oito

Eu amarelei por dois dias.

Dois dias em que vi Samuel levar o molho de chaves para o pequeno escritório que ficava no fundo do bar e não fiz nada.

Eu observava de longe aquela pequena chave no meio de todas as outras, aquela que abriria - literalmente - os portões para minha caça às joias.

Durante aquele tempo, menti para mim mesma dizendo que estava planejando o melhor jeito de roubar a chave, mas a verdade é que eu estava morrendo de medo de ser pega. Samuel já tinha me visto perto da mansão uma vez, e eu sabia que havia um limite para quantas das minhas mentiras fajutas ele podia acreditar.

Na terceira noite, tomei uma decisão.

Se não for hoje, não é nunca mais.

Eu estava indo até a cozinha pegar mais uma bandeja de porções quando Samuel me encurralou.

- Você confundiu outro pedido.

Ergui os olhos para ele.

- Confundi?

- Levou as bebidas da mesa sete pra mesa três.

Olhei para trás, franzindo as sobrancelhas.

- Errei mesmo. Já vou consertar.

Mas antes que eu me afastasse, Samuel me segurou pelo cotovelo.

- O que tem de errado com você hoje?

- Não tem nada de errado - falei, mas até a minha voz saiu errada. Limpei a garganta e empinei o queixo. - É você que tá no meu caminho. - Me desvencilhei dele e fiz um gesto para chegar para lá. - Já é difícil o suficiente trabalhar aqui sem um brutamontes empacado na frente do freezer. Você se importaria? - Passei por debaixo do seu braço e peguei uma garrafa de refrigerante. - Anda, circula. Já tá me sufocando.

Ele bufou, mas vi o estranhamento deixar seus olhos.

Ótimo. Era só eu continuar enchendo o saco dele e tudo ficaria bem. Não que fosse um grande esforço. Eu tinha descoberto que tornar a vida de Samuel miserável estava na minha lista de coisas favoritas, logo abaixo de assistir filmes de ficção científica e acima de colecionar elásticos de cabelo coloridos.

Eu voltei a entender as mesas, conversando com os clientes que eram gentis comigo e com aqueles que já me chamavam pelo nome, contentes por me ver.

- Vou te contar, filha, ainda bem que o Samuel te contratou - disse um senhorzinho de chapéu sentado com seu filho já de maia idade. - Eu frequento o Lambari desde que foi aberto, sabe? E eu via como o moleque suava para atender todo mundo.

- Ele não quis me contratar de primeira - contei, depositando as bebidas na mesa. - Precisei insistir. O Samuel... - eu olhei para os lados e sussurrei: - Ele é teimoso como uma mula, o senhor tem que ver.

Ele riu alto.

- Há! Eu sei disso. O pai dele era do mesmo jeito. Fechadão, sabe? Um cara grande, parrudo, de poucas palavras. Mas era um bom homem. E o Samuel também é. Um dos melhores garotos da cidade.

Fiquei em silêncio, sentindo um aperto no peito de repente. Olhei na direção do bar e vi Samuel atendendo as pessoas, dando atenção às crianças que vinham correndo para o lado dele e os sorrisos gentis que distribuía a todos.

- Ele é bom - disse baixinho, quase sem querer. Mas então virei para o senhor e completei: - Mas, por favor, não conta pra ele que eu disse isso.

O homem sorriu.

- Prometo ficar de boca fechada, filha.

- Ei, moça!

Me virei na direção da pessoa que me chamava e me despedi depressa do senhor. Estalei o pescoço e suspirei, me perguntando até quando ficaria naquela noite. Já estava exausta.

Me aproximei do cara loiro e jovem sentado sozinho em uma das mesas do Lambari. Ele tinha acabado de chegar, mas seus olhos pesados e o modo como pendia da cadeira indicava que já tinha passado por outros lugares e virado mais copos do que podia contar naquela noite.

- E pra você? - perguntei.

Minha caneta já estava pronta e meu bloquinho aberto, mas congelei quando o rapaz se inclinou mais para mim, os olhos no decote da minha camisa.

- Não tá me reconhecendo, linda?

Estreitei os olhos. Eu já tinha visto aquele cara ali, em mais de uma ocasião. Quando não estava sozinho, tinha um ou dois amigos a tiracolo, sempre bêbado e falando alto.

- Na verdade, não - disse, experimentando uma onda de satisfação quando ele recuou, o cenho franzido e a boca crispada.

Ele era um homem bonito. O rosto tão proporcional e sem defeitos que irritava. Podia apostar que ele vivia com garotas caindo aos seus pés, e talvez não estivesse acostumado a alguém que não aceitasse de braços abertos suas investidas.

- E então? Vai querer alguma coisa? - insisti.

O sorriso voltou ao seu rosto, lento e despreocupado. Um arrepio subiu pela minha espinha.

- Eu queria esse aqui - ele disse, apontando para algo no cardápio. - Mas eu não tô conseguindo enxergar muito bem o que vem na porção. Você pode me ajudar?

Cerrei a mandíbula.

- Claro.

Me aproximei um pouco só pra acabar logo com aquilo e ler a merda do cardápio, mas eu mal tinha chegado perto dele quando seu braço rodeou minha cintura em um aperto.

As bordas da minha visão escureceram. Por um momento, me esqueci de como respirar. De repente eu estava naquele canto encurralada de novo, a música alta abafando minha voz, mãos frias subindo pelas minhas coxas.

Foi como se eu deixasse meu corpo. Meus ouvidos zuniam e eu escutava tudo como se estivesse debaixo d'água. Eu não podia lidar com aquilo. Não de novo.

De uma vez, a realidade voltou. Eu pisquei e Samuel estava ali, as duas mãos sobre a mesa de plástico, seus olhos de cores diferentes queimando.

- Solta ela, Henrique.

O braço que me agarrava afrouxou.

- Calma aí, cara. A gente estava só conversando...

- Eu disse pra soltar ela.

A voz de Samuel era algo que eu nunca tinha ouvido antes. Não combinava com o que eu conhecia dele. Era baixa, fria e perigosa.

O cara que me segurava finalmente me soltou, tirando o braço de mim em um gesto lento. Ninguém viu, mas senti quando sua mão passou pela minha bunda antes de me deixar por completo.

Me afastei, zonza, e fiquei ao lado do Samuel.

- Vai embora daqui - ele disse.

- Tá me expulsando agora? - O rapaz, Henrique, soltou uma risada incrédula. - Só porque eu estava trocando uma palavrinha com a sua garçonete?

Samuel fez um gesto brusco na direção dele.

- Não. - Segurei seu braço e fiquei na frente dele. Minha cabeça mal chegava ao seu peito e eu sabia que não poderia oferecer resistência alguma caso Samuel decidisse passar por mim. Olhei ao redor. Quase todos tinham parado o que estavam fazendo para observar a cena que se desenrolava. - Por favor, não. Eu tô bem. Ouviu? Eu tô bem. - Samuel ainda encarava Henrique como se não me ouvisse. Vi as veias no seu pescoço saltarem. - Por favor, só deixa ele ir. Samuel!

Só então ele olhou para mim.

Eu não queria parecer assustada, mas, Deus, estava tremendo. Só queria que aquilo acabasse.

- Samuel...

Ele ficou na minha frente.

- Vai embora daqui - ele disse uma última vez para Henrique. - Ou eu juro por Deus que vou te tirar à força.

Vi a raiva cintilar nos olhos do outro homem, mas ele não protestou, se levantando devagar.

- A gente se vê, grandão. - E então ele olhou pra mim, me lançando uma piscadela. - Até mais, linda.

Samuel foi para cima dele.

- Não!

Juro que não sei como consegui segurá-lo, mas foi só o suficiente para Henrique se afastar e virar a esquina, sumindo de vista.

Samuel me levou para dentro do bar.

- Ele fez alguma coisa com você? - ele perguntou, raiva e preocupação vincando cada traço do seu rosto. - Ele tocou em você?

Balancei a cabeça, atordoada.

- Não.

- Bianca, não mente para mim.

Eu ergui o rosto para olhar para ele.

- Qual é o seu problema com aquele cara?

- Eu não tenho nenhum problema com ele! O único problema era o modo como ela estava te...

A frase morreu. Samuel soltou um rugido baixo e se debruçou sobre o balcão, suas mãos fechadas em punhos.

Por mais que eu soubesse que ele estava com raiva e queria socar Henrique pelo que aconteceu, com certeza havia mais coisa ali que ele não estava disposto a me contar.

Toquei o braço dele.

- Tá tudo bem. Era só um idiota qualquer. Eu tô legal.

Ele me olhou com tanta intensidade que prendi a respiração.

- Tem certeza?

- Tenho.

As mentiras saíam tão fácil agora.

- Fica no balcão hoje - Samuel pediu. - Eu atendo as mesas.

- Samuel, eu tô bem.

- Mesmo assim. - Ele suspirou e pegou um avental extra, o amarrando na cintura. - Só fica aqui, tá bom?

Não discuti mais. Eu sabia que era o melhor.

- Tá bom.

Então ele se endireitou, tocou meu ombro e passou por mim.

Eu fiquei congelada por um momento, tentando processar tudo.

De uma vez, muitas lembranças vieram até mim. Era como se eu tivesse vivendo a mesma situação de meses antes de novo, mas a diferença era que dessa vez não reagi e alguém surgiu sem que eu nem precisasse gritar.

Samuel.

Ele tinha aparecido. E tinha ficado ao meu lado.

A noite passou em um borrão. Quando percebi, as pessoas foram se dispersando pelas ruazinhas da cidade e os pedidos diminuindo. Quando Hélio fechou a cozinha, Samuel e eu ficamos sozinhos. Ele ainda estava do lado de fora, conversando com uma turma de homens que tinham bebido demais e agora estavam dispostos a jogar papo fora com o dono do Lambari.

Eu olhei para a porta entreaberta do escritório ao fundo, quase soterrada por uma bagunça de caixas e garrafas vazias.

Ouvi a risada de Samuel lá fora e as conversas abafadas.

Algo me dizia que, se eu desse aquele primeiro passo, não havia mais volta para trás.

Pensei na carta da minha avó. Na minha mãe reclamando da dor constante no joelho e mesmo assim encontrando forças para caminhar todo dia para a escola onde dava aula. Pensei na casinha dos meus sonhos, confortável, colorida e alegre apesar da ausência permanente do meu pai.

No centro de tudo aquilo, as joias.

Sem hesitar, fui até o escritório.

Precisei contornar as caixas para entrar. O lugar estava uma bagunça completa e era usado mais como depósito do que um cômodo que Samuel poderia usar para administrar o Lambari. Mas eu já tinha percebido que ele era mais do contato com as pessoas do que fazer logística atrás de uma tela de computador. Só de imaginá-lo em uma cadeira de rodinhas, sua mão grande demais para qualquer mouse, me fazia querer rir.

Eu andei silenciosa pelo lugar. As chaves não estavam em cima da mesa que ficava no centro do cômodo, como eu esperava. Mas sabia que tinham que estar ali em algum canto. Tinha observado Samuel por dias e ele sempre entrava ali para pegá-las e trancar o bar no fim da noite.

- Vamos lá... - sussurrei, abrindo gavetas e revirando seu conteúdo. - Onde está?

Ouvi as risadas do lado de fora diminuírem e passos pesados dentro do bar.

Puxei a gaveta do lado esquerdo, mas ela travou.

Droga.

Meu coração bateu mais rápido quando o barulho inconfundível do tilintar de chaves ali dentro chegou aos meus ouvidos.

Vamos, vamos, vamos...

- Bianca? Cadê você?

A gaveta abriu de uma vez e eu procurei a chave no meio de todas as outras. Quando a encontrei, tive que lutar para tirá-la do molho.

Minha unha quebrou e a argola que as unia se fechou outra vez.

Ouvi a voz de Samuel por cima das batidas do meu coração, mais perto agora.

- Bianca?

Por favor...

Ele apareceu na porta do escritório, seu corpo bloqueando a luz que vinha do lado de fora e me deixando parcialmente no escuro.

- O que você tá fazendo aqui?

Eu engoli em seco.

- Ouvi as vozes dos homens vindo para dentro do bar e... - Fiz uma pausa e balancei a cabeça. - Eu só não queria estar por perto.

Samuel me encarou.

- Eu entendo. - Sua voz era tão doce quanto seu olhar. Ele apoiou o braço no batente da porta e escondeu o rosto por um instante. - Cara, você devia ter me deixado quebrar a cara do Henrique quando tive a chance.

Tentei sorrir.

- Derramamento de sangue afastaria os clientes.

- Foda-se os clientes, então.

Eu dei a volta na mesa e me aproximei dele.

- Você acha mesmo que seria uma briga justa? - perguntei. - Qual é, Samuel. Nós dois sabemos que você acabaria com ele.

- Esse era o objetivo.

- Então existe mesmo um brutamontes por trás dessa carinha de bom moço?

Ele soltou uma risada rouca.

- Todos já acham que eu sou um brutamontes. Que diferença faria?

- Faria diferença para mim. Não curto caras violentos. São só um disfarce para a masculinidade frágil.

- Como se você se importasse com o meu comportamento...

Revirei os olhos.

- Tem razão. Da próxima vez, vou ficar do lado da briga e deixar você socar a cara de alguém. Isso vai te fazer feliz?

- Muito feliz. - Ele sorriu. - Ei, pode dizer isso de novo?

- Isso o quê?

- Que eu tenho razão. Eu não estava gravando da primeira vez.

- Vai sonhando. - Bati uma mão no seu peito e passei por ele. - Essa é uma frase que você não vai ouvir de novo tão cedo.

- Tudo bem. Eu não vou esquecer. Bianca disse que eu tenho razão em alguma coisa... Meu Deus! Vai chover.

- Cala a boca, Samuel.

Ele ainda estava se gabando sobre isso enquanto eu contava o caixa. Mas eu não estava ouvindo de verdade.

Só conseguia pensar na chave escondida no bolso do meu jeans.

_____________________❤️___________________

Dedicado à bluesemtooth

Oii, gente!!! Como vocês estão??

Gostaram do capítulo de hoje? Me contem tudo! (tendências homicidas em relação ao Henrique são bem-vindas)

Escrever esse livro está sendo uma experiência incrível e ter vocês comigo torna tudo ainda melhor!

Mas a pergunta que não quer calar é: como está a agenda de vocês no domingo que vem? Dá pra encaixar um horário pra certa invasão em uma mansão misteriosa por volta das seis da tarde?

Um beijo e até o próximo cap,
Ceci.

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