cinco


Trabalhar em um bar frequentado em sua maioria por homens não seria algo que eu consideraria se não houvesse milhares de reais em jogo. Primeiro porque tenho uma aversão natural para qualquer emprego de atendimento ao público (alguns meses lidando com clientes e você só quer comprar uma fazenda em Goiás e conviver só com bichos para o resto da vida) e segundo pelos homens em si.

Garotas de qualquer idade são assediadas de diversas formas desde que se entendem por gente. Em algum momento, os olhares, assobios e comentários atravessados se tornam comuns, mas não menos desconfortáveis. Mas eu sabia lidar com isso. Sabia ignorar e passar reto sem pensar muito sobre aquilo depois, por mais que soubesse que era errado e que nenhum cara tinha o direito de mexer comigo e fazer insinuações sobre o meu corpo. Mas as coisas tinham mudado. E por mais que eu me mostrasse firme por fora, estremecia toda vez que precisava atender uma mesa cheia de caras no Lambari.

- Você tem certeza sobre isso, Bia? - minha mãe perguntou quando cheguei em casa depois daquela primeira noite no bar. A preocupação era visível no seu rosto.

- Tenho. Eu preciso voltar pra vida real, mãe. Preciso me arriscar.

- Mas tinha mesmo que arrumar serviço em um bar? À noite?!

Eu tinha encolhido os ombros.

- Eu sei. Mas o salário é bom. E o dono... - Hesitei quando Samuel me veio à cabeça. - Ele é legal.

- Não senti força nesse legal.

- É que ele me irrita.

- É um chefe exigente?

- Não parece ser. Sei lá. - Eu soprei uma mecha do meu cabelo para longe dos olhos. - O meu santo só não bateu com o dele.

- Santo de empregado nenhum bate com o do patrão.

- Pode ser.

Eu tinha levantado do sofá e caminhado em direção ao meu quarto naquele instante, onde fiquei acordada por mais de uma hora observando o céu pelo telescópio.

- Mas eu vou tentar mesmo assim - falei para minha mãe, já subindo as escadas. - Eu preciso de um desafio.

E de joias valiosas também

E era esse o pensamento ao qual eu me agarrava no bar. Toda vez que precisava atender algum cara bêbado e sorridente demais, ou quando Samuel me lançava um daqueles olhares de reprovação que me faziam querer acertar uma mesa na cabeça dele e quando os pedidos se acumulavam no meu bloco de notas até não ter mais espaço nenhum.

Quando eu for rica, vou trabalhar só se eu quiser, pensei enquanto puxava duas garrafas de cerveja da geladeira. E eu garanto que não vou querer.

- Você tá indo atender a mesa cinco? - ouvi a voz do Sr. Insuportável dizer perto de mim. - Se for, aquela mesa pediu Skol ao invés de Brahma.

Cerrei os dentes e me virei para encarar Samuel. Como sempre, precisava jogar a cabeça um pouco para trás para olhá-lo nos olhos.

- Eles pediram Brahma.

- Não, não pediram. - Ele estava organizando os cigarros no expositor de acrílico.

- Quem está com os pedidos mesmo?

- Você. Mas eu ouvi o Manuel ali dizer que queria Skol.

- Eu tenho certeza que era Brahma.

- Sério? Então olha no seu bloco.

Coloquei as garrafas no balcão com mais força do que precisava e tirei o bloco de notas do bolso da minha calça jeans.

- Vamos ver... - passei as páginas com tanta brutalidade que algumas quase saíram voando. Tinha tanta gente para atender naquela droga de lugar e aquele cara me atrasando... - Mesa cinco: meia porção de peixe, meia de fritas e duas garrafas de...

Samuel cruzou aqueles braços enormes na frente do peito e ergueu uma sobrancelha para mim, o sorriso mais prepotente do mundo surgindo no seu rosto.

- E então?

Eu revirei os olhos, devolvi as garrafas de Brahma ao freezer e peguei as de Skol.

- Sua teimosa.

Eu o fuzilei com o olhar.

- O seu trabalho não é ficar aí quietinho e só pegar as coisas do balcão e da cozinha?

- É, mas...

- Então deixa que eu cuido da minha parte.

- A parte que você tá fazendo errado?

- Foi só uma confusão.

- Que poderia ter sido resolvida mais rápido se você não fosse tão cabeça dura!

- Olha quem tá falando, o cara mais teimoso do planeta!

- E você...

Alguém pigarreou. Nós nos viramos ao mesmo tempo com expressões assassinas.

Um senhorzinho engoliu em seco e sorriu para nós.

- Eu não queria interromper, mas... Posso pagar a conta?

Me afastei do Samuel, o ouvindo sussurrar algo como se arrependimento matasse e eu o amaldiçoava até a quarta geração.

Eu precisava dar um jeito de saber mais sobre a casa onde as joias estavam escondidas, porque quanto mais cedo colocasse as mãos no tesouro, mais cedo podia dar adeus àquele bar e ao seu dono insuportável.

A primeira parte do plano tinha dado certo, apesar de tudo: eu estava próxima da única pessoa que podia me dar acesso à mansão. Por mais que próxima quisesse dizer que nós tínhamos a vontade mútua de assassinar um ao outro.

Mordi o lábio e tentei me concentrar no serviço. A praça estava lotada na noite de sábado. A sorveteria que ficava ao lado do bar e a pastelaria fecharam cedo, mas o Lambari continuou cheio até depois da meia-noite. O relógio da igreja marcava as horas, sua torrinha a única coisa junto com os postes que iluminavam os jardins da praça. Era tanta coisa para fazer no bar que minhas pernas arderam pelas horas em pé, e eu não aguentava mais ver bebidas e porções na minha frente, muito menos aquele bloquinho de notas.

Eram duas da manhã quando o lugar finalmente ficou vazio. Estava ventando forte e vez ou outra o céu clareava com relâmpagos, os estrondos dos trovões cada vez mais perto.

- Deixei uma porção pronta para vocês - Hélio, o cozinheiro supersimpático e gente boa que trabalhava ali, disse quando deixou a cozinha. - Está quentinho.

Pensei em recusar e dar o fora dali o mais rápido possível agora que todos tinham ido embora, mas a minha barriga fez um barulho tão estrondoso diante da visão da comida que ele riu.

- Fica à vontade. Até amanhã.

- Obrigada, Hélio.

Ele deixou a bandeja sobre o balcão e eu roubei uma batatinha.

- Eu vou só contar o caixa e te levo para casa - Samuel disse, abrindo a gaveta com o dinheiro.

- Que tal eu faço isso e você vai pegar as mesas lá fora?

Esperei ele sair do espaço minúsculo entre o balcão e a cozinha para ir até o caixa.

Quando ele voltou com as mesas, eu já tinha acabado.

- Esqueci de te falar que a calculadora estragou - ele disse, a voz abafada através da pilha enorme de cadeiras que estava levando para um canto do bar. - Você tá usando a do celular?

- Não. Meu celular tá sem bateria. Mas eu já acabei.

- Já acabou?

Ele colocou as cadeiras no chão e bateu as mãos uma na outra.

- Sim. E tá certo. Eu conferi no sistema.

- Como você contou esse tanto de dinheiro em dois minutos? Usou papel?

Eu olhei para ele com um meio sorriso.

- Tá duvidando da minha inteligência?

- Se eu disser que sim, vai me xingar?

Joguei uma caneta nele.

- Idiota.

Ele deu a volta no balcão e começou a contar o caixa por si mesmo.

- Meu Deus, como você é chato.

Mas ele me ignorou e puxou o celular do bolso, contando o dinheiro com a ajuda da calculadora. Quando finalmente acabou - eu já tinha comido quase todas as batatas e até surrupiada uma Coca-Cola da geladeira - ele se virou para mim.

- Você é boa com números.

Dei de ombros e espirrei ketchup na comida.

- Relativamente.

- Você sempre faz contas de cabeça?

- Algumas sim.

- Quanto é 1.289 mais 6.673?

- Sete mil novecentos e sessenta e dois.

- E 4.568 menos 2.345?

- Dois mil duzentos e vinte e três. Vai ficar me testando agora?

- Não é teste se eu não sei as respostas, tô só chutando uns números e vendo quão rápido você acerta. - Eu revirei os olhos. - Sabe fazer multiplicações também?

- Se eu disser que não você vai me deixar em paz?

- Não.

Eu bufei, mas não pude deixar de rir baixinho.

- Isso é bem legal, sabia? Devia ter me contado que era uma gênia da matemática.

- Eu não sou uma gênia da matemática. Mas vai me pagar mais se eu te convencer que sou?

- Nem pensar.

Ele se sentou ao meu lado no banco e pegou um pedaço de peixe.

No mesmo instante, fiquei tensa.

Estava consciente das portas ainda abertas atrás de mim e de que havia vários objetos pesados por perto caso acontecesse alguma coisa.

Eu podia fugir se fosse preciso. Podia gritar e talvez daquela vez alguém me ouviria. Eu...

Os pelos da minha nuca se eriçaram quando o ribombar de um trovão pareceu sacudir as paredes do bar. Como se estivesse esperando por isso, a chuva desabou com tudo sobre Santa Cruz, sacudindo as copas das árvores e batendo nas janelas com tanta força que era como se quisesse castigar o mundo.

Samuel se levantou correndo para descer as portas da frente e impedir que a água molhasse a entrada do bar.

Droga, droga, droga.

Tentei manter a calma, por mais que meu coração estivesse batendo tão forte que chegava a doer. O medo correu gelado pelas minhas veias.

Naquele meu segundo dia na cidade, Kira falou que eu notaria algo de diferente em Samuel se chegasse a conhecê-lo. De fato, no momento em que o vi sair do bar pela primeira vez enquanto me escondia em uma das mesas do canto, eu soube que era ele quem eu estava procurando.

O cara era grande.

Não grande do tipo "meu Deus como essa pessoa é alta", mas sim de um jeito que chegava a ser assustador. Pelo menos para mim.

Se ele não tinha dois metros de altura, era quase isso. Mas não era só aquilo que o fazia se destacar em um cômodo lotado, mas o espaço que Samuel ocupava pela largura dos ombros e peito. Ele não era tão musculoso como muitos ratos de academia, mas seus músculos eram definidos e os braços preenchiam todo o espaço das mangas da camisa. Ele ocupava espaço e se fazia notar independente do que fizesse, suas mãos eram enormes e eu tinha a ligeira impressão que seus sapatos eram feitos por encomenda. Eu me perguntei se ele tinha um histórico familiar de pessoas tão grandes quanto, porque, deixando meu medo de lado, era muito impressionante. Talvez ele se destacasse se decidisse praticar boxe, e se tivesse estudado atuação desde pequeno roubaria o papel do ator que fez o Montanha em Game of Thrones com a maior facilidade.

- É melhor a gente esperar aqui até passar um pouco - Samuel disse depois de descer as portas. Desviei o olhar depressa. Não queria que ele me pegasse encarando. - Você mora com alguém?

- Com a minha mãe, por quê?

- Você disse que seu celular tá sem bateria. Eu ia te oferecer o meu para ligar para ela, porque pode ficar preocupada.

- Minha mãe já deve estar no sétimo sono. Não se preocupa.

Eu comi a última batata e cruzei as pernas no banco alto, tentando controlar minha respiração.

Não queria deixar transparecer o quão nervosa estava por ficar ali sozinha com ele.

- E você? Mora com alguém?

Samuel estava colocando garrafas vazias em uma caixa e não me olhou quando respondeu.

- Não.

Franzi a testa diante do tom esquisito da sua voz, mas não insisti. Kira tinha comentado naquele dia que a filha do antigo dono da mansão, a mãe do Samuel, tinha morrido há muitos anos. Mas e quanto ao resto da sua família?

- Eu soube sobre o seu avô através da minha prima - falei com cuidado. - Sinto muito pelo falecimento dele.

Samuel pegou três caixas empilhadas de uma vez e as levou para trás do balcão.

- Obrigado. Mas já faz alguns meses. E a gente não era próximo.

Interessante.

- Eu sei sobre isso porque passei em frente a uma casa enorme outro dia e a minha prima comentou algo sobre ela estar vazia. Ela acabou falando sobre seu avô e sobre você.

- Quem é a sua prima?

- O nome dela é Kira.

- Kira? A filha do Heitor pedreiro, né?

Eu sorri. Naquele lugar, todo mundo parecia conhecer todo mundo.

- Essa mesma.

- A Kira é uma garota legal. Tem certeza que são primas?

- Me ofender é seu passatempo agora?

- É isso ou deixar você me enlouquecer.

Eu sorri.

- Admite, você me acha adorável.

Samuel abafou uma risada e revirou os olhos.

- Às vezes me pergunto de que buraco você surgiu. E porque eu fui o diabo sortudo que acabou cruzando o seu caminho.

- A gente só se conhece há alguns dias e você pensa tanto assim sobre mim?

Ver aquele cara de dois metros de altura e da largura de uma porta corar por causa de um simples comentário foi delicioso. Eu não sabia qual tinha sido a última vez que eu falara tanto assim, minha língua solta e meus sentidos alerta.

Samuel era chato e rabugento, mas me instigava. Às vezes minha missão seria mais fácil se ele fosse entediante.

- Você é muito novo para ser dono de um bar, sabia? - comentei, decidindo salvá-lo do constrangimento de dizer qualquer coisa. Já que a chuva parecia não ter hora de parar, eu pelo menos podia aproveitar o tempo para achar respostas. Eu sentia que as perguntas certas podiam me levar para mais perto das joias. - Desde quando você é dono do Lambari?

- Abri o bar quando tinha dezenove - ele respondeu, ainda do lado oposto do cômodo. Desde que tinha fechado as portas, havia mantido uma distância considerável.

- Impressionante. E você tem quantos agora? Vinte e cinco? Vinte e seis?

- Vinte e dois. - Ele passou uma mão pelo cabelo castanho. Os fios já estavam compridos o suficiente para encaracolar e chegar ao colarinho da camisa. - Tô tão ruim assim?

- Quer minha resposta sincera?

- Não.

Abri um sorriso preguiçoso.

- Como um adolescente de dezenove anos consegue abrir um bar? Eu fiz vinte no ano passado e não tenho nem uma bicicleta.

- Foi com o dinheiro da venda de uns imóveis que a minha avó materna tinha. Ela morreu quando eu era muito pequeno e a herança ficou retida até eu ser maior de idade.

Meu Deus, quanto dinheiro a família materna dele tinha?!

Se sua avó tinha morrido quando ele ainda era criança, o certo seria que todos os bens passassem para a mãe de Samuel, não para ele. Mas até onde Kira tinha me contado, sua mãe também tinha morrido. Desse jeito, com a morte dos dois avós, com alguns anos de distância um do outro, Samuel herdava tudo.

Engoli em seco. Quantas pessoas aquele homem já tinha perdido? A mãe, uma avó, um avô... Ele tinha irmãos? E quanto ao seu pai? Se ele não se dava bem com o avô, quem o teria criado?

As perguntas se acumulavam, mas quando olhei para ele, o barulho da tempestade desvanecendo devagar lá fora, uma única certeza me atingiu:

Samuel estava sozinho.

Seja lá quem ele fosse e qual era sua história, disso eu sabia. Não havia mais ninguém. E eu não precisava fazer perguntas para saber disso. De repente, vi tudo no seu olhar.

- A chuva parou - a voz dele me tirou dos pensamentos e eu pisquei depressa. - É melhor a gente correr para o carro antes que comece de novo.

Eu assenti e pulei do banco, passando por ele quando abriu a porta para mim.

- Vai me dar carona todos os dias agora? - perguntei enquanto ele trancava o bar com uma das chaves de um molho cheio delas.

- Só até você arranjar uma bicicleta.

Sorri para ele.

- Vou ajeitar isso com o meu primeiro salário.

Então o acompanhei até o carro. E apesar do medo por ficar ali sozinha com ele ainda existisse, o sentimento parecia cada vez menor.

Encostei a cabeça no vidro da janela e olhei para fora.

A vida tinha mudado depressa demais. Eu passava de uma corrida a outra o tempo todo, tentando sobreviver, lutando por algo - qualquer coisa - que não me jogasse no limbo de novo.

E talvez aquela cidade fosse mesmo um recomeço. Eu tinha uma nova chance, em muitos aspectos. Mas, quando olhei para Samuel, me perguntei se não corria o risco de estragar tudo.

______________________❤️__________________

Dedicado à giuldsl

Oii, gente!!! Como vocês estão?

Outro domingo, outro capítulo de Caça Tesouros e Amores!

O que vocês acharam do capítulo de hoje? Já estavam com saudade do p.o.v da Bia? Eu particularmente gostei muito de ver, pela primeira vez, o Samuel pelos olhos dela.

Alguma ideia do que vem por aí?

Vejo vocês na semana que vem,

Ceci.

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