nove


Devolver a chave de Samuel foi mais fácil do que pegá-la emprestada pela primeira vez. Isso porque no dia seguinte à extração (me recuso a usar a palavra roubo, por mais que seja assim que a minha consciência moralista insista em chamar o ato) fui até o chaveiro e consegui uma cópia menos de uma hora depois.

Fácil assim, eu tinha uma passagem direta para dentro da casa dos Dutra. E pretendia aproveitá-la.

Quando coloquei a chave de volta no molho no próximo dia de trabalho, fiquei aliviada ao constatar que durante aquele tempo Samuel nem tinha sentido a falta dela. Ele não devia ir até a casa do avô com frequência, a não ser quando precisava saquear eletrodomésticos, é claro.

- Que milagre te fez levantar tão cedo hoje? - minha mãe perguntou no meu primeiro dia de invasão. Quer dizer, excursão.

- Vou comprar mais baldes - disse, o que não era necessariamente mentira. Tinha chovido a noite toda e outra goteira apareceu no corredor.

Minha mãe soltou um suspiro pesado e se sentou à mesa da cozinha.

- Será que demora muito mais para a época de chuva passar?

Dei de ombros.

- Quem sabe a gente não consegue arrumar o telhado antes disso?

Minha mãe sorriu, desanimada.

- Só se for um milagre.

Sorri e peguei um pão de queijo quentinho do tabuleiro que ela tinha acabado de tirar do forno.

- Milagres acontecem, mãe. - Principalmente quando você coloca as mãos em certas joias. - Até mais tarde.

- Leva um guarda-chuva!

Eu saí de casa e levantei meu capuz. Nos bolsos do meu moletom, a carta da minha avó e a chave para a mansão estavam bem escondidas.

Estava na hora de certa caça ao tesouro.

Quando cheguei na rua da mansão dos Dutra, me certifiquei de que ninguém se aproximava por nenhum dos lados. O galho partido ainda pendia da goiabeira depois daquele vexame com Samuel, e por algum motivo observá-lo fez meu estômago despencar como se eu estivesse em uma montanha-russa.

Desviei o olhar e tirei a chave do bolso. A tinha segurado com tanta força no caminho até ali que sua forma ficou marcada na palma da minha mão.

- Tá bom, vamos lá - sussurrei para mim mesma, minha voz vacilando.

Coloquei a chave na fechadura do portão, mas ela não entrou.

- Pelo amor de Deus!

Eu mataria aquele chaveiro de araque. Juro que mataria.

Soquei a chave diversas vezes na fechadura e amaldiçoei minha vida miserável até notar que estava tentando colocá-la de cabeça-para-baixo.

Burra.

Girei a chave e ouvi um click que quase me fez desmoronar na calçada.

Olhei para os lados uma última vez antes de empurrar o portão, que rangeu e gemeu quase como se fosse algo vivo.

- Shhhhhh!

Passei por uma frestinha e o fechei com cuidado atrás de mim.

Apoiei a testa no metal frio e deixei todo ar escapar dos meus pulmões em um suspiro aliviado.

Eu estava dentro.

Lentamente, me virei para encarar a mansão.

Se a vida tivesse uma trilha sonora como nos filmes, eu podia apostar que os primeiros acordes de The Phantom of the Opera teriam soado naquele instante.

O caminho de pedra parecia se estender por quilômetros de jardim até às escadas principais que levavam à varanda, mas levou menos de dois minutos para eu me encontrar aos pés daquele mausoléu que se agigantava sobre mim quase como se estivesse pronto para me devorar.

Eu me agarrei ao corrimão frio e ornamentado e subi o curto lance de escadas até as portas duplas principais. A varanda estava vazia com exceção de alguns vasos de plantas secas e praticamente mortas. Hera subia pelas pilastras e fazia seu lento caminho até as paredes.

Encantador.

Eu tentei a porta, mas era óbvio que estava trancada.

Eu já esperava por isso, mas depois de atravessar os portões assustadores da morte, não seria aquilo que me impediria.

Caminhei pela fileira de janelas e tentei levantá-las. Uma nuvem de poeira se ergueu dos parapeitos e eu tossi, escondendo o rosto no tecido do meu moletom. Mansões abandonadas não eram o melhor lugar para uma garota com rinite alérgica.

Tive sorte com a terceira janela do lado esquerdo. Ela estava emperrada, mas com algum esforço consegui levantá-la o suficiente para me espremer pela fresta como uma lambisgoia.

Com metade do corpo para dentro e metade do corpo para fora da casa, eu me agarrei ao pé de uma mesa de madeira que ficava bem ali e me puxei para o interior até cair no chão com um baque.

Me virei de barriga para cima e fechei os olhos por um segundo antes de encarar o teto alto.

- Não era para eu ter sido humilhada assim de primeira.

Graças a Deus, nenhuma voz surgiu para se juntar aos meus devaneios.

Peguei meu guarda-chuva que tinha caído no chão e o usei como apoio para me levantar. Espanei a poeira da roupa e finalmente arrisquei um olhar para o cômodo.

Caramba.

Aquele lugar parecia ter parado no tempo. Mais especificamente, na metade do século XX.

Tudo era muito velho e antiquado, desde as cortinas vermelhas pesadas, até o tapete de arabescos e os móveis de madeira polida. Eu estava no que parecia ser uma grande sala de estar com uma sala de jantar anexa. Onde eu estava, havia uma mesa grande de oito lugares e uma cristaleira apinhada de porcelana prateada. Adiante, um conjunto de três sofás vermelhos estavam dispostos em frente a uma cômoda com uma televisão quadrada tão antiga que ainda tinha antenas. No fundo da comprida sala, me assustei com um movimento até perceber que era eu mesma, meu corpo refletido em uma parede de espelhos.

Muita coisa ali gritava a old money. Tipo, old mesmo. Principalmente a lareira na parede perto dos sofás.

Eu tive que rir.

A gente estava em Minas Gerais, pelo amor de Deus. Quem precisava de uma lareira?

Por mais impressionada que eu estivesse com a casa, a camada de poeira em cada superfície plana e o aspecto intocado de tudo me fez ter arrepios.

Era como estar dentro de uma fotografia. Tudo parecia abandonado por tempo demais, como se os moradores tivessem se dado o trabalho de deixar tudo no devido lugar antes de partir para sempre.

Engoli em seco e tentei focar no motivo pelo qual eu estava ali.

As joias. Claro.

Eu sabia que minha avó não as teria escondido em um lugar óbvio, até porque outra pessoa, o avô de Samuel, tinha vivido ali nos últimos dez anos, então ela teria que ter colocado as joias em um lugar que ele não fosse encontrar por acaso.

Mesmo assim, revirei gavetas e olhei atrás de alguns móveis, sem conseguir resistir à tentação de começar pelo básico.

Eu saí da sala e dei de cara com um corredor enorme com diversas portas. Uma levava a um quarto escuro com um guarda-roupa que ia do chão ao teto, outra à cozinha com armários alaranjados pregados às paredes, a seguinte a uma antiga salinha com uma máquina de costura, sendo seguida por uma copa circular que continha escadas para o andar superior e mais uma que levava ao que parecia ser o único banheiro da parte debaixo.

- Meu Deus...

Era o maior banheiro que eu já tinha visto na minha vida.

Sério, o negócio era do tamanho de uma suíte.

Os azulejos azuis escuros e a pia de mármore com torneiras prateadas antigas reluziam à meia-luz. O banheiro era comprido e tinha uma banheira enorme no final, além de um chuveiro e dois vasos.

Eu ri, o som reverberando pelas paredes e ocupando todo o espaço.

Por que, em nome de Deus, uma pessoa teria dois vasos num banheiro?

- Cara, eu bem que queria bater um papo com a pessoa que planejou esse lugar...

Quando voltei para o corredor, notei os quadros pendurados em um canto escuro da parede. Me aproximei, meus passos estalando o piso de madeira. Semicerrei os olhos e usei a manga do meu moletom para limpar os vidros empoeirados das fotos.

Havia uma mulher, jovem e bonita, com os olhos verdes mais impressionantes que eu já tinha visto. Ela estava sentada naquele mesmo sofá vermelho da sala, com um menininho sorrindo no seu colo. Ele devia ter uns quatro ou cinco anos, o cabelo castanho encaracolado e um olhar divertido e impaciente ao mesmo tempo, quase como que se não aguentasse mais ficar parado para a foto e estivesse doido para sair correndo assim que a câmera desviasse de foco.

Cheguei mais perto e o reconhecimento me atingiu. Os olhos do menininho... Um castanho e o outro verde, brilhando como estrelas.

Eu prendi a respiração e voltei a atenção para o outro retrato. O vidro que o protegia estava estilhaçado, o círculo do tamanho de um punho. Ainda assim, era possível distinguir a imagem. Era a foto de um homem com uma tesoura de jardinagem, cuidando de arbustos altos que eu tinha reconhecido do lado de fora da mansão. O homem era gigantesco, de ombros largos e mãos grandes, o rosto vincado pelo sol.

Para mim, não havia dúvidas. Aquelas pessoas só podiam ser...

O sangue pulsou nos meus ouvidos quando ouvi algo no silêncio absoluto da casa.

Um rangido e... passos.

Não me orgulho de admitir que quase fiz xixi na roupa. Não, mesmo. Mas não sei se alguém na minha situação teria agido muito diferente.

Imagine o cenário: uma garota sozinha em uma casa abandonada onde um homem havia morrido pouco tempo antes. Uma garota que não só invadiu, como estava revirando os quatro cantos da mansão antiga que mais parecia um sepulcro intocado.

Não importava que a garota em questão tivesse boas intenções quando tudo que fiz para chegar ali tivesse sido, querendo ou não, errado.

Mas eu não acreditava em fantasmas. Sempre tive mais medo dos vivos.

De todo jeito, espectro ou não, eu segurei meu guarda-chuva por sobre o ombro e saí do corredor na ponta dos pés.

Eu precisava de uma rota de fuga.

Tinha visto que havia uma porta na cozinha que levava aos jardins. Se eu tivesse sorte e ela estivesse aberta...

O barulho de passos ecoou pela casa, mas eu não conseguia distinguir direito de onde vinham. Fiz o caminho de volta até a cozinha. A porta estava bem ali, a maçaneta reluzindo para mim.

Deus, por que eu tinha feito aquilo? Em que mundo invadir casas era uma boa ideia? Eu tinha sido tão estúpida, inconsequente e...

Girei a maçaneta com a mão escorregando de suor.

Trancada.

Merda.

Os passos se aproximaram e eu me colei à parede ao lado da porta, não ousando respirar. Não dava mais para voltar pelo corredor.

Fechei os olhos e segurei meu guarda-chuva até os nós dos meus dedos ficarem brancos.

Fiz o Nome do Pai.

Cética ou não, fui criada Católica. E eu sabia algumas orações e alguns golpes caso a primeira opção não funcionasse.

Uma sombra passou pelo batente da porta, se derramando pelo chão. Eu joguei meu guarda-chuva por sobre a cabeça e soltei um grito de guerra, meus olhos ainda fechados.

- AHHHHHHHHH!

Desci o guarda-chuva com toda a força que consegui reunir, batendo às cegas seja lá o que estivesse me perseguindo.

- Eu. Não. Vou. Morrer. Hoje! - gritei, desferindo um golpe a cada palavra, quase quebrando o cabo ao meio.

Mas tudo bem. Se ele partisse, eu ainda podia usar a cadeira.

- Mas que porra... Ai! Bianca? Bianca!

Bianca?

Mas como...

Tentei levantar o guarda-chuva para bater mais, mas, ao invés disso, fui puxada de uma vez.

Eu abri os olhos devagar e joguei a cabeça para trás para encarar um rosto familiar e muito, muito furioso.

Samuel puxou o guarda-chuva e consequentemente eu para mais perto, seu corpo enorme encobrindo o meu.

Sua voz era baixa e grave quando falou:

- É melhor você começar a dar explicações.

______________________❤️__________________

Oii, gentee!!

Publicando o capítulo mais cedo hoje até para testar esse novo horário e ver se vocês curtem <3

Como está a Páscoa de vocês? Esperam que estejam comendo muito chocolate kkkkk

Enfim, esse capítulo foi um que eu amei demais escrever e me diverti horrores. Ando meio complexada com a minha escrita esses últimos tempos, mas estou dando o meu melhor e espero que vocês estejam gostando!

Esse final... kkkkkkkk O que acharam? Parece que o Samuel e a Bia vão precisar ter uma conversinha muito em breve.

Vejo vocês na semana que vem!

Um beijo com muito amor,

Cecília.

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