiro riu e me desejou boa noite. Quando terminei de juntar as cadeiras e voltei para dentro do bar, minha mãe e Samuel riam como se fossem melhores amigos.
Revirei os olhos.
- A senhora tem que vir mais vezes - ele falou com um sorriso.
- Depois de provar a comida de hoje e ver o ótimo atendimento, com certeza - minha mãe disse. - O seu bar é muito bom, Samuel. Me surpreende você conseguir tocar tudo sendo tão jovem.
- Aprendi com o tempo. Mas ainda tem muita coisa para melhorar.
- Tipo conseguir garçonetes mais carismáticas?
- Exatamente.
Eles riram e eu soltei uma risadinha falsa.
- Vocês não acham que já falaram de mim o suficiente? - perguntei.
- A gente mal começou, querida - minha mãe disse com carinho.
- Bom, eu tô indo para casa. A senhora vem comigo ou prefere continuar fofocando com o meu patrão?
- Por mais que eu quisesse - e ela olhou para Samuel como se realmente sentisse muito, - tenho aula amanhã cedo. Mas foi um prazer, Samuel. Minha filha tem muita sorte de trabalhar com você.
É, muita sorte. Puxa, como sou sortuda...
- Foi um prazer conhecer a senhora também. Mas por que vocês não esperam só um pouquinho enquanto desço as portas? Meu carro está estacionado logo ali e eu levo vocês para casa.
Eu abri a boca para dizer que não precisava, mas uma corona seria muito bem-vinda para a minha mãe. Temia que a dor no joelho piorasse ainda mais com a caminhada de volta para casa.
Quando Samuel fechou o bar e nos deixou em casa, minha mãe saiu primeiro e se despediu dele com um beijinho no rosto. Eu estava prestes a segui-la pelo portão quando Samuel me chamou.
Coloquei a cabeça para dentro da janela do passageiro. O poste de luz do outro lado da rua falhava de segundo em segundo, fazendo com que a luz alaranjada refletisse no cabelo castanho dele e deixasse parte do seu rosto no escuro.
- Amanhã cedo, quer que te busque? - ele perguntou quando me aproximei.
- Não precisa. A gente se encontra na mansão.
- Tá bom. Combinado.
Percebi o modo como Samuel passou as mãos pelo volante em um aperto nervoso.
- Samuel, a gente vai achar as joias - disse, mas logo percebi que tinha entendido errado o motivo da sua ansiedade.
- Eu sei que a gente vai. Quer dizer, eu espero que sim. - Ele suspirou e desviou o olhar. - É só que aquela casa...
Ele tinha me pedido para não fazer perguntas, mas, Deus, como eu queria entender tudo... A tensão vincada em cada traço do seu rosto e as mãos apertando firme o volante não deixavam dúvidas que passar tempo demais naquele lugar não era exatamente sua ideia de paraíso.
- Ei, eu vou estar lá, lembra? - falei, reprimindo os meus impulsos curiosos. Tentei sorrir para ele. - Caso fique com medo de fantasmas, é só se esconder atrás de mim. Vou levar o guarda-chuva.
Samuel riu, uma risada retumbante que fez seus ombros chacoalharem. A tensão foi desfeita em um segundo e senti como se um peso fosse tirado do meu próprio peito.
- Nenhum fantasma é louco de chegar perto de você se estiver armada com aquela coisa.
- Exatamente. Eu posso ser bastante mortífera quando quero.
Samuel assobiou baixinho e massageou um ponto da cabeça.
- Acredita em mim, eu sei.
A gente se olhou por um segundo, a luz do poste o fazendo aparecer e quase sumir de vista de tempos em tempos.
- Boa noite, Samuel - falei baixinho, minha voz o único som naquela rua silenciosa.
- Boa noite, Bia.
Era a primeira vez que ele me chamava daquele jeito para valer, sem gracinhas envolvidas. Não sei por que prendi a respiração daquele jeito. Aquele era meu nome, afinal. As pessoas me chamavam de Bia o tempo todo.
Mas para ele eu sempre tinha sido Bianca e o uso do apelido foi...
Me afastei antes mesmo de concluir o pensamento. Samuel só ligou o carro depois que eu já estava do lado de dentro do portão. Então ele acenou, deu partida e ligou o rádio, o som da música baixinha preenchendo a cabine agora só ocupada por ele.
Entrei rápido em casa antes que o impulso de chamá-lo de volta me dominasse.
___________________❤️_____________________
Dedicado à Dralrs
Oii, gente!! Como vocês estão??
Mais um capítulo desse livro pra vocês e eu espero muito que estejam gostando!!!! Peço perdão pelos capítulos pequenos, mas é que esse livro realmente se desenvolve de um jeito mais lento que outros que eu já escrevi, pelo menos no meu ponto de vista, e isso se reflete em capítulos inteiros com mais desenvolvimento de personagem do que ação kkkkkkkk
Enfim, quero saber tudo que acharam (Samuel e Bianca cada vez mais próximos, né?)
Vejo vocês na próxima semana!
Um beijo e até lá,
Ceci.
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