dois

Acordei na manhã seguinte com água pingando no meu rosto.

Levantei de uma vez, olhando grogue para os lados até ser atingida pela maldita goteira de novo.

Será que a tortura nunca acaba?!

Estava chovendo lá fora, o céu cinza da manhã tão depressivo quanto eu. Chutei as cobertas para o lado e empurrei a cama para perto da parede, minhas primeiras palavras do dia sendo uma enxurrada de palavrões que fariam um prisioneiro de segurança máxima corar.

Não que eu me orgulhasse dos palavrões, mas porra, aquela casa estava testando minha paciência.

Era errado já sonhar com um punhado de joias que eu nem fazia ideia de onde começar a procurar?

Depois de arranjar um balde que cuidaria da goteira por um tempo, fui atraída até a cozinha pelo cheiro de torradas. Eu tinha acabado de passar pela porta quando minha mãe colocou um prato cheio na nossa mesa de quatro lugares.

­- Bem na hora - ela disse, piscando para mim.

Sorri e me sentei, já tratando de amainar meu apetite matutino.

Não consegui deixar de olhar para a minha mãe durante o café, só pensando na carta da noite anterior. Agora, na luz do dia, tudo aquilo parecia ter sido um sonho bobo criado pela minha mente fértil, mas as palavras da minha avó naquele papel eram tão reais quanto as torradas diante de mim, e eu esperava que as tais joias também fossem.

Levei horas para dormir na noite passada, pensando sobre aquilo e se deveria ou não contar tudo para a minha mãe. Mas ainda parecia cedo demais, louco demais. Eu precisava tentar achar as joias primeiro, ver se existia algum senso nas coisas que minha avó tinha escrito e só depois contar tudo. Não queria perturbar minha mãe à toa. Ela tinha coisas demais na cabeça no momento.

- Eu pedi a Kira para vir aqui e vocês saírem juntas um pouco - ela falou, se sentando na cadeira oposta à minha e se servindo de suco de laranja.

- Mãe! Não tinha motivo para incomodar ninguém... - reclamei depois de engolir um punhado de torrada. - E eu disse que ia tirar o dia para tentar arranjar um emprego, lembra? Não tenho tempo para ficar perambulando por aí.

- Sair com a prima que faz três anos que você não vê não é perambular, Bianca. - Decidi não fazer nenhum comentário sobre como eu tinha visto a família toda no enterro do meu pai, meses antes. Talvez não contasse. Todas as minhas memórias daquele dia eram nebulosas e os rostos tinham se transformado em borrões. - Vai ser bom para você. A Kira pode ser sua primeira amiga aqui em Santa Cruz.

O jeito que ela falou me fez rir. Como se eu fosse a adolescente que tinha acabado de deixar a cidade natal e estava prestes a viver grandes dramas e aventuras num lugar novo pela primeira vez.

Por um lado, minha mãe estava certa. Além dela, dos meus tios e Kira, quem eu tinha naquela cidade? Eu sabia que era onde tinha nascido e onde todas as gerações passadas do meu lado materno viveram e morreram, mas só. Minhas amigas estavam em Belo Horizonte e toda a vida que eu conhecia, junto com as memórias horríveis dos últimos tempos.

Minha mãe e eu tínhamos nos mudado porque sem meu pai, estava difícil viver na capital e as despesas pareciam só aumentar, mas nós duas sabíamos a verdade: a gente tinha vindo para Santa Cruz para tentar esquecer. Para escapar de fantasmas. Mas eu já tinha percebido que não importava o quão longe eu fosse, as coisas que me assombravam estariam comigo em qualquer lugar.

- Bia?

Ergui os olhos para a minha mãe. Nem tinha percebido que ela havia se levantado e estava indo em direção à porta.

- Acho que a Kira chegou. Vai trocar de roupa, rápido.

Soltei um suspiro resignado e arrastei a cadeira, subindo as escadas de volta para o meu quarto.

Kira era um ano mais nova que eu. Ela tinha se formado no Ensino Médio em dezembro e eu sabia que estava fazendo cursinho pré-vestibular porque minha mãe comentou comigo em algum momento. As lembranças que eu tinha dela eram poucas, para dizer o mínimo: uma garota quieta, sempre com um livro debaixo do braço e o cabelo cacheado mais lindo que eu já vira.

Tirei uma calça jeans desbotada do armário, uma camiseta e prendi meu cabelo em um rabo de cavalo. Reparei que minha raíz preta estava começando a aparecer e o rosa estava mais clarinho que o de costume. Fiz uma nota mental para achar um salão e dar um jeito naquilo antes que a coisa saísse do controle. Meses depois da morte do meu pai, eu tinha perdido boa parte do rosa e meu cabelo ficou comprido e mal cuidado. Eu costumava ter prazer em retocar a raíz e fazer aquelas hidratações malucas em casa, mas aquilo tinha sido só uma das coisas que perderam a graça depois de tudo que aconteceu.

Desci as escadas outra vez e encontrei minha mãe conversando no volume máximo com Kira. Ela segurava as mãos da sobrinha e sorria de orelha a orelha.

- Ah, finalmente, Bia!

Eu troquei um olhar com a minha prima e sorri sem jeito.

- Oi.

Kira foi até mim e me deu um abraço apertado.

- Oi, Bia. Como você tá?

Encolhi os ombros.

- Bem, eu acho. - Reparei nas sardas nas suas bochechas, os cabelos longos e cacheados e o sorriso bonito. Ela se parecia bem mais com a família da mãe dela, com a pele marrom reluzente e traços delicados. Ninguém que nos visse juntas diria que somos primas de primeiro grau.

- Eu pensei da gente sair e eu te mostrar um pouco a cidade. Faz tanto tempo que você não aparece aqui que nem deve se lembrar das coisas direito. Depois a gente pode almoçar em algum lugar lá da praça mesmo.

- Tudo bem - disse, por mais que não estivesse tão a fim assim. Eu tinha que arranjar um emprego e precisava traçar um plano para encontrar as joias da minha avó. Por mais que a minha prima fosse alguém legal, andar por aí com ela em Santa Cruz parecia uma perda de tempo.

- Toma, Bia, leva um guarda-chuva - minha mãe disse antes que a gente saísse. - E qualquer coisa é só ligar.

- Tá, mãe. - Dei um beijo na bochecha dela e segui Kira pelo caminho que levava até o portão. Não consegui deixar de reparar no modo como ela olhava para os lados, analisando o terreno ao redor.

- Parece uma selva, né? - disse, chutando uma pedrinha para o lado. - Sinto que a qualquer momento algum animal selvagem vai pular em cima de mim.

- Não! A sua casa é ótima, mesmo - ela disse, toda educada. - É só porque vocês acabaram de mudar. Daqui uns dias as coisas se ajeitam.

Sorri de lado. Para as coisas se ajeitarem primeiro eu precisava de um milagre.

Kira me guiou por Santa Cruz, pelas suas ruas de pedra e casas típicas brasileiras, daquelas que parecem ser habitadas por avós que fazem roupinhas de crochê para cada eletrodoméstico da cozinha. Não havia quase nenhum prédio e a torre mais alta era a da igreja matriz no centro da praça, que podia ser vista de qualquer ponto da cidade. As horas eram marcadas pelas badaladas do sino, e algo no som fez um calor estranho se espalhar pelo meu peito.

- Bem diferente de Belo Horizonte, né? - Kira falou, e percebi que ela me observava. - Já fui lá algumas vezes para consultas médicas e juro que pensei que fosse morrer. É tudo barulhento e caótico demais.

- Você acha? Sempre pareceu tão natural para mim...

Observei um bando de meninos jogarem bola em uma ruazinha de terra perto dali. Eles gritavam e corriam e faziam do jogo seu mundo inteiro.

- Talvez eu acabe me mudando em breve também - Kira contou. Ela parecia fazer um esforço enorme para se manter falando e não nos deixar em silêncio. Me perguntei se meus tios a tinham convencido a me fazer companhia naquele dia. - Isso se eu passar no vestibular, claro.

- O que você quer fazer?

- Letras. - Seus olhos castanhos brilharam e ela sorriu. - Penso em dar aulas, ou quem sabe ser uma estudiosa no campo da literatura... Juro que seria feliz para sempre!

Eu ri.

- Não sei se eu teria paciência para refletir demais sobre livros.

- Mesmo?

- É. - Passei um dedo pelo traçado da minha tatuagem. - Sempre fui mais dos números.

- Meu pai comentou que você também estava estudando para o vestibular - ela disse, olhando para mim de relance.

- Foi no ano passado. Mas eu não cheguei a fazer a prova.

- Não? Mas por...

Ela ficou quieta quando se deu conta. Suas bochechas ficaram vermelhas.

- Desculpa, Bia.

- Não, tudo bem. Não precisa ter cuidado com as coisas que fala perto de mim. Eu sei que a morte do meu pai é recente, mas não dá para evitar o assunto.

- Ele era um homem muito bom, sabia? Era o meu tio preferido.

Eu sorri.

- Será que isso não é por que ele era seu único tio?

- Ah, não. Eu tenho vários tios do lado da minha mãe. E todos não são nem metade do que ele era.

Eu assenti em engoli em seco. Eu pensava que se não evitasse falar do meu pai, tudo que tinha acontecido pareceria mais natural para mim, mas não era. Eu só conseguia fingir muito bem.

Kira estava me levando para o centro da cidade. Disse que queria me mostrar as lojinhas de roupas e falou que tinha um salão de beleza por lá quando comentei sobre querer retocar o rosa do meu cabelo. A gente estava a uns dois quarteirões de distância quando o sol que tinha começado a surgir atrás de uma nuvem foi bloqueado por uma construção do outro lado da rua, deixando nós duas na sombra.

Eu ergui o rosto e dei um passo para trás.

- Caramba - assobiei, estancando no lugar.

Kira interrompeu a caminhada e jogou um cacho que tinha caído sobre seus olhos para trás.

- De dar arrepios, né?

Ali, do outro lado da rua, estava a maior e mais sinistra casa que eu já tinha visto.

Eu quis chegar mais perto dos portões enormes, mas algo me impediu. Fiquei ali do outro lado, observando a casa de dois andares com janelas demais, um telhado ornamentado e uma varanda ampla que lembrava um pouco aqueles antigos casarões de novelas de época da Globo. Não só a casa era grande, como todo o terreno cercado pelos muros de pedra. Havia um caminho sinuoso que se estendia por metros até se fundir às escadas que levavam ao primeiro pavimento da mansão.

- Acho que é a maior casa de Santa Cruz - Kira comentou, ficando ao meu lado. - Acho, não. Tenho certeza.

- Quantas pessoas moram aí?

- Nenhuma.

Arregalei os olhos para ela.

- Tá brincando!

- Não. - Ela riu da minha cara. - Só um senhorzinho morava na casa, mas ele morreu há uns seis meses.

- Como alguém pode morar sozinho num lugar desses?! - Eu não tinha medo de coisas como fantasmas e assombrações, mas, pelo amor de Deus, tudo tem limite. Eu não entraria num lugar daquele nem se minha vida dependesse disso.

- Eu não sei. Vai ver ele era meio maluco. - Kira se inclinou para mim e sussurrou: - Dizem que quem achou ele morto na cama foi o jardineiro que vinha cuidar do terreno uma vez por semana.

- Que horror...

- Pois é. Mas quer saber da melhor?

Eu ergui uma sobrancelha para ela, estranhando o lado mórbido daquela garota à primeira vista adorável que eu chamava de prima.

- Tem algo de bom no que você acabou de dizer?

- Não. Mas escuta essa: - Ela chegou mais perto e disse: - Sabe a nossa, avó? Ela trabalhou nessa casa. Por anos.

Foi como se o planeta tivesse ficado no mudo de repente. A única coisa que eu conseguia ouvir era o zunido nos meus ouvidos, indicando minha pulsação acelerada.

As palavras escritas e quase apagadas pelo tempo vieram a minha mente em rápida sucessão. Em um segundo, meu cérebro fez tantas associações malucas que fiquei tonta.

- A vovó trabalhava nessa casa? - perguntei, tentando ganhar tempo e não mostrar que estava prestes a sofrer um ataque.

- Sim. Sua mãe não contou que ela costumava trabalhar com faxina?

- Contou, mas... - Eu voltei a olhar para aquele mausoléu. - Meu Deus. Coitada dela para limpar esse lugar!

Kira riu.

- Eu também vivo pensando nisso. E olha que esse foi o último lugar em que ela trabalhou antes de falecer. Tadinha, às vezes fico pensando se o trabalho pesado não contribuiu para os problemas de coração que ela tinha... - Kira mordeu o lábio inferior. - Eu queria ter conhecido ela bem mais.

- Eu também.

Observei aquelas janelas escuras, a varanda e o terreno ao redor. Será que aquele era o lugar onde as joias estavam escondidas?

Só podia ser. Era o lugar ideal, com tantos cômodos e cantos secretos. Mas por que ela guardaria as joias ali? E, mais importante, como uma senhorinha que trabalhava como faxineira mesmo aos sessenta anos teria colocado as mãos em uma fortuna daquelas?

- Como chamava o homem que morava aí? Era para ele que a vovó trabalhava?

- Era - Kira confirmou. - O nome era Antônio, eu acho. A família dele é bem antiga na cidade.

- Qual família?

Tentei não parecer desesperada por respostas, mas a discrição nunca foi um dos meus traços mais fortes.

Minha prima pensou por um tempo.

- Dultra, acho. Mas não tem muitos mais deles por aqui.

Dultra.

Caramba, a casa era mesmo aquela!

- Então ninguém herdou a casa ainda?

- Na verdade, sim. O Seu Antônio tinha uma filha que morreu há muitos anos, então a herança passou para o neto dele. Até onde meu pai me contou, ele é o único herdeiro disso aí tudo.

- E ele não mora ali?

- Não. A casa só passou para o seu nome recentemente com o inventário do Seu Antônio. Ouvi dizer que ele pretende vender tudo, mas ainda não vendeu. Nem colocou um anúncio.

Roí a unha do polegar.

Eu precisava de mais respostas.

- Nossa, o cara vai ficar podre de rico, né? - sondei, tentando parecer casual.

- Nem fala! Ele nem vai precisar trabalhar mais, se não quiser.

- Então ele trabalha?

- Sim. - Kira voltou a andar e eu corri para acompanhá-la. - Tem um bar lá na praça. Fica o dia todo lá.

- Mesmo?

- É. Eu fico pensando como deve ser herdar uma fortuna dessas sendo novo desse jeito... Uma pessoa de menos juízo já teria vendido e perdido tudo.

- Então ele é jovem?

- Deve ser um pouco mais velho que você. Parece ser alguém legal. Lembro de ver ele de longe lá na escola. Nossa diferença de idade não é muito grande. Ele ficava muito sozinho.

- Por quê?

Aquela devia ser o quê? A milésima pergunta que eu fazia em um espaço de trinta segundos?

Não importava, Kira parecia feliz em responder minhas dúvidas. Talvez assim ela não precisasse se esforçar para tentar achar um assunto em comum comigo.

- Ele é... Hum... na dele, eu acho. Não era um dos garotos populares do Ensino Médio que as garotas ficavam falando o dia inteiro. Não quero ser idiota, mas acho que tem a ver com como ele se parece.

- Como assim?

Kira encolheu os ombros.

- Se um dia você conhecer ele, vai notar.

Deixei o assunto morrer. Não queria mostrar interesse demais, por mais que tivesse que me segurar para não olhar por sobre o ombro e observar aquela casa.

Em algum lugar lá dentro, minha avó tinha escondido joias para que a nossa família saísse do sufoco.

Eu precisava encontrá-las, e, pelo jeito, o único modo de fazer aquilo era através de um rapaz que comandava um bar no centro da cidade.

Estalei os dedos, minha cabeça a mil por hora.

Um bar, certo?

Agora eu já sabia exatamente onde procurar um emprego.

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Oii, gente!! Como vocês estão??

Pretendo postar capítulo novo todo domingo, então marca aí na sua agenda que toda semana Caça Tesouros e Amores vai estar aqui só esperando por você <3

Enfim, estou super ansiosa para ler o que acharam desse capítulo!! Se sentiram instigados por esse pequeno mistério no final? E, o mais importante, estão ansiosos para conhecer o Samuel?

Se sim, não se esqueçam de ficar atentos às notificações na próxima semana...

Um beijo e até breve,

Ceci.

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