dez
No espaço de uma semana, uma pessoa caiu de uma goiabeira em cima de mim e fui acertado com tantos golpes de sombrinha na cabeça que comecei a entender como o Pica Pau se sentiu naquele episódio da pipoca quente na manteiga.
Fui criado pela dona Celina, uma senhorinha que sempre foi a mãe da paciência e me ensinou a ser igual, o que me concedia altos níveis de tolerância. Mas eu não tinha sangue de barata, e me perdoe se depois dos eventos traumáticos dos últimos dias causados pela mesma mulher - a mesma mulher impossível, faladeira e maluca - eu estivesse a um segundo de esganar alguém.
E por alguém, eu digo a Bianca.
Sempre a Bianca.
- Você é doida?! - falei, minha voz saindo mais como um rugido do que qualquer outra coisa. Minha cabeça latejava onde ela tinha me acertado com a sombrinha. Repetidas vezes.
- Eu tenho a impressão de que você já falou essa mesma frase umas mil vezes - ela murmurou, mas o rosto estava lívido, como se ainda tentasse entender o que eu estava fazendo ali.
- Bianca!
- Você pode parar de gritar?
- Parar de gritar? - Eu levei as mãos ao cabelo para me impedir de sacudi-la. - Me perdoa. É totalmente minha culpa eu estar nervoso por você ter entrado escondida na minha casa e tentado me matar!
- Que exagero. Eu não estava tentando matar você. - Ela ergueu a sombrinha e eu me esquivei para impedir de ser atacado de novo. - Eu só estava me defendendo.
- Se defendendo?
- É! Eu não sabia que era você. Se soubesse, teria batido com menos força.
Eu ia cometer um assassinato. Juro por Deus.
Encarei Bianca, meu corpo inteiro ardendo em uma fúria contida.
- Você tem um minuto para se explicar.
Ela hesitou, mas só por um segundo.
- É uma história engraçada...
- Nem tenta - comecei, me inclinando ainda mais na sua direção com o indicador apontado para o seu rosto. - Nem tenta mentir para mim. Cansei das suas desculpas.
Ela engoliu em seco, a máscara de gracinhas que vivia usando caindo por terra.
- Samuel...
Ela olhou para o pouco espaço entre nós. Naquela confusão, nem tinha notado que a encurralei entre a parede e eu.
Me afastei, a culpa e a vergonha me corroendo. Não queria assustá-la, não de verdade. Eu estava puto, sim, mas não seria a intimidando que chegaria ao fim daquilo.
- Anda, fala logo - pressionei quando coloquei uma distância segura entre nós. - Como você entrou aqui?
- Pelo portão, é claro. - Semicerrei os olhos para ela e Bianca encolheu os ombros. - Eu peguei a chave daquele molho que você tem. Fiz uma cópia e devolvi a original sem que você percebesse.
Um flash de memória me atingiu. Na outra noite, quando a vi escondida no meu escritório. Ela não estava tentando evitar os homens depois do que tinha acontecido com o desgraçado do Henrique. Ela só precisava de uma desculpa para entrar no cômodo e conseguir a chave.
Eu me afastei ainda mais.
- Quem é você?
Bianca arregalou os olhos, quase como se a pergunta a tivesse atingido em cheio.
- Você sabe quem eu sou.
- Sei mesmo, Bianca? - Me segurei ao balcão da cozinha com força. - Eu te conheço a menos de um mês, e pelo visto tudo que você me disse até agora foram mentiras. Aquele dia que você caiu da droga da árvore, já estava tentando entrar, não estava?
Ela não negou. Ao invés disso, teve a ousadia de desviar os olhos castanhos e parecer envergonhada.
- O que você quer aqui? - perguntei sem rodeios.
- É uma história doida demais.
- Mais doida do que você invadir a casa do meu avô e me acertar com uma sombrinha? Duvido muito.
- Se eu te contar, promete parar de me olhar assim? - ela perguntou, erguendo a cabeça de uma vez e me enfrentando. - Como se eu fosse uma espécie de ladra psicótica ou algo parecido? Eu não menti para você o tempo todo. Não fingi ser outra pessoa nem por um momento.
Tentei não demonstrar a pontada de alívio que senti ao ouvir as palavras.
Não que eu me importasse com quem ela era ou deixava de ser. Eu a conhecia há pouco tempo demais, e aquelas implicâncias bobas no bar e no meu carro, os momentos que não tinham sido tão ruins assim... Não significavam nada.
- Eu vou tentar - falei por fim. - Mas se eu desconfiar que você tá tentando me enganar de novo...
- Você pode chamar a polícia e me arrastar para a cadeia, eu não ligo. - Ela se aproximou e tirou algo do bolso do seu moletom, jogando um papel dobrado perto de onde minha mão estava. - Lê.
O papel tinha as bordas amareladas e um aspecto antigo. O desdobrei e percebi que era uma carta endereçada para alguém chamada Raquel.
Passei os olhos pelo conteúdo.
Eu possuo uma fortuna em joias escondida no casarão dos Dutra.
É o suficiente para você construir uma vida digna em Belo Horizonte e viver despreocupada por muitos anos com o Joaquim e a Bia.
Garanto que ninguém além de mim vai ser capaz de encontrá-las naquele mausoléu de mil cômodos...
Terminei de ler e encarei Bianca, que aguardava pacientemente ao meu lado.
- Quem... - comecei, mas ela me interrompeu.
- Minha avó. A carta foi escrita há anos, quando eu ainda era uma criança. Ela morreu pouco tempo depois e eu só fui encontrar isso durante a mudança para Santa Cruz. - Ela respirou fundo e olhou para o teto. - É por isso que eu pedi emprego no seu bar. Descobri que você era o herdeiro da casa e o único meio para encontrar as joias.
Eu coloquei a carta de volta no balcão, me sentindo tonto com a enxurrada de informações.
- Não tô entendendo nada - admiti.
- A minha família é inteira de Santa Cruz, Samuel. Minha avó trabalhava como diarista aqui e foi empregada dos seus avós por anos. Quando minha mãe conheceu um homem de Belo Horizonte e se casou com ele, se mudou daqui e ficou grávida de mim pouco tempo depois. É por isso que minha avó escreveu a carta para ela. Ele queria que a minha mãe viesse encontrá-la em Santa Cruz para contar onde as joias estavam escondidas. Queria que a fortuna fosse nossa.
Eu encarei o chão de tábuas, lembranças surgindo no fundo da minha mente, quase inacessíveis.
- Qual era o nome da sua avó? - perguntei.
- Amália.
Amália.
Eu tinha conhecido uma senhora chamada Amália antes, quando morei naquela casa com meus pais e avô até os seis anos, antes de tudo acontecer.
Uma mulher de sorriso gentil, varrendo devagar a varanda e me oferecendo biscoitos sempre antes de ir embora. Eu a via na mesa de jantar, conversando com a minha mãe, limpando os cômodos e me ajudando a guardar os brinquedos espalhados pelo chão do meu quarto.
Fragmentos de memórias. Todas borradas e estranhas pelos anos que fiquei sem pensar naquilo, naquela senhora que trabalhava ali.
- Que cara é essa? - Bianca perguntou, me olhando esquisito.
- Eu conheci a sua avó por um tempo. Ela trabalhava mesmo aqui.
Bianca se aproximou de mim e tocou meu braço, os olhos fixos nos meus.
Era a primeira vez que ela me tocava voluntariamente daquele jeito.
- Você conheceu a minha avó? Do que se lembra dela?
- Quase nada - disse, só percebendo que tinha prendido a respiração quando voltei a falar. - Eu era muito novo e ela vinha poucas vezes por semana. Depois que... - hesitei, escolhendo as palavras com cuidado - depois que me mudei e fiquei mais velho, minha avó paterna me contou que a Amália continuou trabalhando aqui junto com um jardineiro por alguns anos. Meu avô sempre foi meio obcecado com a casa, então não economizava em contratar pessoal para manter tudo em ordem.
Bianca me soltou, andando de um lado para o outro sem olhar para mim.
Balancei a cabeça, tentando voltar ao assunto em questão.
- Mas isso não é importante. Que joias são essas? E por que a sua avó as esconderia na casa onde trabalhava ou invés de levar para qualquer outro lugar?
Bianca abraçou a si mesma, passando as mãos pelos braços como se estivesse com frio.
- Eu não sei. Acho que pode ter a ver com isso que ela falou sobre o meu tio não estar no seu melhor estado. - Ela indicou a carta com a cabeça. - Talvez esse fosse o lugar mais seguro para se esconder uma porção de joias. Ainda mais se...
A frase morreu.
- Ainda mais se o quê?
Bianca suspirou.
- Eu não sei. Dependendo de como essas joias foram adquiridas, não é como se ela pudesse colocar tudo em um banco. Ela teria que responder perguntas. Regularizar uma fortuna desse tamanho não é simples assim.
Batuquei os dedos na bancada de inox, minha mente a mil.
- Tem certeza que ninguém abriu essa carta em todos esses anos?
Bianca fez que sim com a cabeça.
- Ela estava lacrada quando a encontrei. Ficou perdida na bagunça e só apareceu enquanto eu ajeitava a mudança. Ninguém sabe disso além de mim. Nem minha mãe.
- Você acha que ainda estão aqui? As joias?
Bianca ficou em silêncio. De repente, foi como se eu estivesse consciente de cada canto daquela casa enorme, seus quartos onde ninguém dormia há anos, as escadas e cômodos escondidos. Estava consciente dos seus mistérios, do seu silêncio, das pessoas que tinham passado por ali e morrido. Todas. Até restar apenas eu.
- A minha avó faleceu poucos dias depois da data de escrita dessa carta - Bianca disse. - Ela já era bem velhinha e estava esperando minha mãe vir para Santa Cruz para contar tudo. Meu tio não deve saber de nada e minha mãe nunca chegou a colocar as mãos nisso, então...
- O meu avô viveu sozinho aqui por todos esses anos - contei. - Talvez ele tenha achado as joias.
- Se ele tivesse achado, elas não estariam no seu inventário?
Me lembrei da longa conversa que tive com o antigo advogado do meu avô dias depois da sua morte. Além da casa, de alguns pastos que ele possuía em fazendas próximas e dinheiro aplicado, nenhuma joia foi mencionada.
Passei a mão pelo rosto, tentando pensar.
- Você tem razão. A não ser que ele encontrou as tais joias em algum momentos e as vendeu, elas ainda estão por aqui em algum lugar. Isso se a sua avó não tiver mentido, claro.
- A minha avó não era nenhuma velha caduca - Bianca disse, ofendida. - Minha mãe sempre contou que ela era muito lúcida apesar da idade. E ela não era de inventar histórias.
- Nesse caso...
- Nesse caso, existe um tesouro escondido nessa mansão enorme, intocado por anos - ela completou, se aproximando de mim. - E eu vou encontrar ele.
Pigarreei.
- Acho que você esqueceu que a casa é minha.
Bianca me encarou com aquela sua rebeldia que me tirava do sério.
- Samuel, eu preciso dessas joias. Você não faz ideia. - Ela empinou o queixo em desafio. - Então, eu sei que tecnicamente existe um milhão de jeitos de você me impedir de procurar, mas eu juro que não vou desistir fácil. Vou tornar sua vida miserável.
Foi a minha vez de revirar os olhos.
- E você já não torna?
- Seria mil vezes pior.
- Escuta, Bianca, uma vez na vida, pelo amor de Deus. - Cheguei perto dela. - Não vou te impedir de buscar as joias.
Ela piscou na minha direção, surpresa.
- Não vai?
- Não. Porque eu vou ajudar a procurar também.
Ela me olhou cheia de desconfiança.
- Você vai me ajudar?
- Vou. A gente vai encontrar as joias. Juntos.
- Mas por que você me ajudaria?
- Além do fato de eu querer parte do dinheiro quando a gente colocar as mãos nelas? - Bianca fez bico, claramente desgostando da ideia. - Você não vai conseguir sem mim. Eu conheço a casa melhor que você e não estou disposto a te dar passe livre para destruir o lugar do jeito que quiser.
Ela estreitou os olhos.
- Você nem precisa de dinheiro, para começar.
- Quem disse?
- Você vai vender a casa no fim de tudo.
- Você não sabe disso.
O nó na minha garganta apertou.
Vender a casa.
Era isso que eu devia fazer. Era isso que eu já deveria ter feito.
Além de me garantir uma fortuna considerável para manter o bar e viver sem preocupações por muito tempo, me livraria das memórias ruins, não livraria?
Mas toda vez que eu pensava nisso, a imagem dos meus pais vinha à minha cabeça. Uma versão mais nova de mim vinha também.
Nem todos os momentos tinham sido ruins, e por mais que se livrar de pesos sem sentido fosse bom, eu não conseguia. Não agora, pelo menos.
- E a gente não se gosta - Bianca continuou, me tirando dos devaneios quase como se me desse um tapa. Eu olhei para ela. - Como vamos trabalhar juntos se já custamos a nos aguentar no bar? Tem certeza que consegue passar ainda mais tempo comigo? Por que eu não sei se quero ver sua cara mais vezes ao dia.
- Vamos ter que trabalhar nisso - falei, cruzando os braços. - Para começar, que tal você ficar mais caladinha?
- Que tal você parar de ser um babaca?
- Olha, a gente não precisa ser amigos - disse, tentando pôr tudo em termos simples. - É uma questão de negócios.
- Negócios - Bianca debochou com uma cara afetada. - Até parece...
- A gente pode estabelecer alguns combinados.
- Eu odeio essa sua voz de professora de quinto ano.
- Fica quieta, por favor? - Foi a vez dela de cruzar os braços. - Primeiro, tentamos não nos matar.
- Vai ser difícil, mas por mim tudo bem.
- Certeza? Por que da última vez que chequei, quase sofri dois traumatismos cranianos por sua causa.
- Nenhuma das duas vezes foi intencional. - Ela soprou uma mecha do cabelo para longe dos olhos. - Mas tá bom. Vou tentar não subir mais em árvores quando você estiver embaixo delas e vou manter minhas mãos longe de qualquer guarda-chuva quando você estiver por perto.
- Ótimo. Eu agradeço muito. Segundo ponto: nenhum de nós busca as joias sem o outro.
Bianca levou uma mão ao peito.
- Você não confia em mim?
- É claro que não. Terceiro...
- Você é insuportável, Samuel.
- Você repete isso muitas vezes - disse, sem dar atenção. - Terceiro, sem mais mentiras. - Olhei sério para ela. - Isso não vai funcionar se você continuar guardando segredos.
- Você já sabe de tudo. Não tem segredo nenhum.
- E nem vai ter. Qualquer avanço que fizermos em relação às joias, o outro vai saber. Estamos trabalhando juntos nessa, ouviu?
- Tá bom, entendi.
- Quarto...
- Por que só você está fazendo as regras?
- Você quase me matou com sombrinhadas! Eu tenho o direito de fazer quantas regras quiser depois disso.
Bianca quis rebater, mas deve ter visto que eu tinha razão, como na maldita maioria das vezes.
- Então? - ela resmungou - Qual é a quarta regra?
Hesitei.
- Não tem quarta regra. Eu só estava gostando de inventar.
Bianca suspirou e pegou a carta da avó em cima do balcão.
- Quando a gente começa?
- Amanhã. Vou abrir o bar só a partir das dez agora, então vamos ter as manhãs para trabalhar nisso.
- Por mim, tudo bem.
Ela deixou a cozinha e eu a segui.
- Você pode ficar com a sua cópia da chave.
- É claro que vou ficar com a cópia da chave. Somos parceiros agora, não somos?
Infelizmente.
- Não acredito que você invadiu mesmo... Como passou pela porta de entrada?
- Eu usei a janela.
- Você é...
- Doida, eu sei. Meu Deus, você parece um disco arranhado!
Eu a segui pelo corredor, mas quase derrubei nós dois no chão quando ela parou de repente.
- O que foi?
Seus olhos estavam fixos na parede, onde alguns retratos antigos estavam pendurados.
- Esse é você? - ela perguntou, apontando para o garotinho sentado no colo de uma mulher loira.
Não consegui olhar para o rosto da mulher. Nem para o do meu pai, na fotografia estilhaçada ao lado.
De repente, estava me afogando de novo. A correnteza me levando para longe da margem, a água entrando nos meus pulmões até...
- Samuel?
Pisquei e me deparei com o rosto de Bianca na penumbra do corredor. Seu cabelo cor-de-rosa era a única coisa minimamente alegre ali, os olhos profundos me encarando como se pudessem ver através de mim.
- Enquanto estivermos nessa casa, sem perguntas - falei devagar. - Nada sobre o meu avô, nem sobre o resto da minha família.
Bianca se aproximou mais e o seu perfume me envolveu, embaralhando os meus sentidos. Estremeci e fechei os olhos por um instante.
- Essa é uma regra também? - ela perguntou, a voz suave.
- É um pedido.
Bianca não se mexeu pelo que pareceu serem horas, mas finalmente assentiu.
- Tudo bem.
Então ela se virou e eu andei ao seu lado.
Juntos, deixamos a casa.
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Oii, gente! Como vocês estão?
Hoje tivemos muita conversa entre Samuel e Bianca e para quem achou que ele ia ficar louco da vida com ela, vocês estavam certos, mas também saímos dessa com um acordo kkkkkkk Me contem tudooo o que acharam, estou curiosa!!!
Vejo vocês no próximo domingo com outro capítulo novinho em folha! Certa caça ao tesouro está prestes a começar, agora em dupla <3
Beijos e até semana que vem,
Ceci.
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