dezessete



Samuel me levou até um dos banheiros da parte de cima. Ele era todo feito de ladrilhos vermelhos e detalhes em dourado, como a pia e a moldura do espelho sobre ela. Uma banheira gigante, que serviria muito bem de piscina pra mim, ficava junto à parede.

- Eu vou tentar achar umas toalhas limpas e alguma coisa pra você vestir - ele disse depois de girar as torneiras e deixá-las abertas para a banheira encher. - O meu avô deve ter guardado algumas roupas da minha mãe. Você não se importa de usar um vestido de uma pessoa falecida, né?

Sentei na beirada da banheira.

- Graças a você eu vou dormir numa casa que parece infestada de fantasmas. Sinceramente, o vestido da sua mãe é o menor dos meus problemas.

Samuel fez uma careta.

- Eu já admiti que fui um idiota por não trocar as velas! O que mais você quer?

- Um jantar quentinho - disse, caprichosa. - E bem feito!

Samuel fez um gesto brusco com a mão e me deixou sozinha no banheiro. Só quando ele foi embora que me permiti sorrir.

Eu amava encher o saco dele.

Enquanto Samu revirava a casa em busca de toalhas e roupas limpas, peguei o celular e liguei pra minha mãe.

- Bianca! Onde você tá? - Ouvi o eco do trovão pela chamada, o mesmo que rasgou o céu pela janelinha do banheiro e me fez encolher no lugar. - O mundo tá caindo lá fora!

- Eu sei, mãe, não se preocupa. Eu tô bem. - Suspirei, tentando encontrar as palavras certas, mas não conseguindo. - Eu precisei ajeitar umas coisas com o Samuel na casa dele, mas o carro enguiçou e eu tô presa aqui até amanhã cedo.

- Como é que é?

Eu me levantei da banheira e comecei a andar de um lado para o outro no cômodo enorme.

- É. A gente precisava resolver umas coisas do bar, sabe?

- Coisas do bar? Na casa dele?

- Mãe, não é o que você tá pensando...

- E agora vocês vão dormir aí? Juntos?

- Em quartos separados.

Ouvi um suspiro pesado do outro lado da linha.

- Bianca, minha filha, você tem camisinhas?

Eu esquentei dos dedos dos pés até o último fio de cabelo.

- Que camisinha, mãe?! Tá doida?!

- Eu sei que você é jovem, Bia, mas por isso mesmo precisa ter juízo. Você já não toma pílula e...

- Mãe, pelo amor de Deus!

Mas ela não parava.

- Então camisinha é o melhor método para prevenir filhos e doenças.

- Mãe, não tem camisinha nenhuma! Não tem transa nenhuma. Será que você...

Ouvi alguém pigarrear atrás de mim.

Dei um pulo no lugar a tempo de ver Samuel na porta, com uma toalha e um vestido branco nos braços.

- Mãe, eu preciso desligar - falei, pensando se seria mais fácil e rápido eu me matar me jogando pela janela ou arranjando um jeito de me eletrocutar na banheira. - Até amanhã.

Samuel entrou sem nem olhar para mim e pendurou a toalha e o vestido nos suportes da parede.

- Eu te espero lá embaixo, para o jantar - ele falou.

- Claro, claro. Já vou descer. Valeu pela roupa.

- Nada. Disponha. Eu...

Mas fechei a porta do banheiro na cara dele, sem conseguir aguentar mais nenhum segundo de contato visual.

Porra.

Escondi o rosto nas mãos por um instante e respirei fundo.

Noite longa, essa.

Eu fiquei submersa na água quente da banheira, me sentindo uma princesa, uma ricaça que não tinha nenhuma outra preocupação no mundo que não fosse qual casaco de camurça eu usaria para o próximo jantar beneficente.

Mas então eu abri os olhos e me vi naquele banheiro enorme, onde até minha respiração parecia ser capaz de fazer eco. Sabia que Samuel estava no andar de baixo, e eu ali, sozinha, mergulhada na banheira.

Levantei depressa e alcancei a toalha, a enrolando no meu corpo. A chuva não dava trégua lá fora e os raios caiam noite adentro.

Depois de me enxugar, passei o vestido branco que Samuel tinha encontrado pela cabeça e me coloquei na frente do espelho. Ele era rendado, com mangas só um pouco bufantes e um caimento leve e etéreo. Soltei meu cabelo e deixei que caísse pelos meus ombros enquanto ajustava o cintinho falso do corpete.

Não combinava com o meu estilo usual, mas mesmo assim era lindo.

Eu ainda estava encarando o meu reflexo no espelho quando houve um pique de energia. Levei um susto e esperei por alguns segundos para ver se voltava, mas nada aconteceu.

Merda.

Acendi a lanterna do meu celular e corri pra fora do banheiro.

- Samuel?

Fui na direção das escadas, a escuridão se fechando atrás de mim como uma bruma maciça.

Eu estava quase fazendo xixi na roupa.

Desci as escadas, só que esqueci que a maioria dos degraus fazia um barulho que mais parecia um gemido, dando a sensação de que havia alguém atrás de mim.

Corri escada abaixo, quase rolando nos degraus.

- Samuel?!

- Bia? Eu tô aqui.

Cheguei ao primeiro andar com a respiração ofegante.

Vi uma luz tremular na cozinha e a segui. Uma sombra gigantesca - que no fim se revelou ser o Samuel - apareceu no corredor para me encontrar.

- Tá tudo bem?

Assenti e respirei aliviada quando cheguei perto o suficiente para sentir seu calor.

- Sim. A luz acabou e eu fiquei um pouco assustada, só isso.

- Eu já ia lá em cima te procurar. Achei umas velas no armário. Sorte que deu pra terminar de cozinhar a tempo.

O segui bem de perto, quase tropeçando nos seus calcanhares quando chegamos na cozinha. A mesa estava posta, com as velas brilhando naqueles castiçais antigos que ficavam na sala de estar e uma toalha de mesa azul escura.

- Não é nada muito elaborado - ele disse, tirando as panelas do fogão. - Arroz, frango, salada... Era o que eu tinha trazido pra cá no outro dia.

Parei em frente à mesa. A luz das velas produziam padrões estranhos no rosto dele, ao mesmo tempo que pareciam deixar mais duras as linhas do maxilar e das maçãs do rosto. Seus olhos surgiam e desapareciam. Algumas vezes eu captava o brilho castanho, em outros o verde.

- O vestido ficou bom em você - o ouvi falar, e só então notei que Samuel me observava tão atentamente quanto eu o observava.

- É. Pois é. Sorte que a sua mãe tivesse o meu tamanho. - Sorri e voltei minha atenção para o jantar. - Você caprichou.

- Então não tá mais com raiva de mim pelo carro?

- Eu ainda preciso experimentar a comida, apressadinho. - Samuel riu e veio na minha direção, arrastando a cadeira de uma das pontas para que eu pudesse me sentar.

- Ah, então agora você é um cavalheiro?

- Não quero passar a noite na mesma casa que uma garota raivosa por causa de um carro enguiçado.

- Muito bom. - Eu empinei o nariz e me sentei na cadeira. - Nesse caso, pode me servir também.

- Danadinha.

Samuel distribuiu a comida e se sentou na minha frente. Observei suas mãos grandes manusear os talheres. Meu olhar subiu pelo seu peito, até o ponto onde os botões da sua camisa estavam abertos.

Pisquei, tentando me concentrar na comida.

Eu me sentia um tanto febril. Meio abobalhada.

Devo estar ficando doida.

A verdade é que eu vinha pensando no Samuel mais do que devia. Mais do que seria normal em alguém que era meu patrão, no máximo um parceiro no crime. Mas, desde aquele dia na cachoeira, algo estranho aconteceu comigo.

Samuel tinha mergulhado por achar que eu estava em perigo. Ele, que tinha um trauma absurdo com água, que tinha visto os pais morrerem por causa delas quando ainda era criança, tinha feito aquilo por mim. E apesar de ser um chato completo, também tinha me ensinado a andar de bicicleta, me fazia rir até minha barriga doer, era gentil, atencioso e...

- Bia?

Eu olhei para ele, assustada.

- Oi?

- A comida tá boa? - Seu tom indicava que já tinha feito aquela pergunta mais de uma vez, mas eu não tinha ouvido.

- Ótima - falei, pegando uma garfada. - Muito boa.

- Que bom.

- Onde você aprendeu a cozinhar desse jeito?

Ele sorriu de leve.

- Quando se tem um bar, é meio inevitável aprender algumas coisas. Mas a minha avó era uma ótima cozinheira. Ela me ensinou tudo o que eu sei.

Houve uma pausa em que só o barulho dos pratos, talheres e da chuva lá fora podia ser ouvido.

- Eu posso fazer uma pergunta? - arrisquei minutos depois, já na metade do meu prato. - Sobre o seu avô?

Samuel ficou imóvel por um instante, como que considerando.

- Pode.

- Por que acha que ele não era capaz de se apaixonar? - perguntei, me lembrando do que ele tinha dito depois de acharmos as fotos no sótão.

Samuel suspirou e pousou o copo de suco que estava bebendo na mesa.

- Ele era rígido. Mesmo antes da morte da minha mãe. Eu não lembro de ter visto ele sorrir uma vez na vida. Parecia não amar ninguém, com exceção dela.

- Mas e você? Ele não se importava com você?

Samuel não hesitou.

- Meu avô me odiava.

A frase veio com uma certeza que me fez estremecer. Como se aquele homem o tivesse odiado desde sempre, desde o nascimento.

Antes que eu pudesse insistir no tópico, ele perguntou:

- Você sente falta de Belo Horizonte?

Pisquei com a bruta mudança de assunto, o foco da conversa passando a ser eu.

Pensei por um momento.

- Um pouco, acho. Eu gostava de passear, ir em festas, parques, no cinema. Não tanto nos últimos tempos, mas era algo que a antiga eu gostava.

- A antiga você?

Fiz que sim com a cabeça.

A garota que não tinha perdido o pai nem sido abusada em uma festa curtia muito mais o mundo onde costumava viver.

Por favor, não pergunta sobre isso, desejei comigo mesma. Não agora.

Samuel pareceu ler meus pensamentos, porque o que disse foi:

- Você é feliz aqui em Santa Cruz?

Olhei para o rosto dele iluminado pelas velas. Aquele momento parecia suspenso no tempo. Não parecia real. Me fazia pensar que eu podia derramar meu coração inteiro naquela mesa e ficaria tudo bem, porque mesmo as coisas ruins desapareceriam na luz do dia.

- É meio difícil dizer que sim, ou que não - confessei. - Assim que cheguei aqui, comecei essa busca doida pelas joias, consegui emprego num bar de esquina e me tornei parceira de um gigante rabugento e gentil. - Sorri para o homem sentado do outro lado. - Mas eu acho que sim. Em parte por sua causa.

E lá estava. Palavras que eu não podia pegar de volta. Que eram o que eram.

Samuel apenas me olhou por sobre as velas, pratos e talheres reluzentes. Em um momento insano, quis que ele jogasse tudo aquilo no chão e me alcançasse. Que me tocasse.

Quando isso começou? Desde quando olho pra ele desse jeito?

- Bianca - ele disse, a voz rouca chegando até mim na escuridão, fazendo todos os pelos do meu corpo se eriçarem.

Arrastei a cadeira bruscamente.

- Eu fico com a louça.

Recolhi os pratos sem olhar pra ele, tão constrangida pelo que estava sentindo que não conseguia nem pensar.

Samuel e eu arrumamos a cozinha em silêncio. A luz não dava nem sinal de voltar. Quando acabamos, já passava da meia-noite e ele me mostrou um dos quartos do andar de cima.

- Eu vou ficar naquele ali - ele falou, apontando para a porta um pouco mais adiante no corredor. - Qualquer coisa me chama.

- Tá bom. Boa noite.

Ele deu um passo na minha direção, a boca aberta como se fosse dizer alguma coisa. Congelei no hall da porta, meio que esperando, meio que desejando fugir para as montanhas.

Então ele sorriu, assentiu e falou:

- Boa noite.

Levei minha vela para o quarto e fechei a porta.

Meu Deus, meu Deus, meu Deus.

Algo tinha acontecido sem eu perceber, sem que eu pudesse impedir.

De repente, eu queria que Samuel Dutra, o meu chefe, o cara que me dava nos nervos e que eu tinha vontade de matar na maioria das vezes, me beijasse.

Era a coisa mais maluca que já tinha me acontecido.

Me deitei na cama e puxei as cobertas que Samuel tinha preparado enquanto eu estava no chuveiro. Eu olhava para os cantos escuros do quarto como que esperando algo assustador aparecer, mas a verdade era outra:

Algo assustador já tinha aparecido. E estava dentro de mim.

Acordei no meio da noite quando houve um baque no andar de baixo.

Me levantei no colchão, completamente desperta, o sonho que estava tendo sobre jantares, velas e beijos já desaparecendo.

Fiquei imóvel, meu coração quase saindo pela garganta enquanto apurava os ouvidos e rezava para ter só sonhado com aquilo. Meu corpo inteiro formigava de medo. Esperei, esperei e esperei. E estava prestes a me deitar de novo quando os baques continuaram, quase como se alguém estivesse mexendo com os móveis.

Pulei da cama e fui até a porta do quarto, a abrindo devagar. Não sei como arranjei coragem para atravessar o corredor e entrar no quarto onde Samuel estava dormindo, mas consegui. Parte de mim esperava encontrar a cama vazia e poder suspirar aliviada ao perceber que a origem do barulho era só o meu chefe fazendo um lanchinho noturno, mas foi só ver o contorno gigantesco do seu corpo na cama de dossel para perceber que a realidade era outra.

- Samuel - sussurrei, chegando perto dele e sacudindo seu braço. - Samuel, acorda.

Ele abriu os olhos e se levantou de uma vez, quase me acertando com tudo.

- Bianca?

O cobertor deslizou dos seus ombros e eu percebi que ele estava sem camisa, o corpo delineado pela luz fraca que entrava pela janela.

Fiquei encarando por um segundo, até os barulhos no andar de baixo recomeçarem e eu me obrigar a parar de agir como uma adolescente cheia de hormônios.

- Tem alguém na casa - falei, agora quase grudada nele, tremendo de medo. - Tá ouvindo?

Samuel prendeu a respiração junto comigo e ouviu. Quando um baque, mais alto que os outros, ecoou pelos cômodos vazios, ele afastou as cobertas de uma vez e se levantou.

Observei ele tatear a mesinha de cabeceira em busca do celular. Pelo menos ele estava vestindo calças, o que ajudou bastante a minha concentração para lidar com tudo aquilo.

- Tá sem sinal. Deve ser por causa da tempestade - ele disse para mim depois de discar uns números e aguardar a chamada. - Não dá pra ligar para a polícia.

- Puta merda, Samuel!

Me encolhi diante dos barulhos. Era só questão de tempo até que a pessoa - ou fantasma - em questão decidisse explorar o andar de cima.

- Você espera aqui - ele falou, se movendo pelo quarto e pegando o que parecia ser um suporte de cortina que agora não tinha mais utilidade e havia se transformado em entulho jogado em um canto. Samuel o segurou como um porrete.

- Eu não vou ficar aqui sozinha! - protestei. - Eu vou junto.

- Bianca, dá para você parar de ser teimosa uma vez na vida? Pode ser perigoso.

- Por isso mesmo! Você vai precisar de ajuda.

Então eu fui até a penteadeira na parede oposta e peguei o banquinho de madeira maciça que ficava na frente dela.

- Tô pronta.

Samuel balançou a cabeça para mim, mas deve ter notado que seria inútil tentar me impedir, por isso só disse:

- Você vai ficar atrás de mim, entendeu?

Bom, com aquilo eu podia concordar.

Ele abriu caminho pelo corredor, o suporte da cortina jogado por sobre um ombro enquanto eu levantava o banquinho em cima da cabeça.

- Ele deve pensar que a casa tá vazia - Samuel sussurrou pra mim quando chegamos ao topo das escadas. - Deve ser um ladrãozinho mixuruca. Quando eu gritar, você acerta com toda força, entendeu? Do mesmo jeito que usou aquela sombrinha em mim.

Assenti, o medo dando lugar à adrenalina e à vontade de matar.

- Deixa comigo.

Nós descemos as escadas muito, muito, devagar, tentando não produzir nenhum ruído.

Já estávamos quase lá embaixo quando vi a sombra do que definitivamente era um homem perto da lareira. Os móveis estavam todos tortos e fora do lugar, como se ele tivesse esbarrado em cada um na escuridão.

Ele se curvou sobre o próprio corpo e deu um passo em falso, derrubando um vaso decorativo que se espatifou em mil.

- No três - Samuel disse, mexendo só a boca para que eu pudesse ler seus lábios. - Um, dois... - Houve uma pausa dramática. - Três!

- AHHHHHHHHH!

Esqueci a regra de ficar atrás dele e fui com tudo pra cima da sombra assustadora, armada com meu banquinho.

Samuel veio correndo atrás de mim, a força dos seus passos fazendo o chão tremer.

Ele gritou, eu gritei, e a sombra, definitivamente, gritou.

Desci o banco nas costas dele.

O cara desmoronou no chão como um saco de batatas.

Samuel já estava prestes a empalá-lo com o suporte da cortina quando o homem colocou as mãos na frente do corpo e gemeu algo como: "Pelo amor de Deus, se eu morrer a Juliana me troca por outro."

- Juliana?

Samuel largou seu porrete improvisado, a confusão estampada no rosto.

- Pedro?

Foi quando meus olhos se ajustaram o suficiente à escuridão para que eu reconhecesse o rapaz esparramado no piso da sala, todo desgrenhado, agora bastante dolorido e, com certeza, bêbado.

- Samuel! Bia! - Ele olhou para gente como um idiota, um sorriso bobo nos lábios. - Finalmente achei vocês! Eu fui pra casa do Samuca, mas... - Ele fez uma pausa, como se tivesse se esquecido do que ia falar. Então continuou, como se nada tivesse acontecido: - Mas não tinha ninguém. Tudo trancado. E eu sei que o Samuca não sai de casa, não é, Samuquinha? Então eu pensei: ele deve tá com a Bia! E eles devem estar na mansão, porque é o lugar chique pra onde eu levaria uma mina pra poder curtir uns pe...

- Cala a boca, Pedro, antes que eu te acerte com essa coisa - Samuel o interrompeu, furioso, mas mesmo na escuridão notei o rubor nas suas bochechas. Quis pisar no seu pé e mandar ele calar a boca. Eu estava muito interessada no que o Pedro tinha a dizer. - Como você entrou aqui?

- Pelo portão, ué - Pedro disse, como se fosse óbvio. - E uma das janelas da sala estava aberta.

Samuel me olhou com as sobrancelhas erguidas.

- Foi você quem passou por último! Não lembrou de trancar?

- Ah, agora eu sou a culpada? - Larguei meu banco no chão com um baque. - Se você não fosse um motorista tão negligente, a gente nem estaria aqui. E ainda bem que eu não lembrei de trancar a merda do portão, por que se tivesse, o Pedro estaria na rua, debaixo da chuva!

- Problema dele. - Samuel segurou Pedro pela gola da camisa e o levantou de uma vez, mesmo com seus protestos de que achava que tinha quebrado uma costela e que estava prestes a vomitar. - Eu devia deixar ele dormir na rua por um dia, pra quem sabe assim criar juízo! - E sacudindo o amigo, perguntou: - Por que diabos a Juliana te expulsou dessa vez?!

- Acho que eu bebi demais no bar do seu Almir - ele falou, o corpo molenga indo pra frente e pra trás. - A Ju não gostou, não.

- Ah, então além de tudo, você ainda vai beber em outro bar...

- Era o único que estava aberto!

- Pelo amor de Deus, dá pra vocês pararem? São três da madrugada! - Fui até eles e peguei Pedro pelo braço. - Você, vai tirar a roupa molhada e dormir no quarto aqui debaixo, entendeu? Vou colocar a porra de um balde do lado da cama e não quero ouvir você zanzando pela casa até de manhã.

- Tá bom, Bia - ele disse, se inclinando pra me abraçar, mas eu o afastei com o nariz franzido pelo fedor de cerveja.

- Nem vem, ou eu te acerto com o banco de novo. - Me virei pra Samuel. - Você, vai arrumar umas roupas pra ele. E vê se acha algo de doce na cozinha pra eu enfiar pela goela dele e ver se ajuda um pouco.

Samuel parecia querer protestar, mas eu o olhei de um jeito que dizia que meu banco ia parar nas costas dele se desse um pio, então subiu as escadas com passos firmes.

Uma meia hora depois, Pedro já estava esparramado na cama do quarto que ficava no primeiro andar, roncando tão alto que dava para ouvir do corredor.

Samuel e eu subimos as escadas outra vez.

- Eu vou acabar com a raça dele de manhã - o ouvi resmungar. - Cara idiota.

- O Pedro bebe demais - comentei, irritada pela perturbação da noite, mas também preocupada com ele.

- O pai dele era alcoólatra. Sei lá, acho que o vício tá nele também, mas num grau diferente. - Samu passou as mãos pelo cabelo. - Ele tem que tomar juízo. Cedo ou tarde, a Juliana vai dar um pé na bunda dele pra valer, e aí já era.

- Você se preocupa com ele - comentei.

- Me preocupo, porque sou um idiota. Devia deixar ele quebrar a cara.

- Mas você não é assim.

- Não. - Samuel suspirou. - Pedro é o melhor amigo que eu já tive. E por mais que me irrite, me sinto responsável por ele. E acho que ele se sente responsável por mim também.

A gente parou na porta do meu quarto, mas eu hesitei antes de entrar.

- Tá tudo bem? - Samuel perguntou.

- Talvez eu esteja com um pouco de medo de dormir sozinha agora, depois de tudo isso. Vou ficar imaginando se não tem alguém zanzando pela casa - admiti, me sentindo bastante patética.

Samuel coçou a bochecha e trocou o peso de uma perna para a outra.

- Eu posso... arrumar uma cama pra mim no chão, se você quiser - ele ofereceu. - Eu sei que a casa é assustadora. Principalmente durante a noite e com uma chuva dessa.

- A cama é gigante - eu disse, sabendo que devia ter perdido o juízo, que as minhas intenções poderiam ser lidas nas entrelinhas por qualquer idiota. Mas talvez Samuel fosse bem lerdo. E talvez isso fosse uma bênção, para que eu não me metesse em problemas. - A gente pode fazer uma barreira de travesseiros, sei lá. Eu me sentiria mal se você dormisse no chão por minha causa.

Samuel não disse nada. Ele apenas foi até seu quarto mais adiante no corredor e voltou com almofadas e cobertas nos braços.

Sorri pra mim mesma, meu coração bobo amolecendo no peito.

- Você tem certeza? - ele disse quando comecei a ajeitar a cama para nós dois. - Eu rolo muito durante a noite. E se eu te esmagar?

Eu ri.

- Bom, acho que vou ter que aceitar o risco.

- Ei, é sério. Eu poderia te machucar. Eu mexo muito, principalmente quando sonho.

- Samu, relaxa. É só por umas horinhas. - Eu deitei do meu lado da cama e ele se sentou no dele, o colchão afundando com seu peso. Eu tinha feito uma espécie de barricada com os travesseiros, nada muito elaborado. A verdade é que, por mais que eu quisesse ficar perto dele, a barreira também me trazia certo conforto. Eu confiava no Samuel, mas ainda assim... Era um cara. Um homem. E o meu desejo às vezes ficava emaranhado com o medo de ser tocada outra vez. - Sobre o que você sonha? - perguntei, minha voz suave no quarto totalmente escuro. Samuel ainda estava sentado, parecendo uma estátua de mármore, todo receoso de ficar mais perto.

- São mais pesadelos, na verdade.

Esperei, o som dos trovões ao longe e a chuva no telhado eram as únicas coisas que eu podia ouvir além das nossas respirações.

- Sobre os meus pais, na maioria das vezes.

Observei seu rosto. Ele encarava o outro lado do quarto. Parecia não conseguir olhar pra mim.

- Como foi que aconteceu? - perguntei, e meu tom deixava claro que ele não precisava falar se não quisesse.

Samu respirou fundo e, antes que começasse a falar, eu já sabia que tinha tomado uma decisão. E que confiava em mim o suficiente para compartilhar aquela parte da sua história.

- Eles gostavam de acampar. Sempre me levavam junto com um casal de amigos que tinham na época. A gente armava barracas, fazia fogueira, pescava... Eram fins de semana muito bons, pelo que eu consigo lembrar. Minha mãe brincava comigo o dia todo e às vezes me levava até a parte rasa do rio em que meu pai e o amigo costumavam pescar. A gente acampava mais distante da margem. - Ele ficou em silêncio por muito tempo. Achei que não falaria de novo e estava quase fechando os olhos quando sua voz cortou o silêncio. - Eu não sei direito o que eu estava pensando. Acho que vi algo colorido na água, um peixe, sei lá. Só lembro de me afastar do acampamento e correr pro rio. Achei que podia nadar. Minha mãe tentava me ensinar sempre na banheira aqui de casa, mas eu não conseguia. Nunca consegui. Então eu entrei na água. Lembro de ir andando devagar, de não sentir nem um pouco de medo, porque meu pai ia de barco ali o tempo todo. Só que, naquele fim de semana, a gente não tinha levado o barco. - Samuel engoliu em seco. - Eu não estava longe da margem. Eu tinha seis anos e era alto para a idade, mas eu tinha noção o suficiente para saber que se fosse mais longe, não daria pé pra mim. Mas a correnteza me pegou. Do nada, sem eu esperar. Foi muito forte e me arrastou para longe.

- Ah, Samuel... - falei, já sabendo o que viria, lágrimas involuntárias se formando no canto dos meus olhos.

- A minha mãe me viu primeiro - ele disse, a voz firme, mas a dor em seu rosto era tão visível que me atingiu com a força de um raio. - Ela gritou e correu. Quando pulou na água, conseguiu me pegar e tentou nadar até a margem, mas a correnteza era muito forte. Meu pai apareceu correndo, vindo da barraca. Ele me pegou pelos braços quando minha mãe conseguiu me levantar acima do nível da água. Ele deve ter tentando pegar ela também, mas não deu. Meu pai me jogou para os braços do casal que tinha ido com a gente e foi atrás dela. Eu só me lembro de ver eles sendo arrastados pela água, enquanto aquelas pessoas gritavam e eu chorava. A minha mãe submergiu primeiro e depois meu pai também desapareceu. Eles só foram encontrados dias depois.

Desfiz a barreira de travesseiros e me sentei sobre as pernas. Samuel parecia mergulhado na própria dor, tão longe de mim que demorou um tempo para perceber que eu o tinha tocado.

- Eu sinto muito pelo que você passou - falei. Palavras comuns, quase sempre sem significado. Mas eu sentia, de verdade. Aquele homem era bom demais, apesar das coisas horríveis que tinha presenciado. O quanto ele sufocava aqueles sentimentos? Quantas coisas foram arrancadas dele naquele dia no rio?

- Obrigado. - Ele piscou e tentou olhar para mim. - Eu não falo muito sobre isso. É ruim. Dói. - Vi o modo como ele se esforçou para abrir um sorriso cansado. - Mas não doeu tanto com você.

Eu o abracei. Nem ligava mais. Não manteria a fachada de fodona se aquilo significasse afastá-lo de mim.

Samuel me envolveu inteira com seus braços, a cabeça enfiada na curva do meu pescoço. Eu queria poder segurá-lo da mesma forma, cobrir o corpo dele com o meu e tentar absorver todas as coisas ruins.

Eu queria perguntar sobre o depois. Como ele tinha lidado com aquilo, por que não se dava bem com o avô e tudo o que o levara até ali. Até mim, naquela noite escura e chuvosa.

Mas não importava. Não no momento.

Deslizei dos seus braços para o seu colo e senti sua mão acariciar de leve meu cabelo. Parte de mim queria gritar "o que a gente está fazendo?!", enquanto a outra só desejava viver aquele instante pra sempre.

- Esteja aqui quando eu acordar - pedi, me sentindo muito vulnerável de repente, querendo encapsular a segurança que ele me transmitia e tê-la comigo pra onde fosse.

Samu não disse nada, mas se deitou ao meu lado e deixou com que eu descansasse a cabeça no seu braço estendido, me acariciando de leve e sem parar.

Eu estava caindo no sono, rápida e profundamente, por isso não sei se foi real ou imaginação quando o ouvi dizer:

- Fico pra sempre se você me deixar.

_____________________❤️___________________

Oii, gente!! Tudo bem?

O capítulo saiu mais tarde, mas saiu <3 E eu estou louca para saber tudo que vocês acharam!!! Espaço livre para surtos e desabafos.

Espero que vocês tenham uma ótima semana e a gente se vê na semana que vem!

Um beijo,

Ceci.

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