Buraco de Minhoca - 1

Acordo sobressaltada e atrasada. O maldito celular descarregado de novo, preciso trocar essa porcaria. Olho para o quarto e vejo a bagunça que está — e sei que daqui a pouco vou ouvir um belo sermão da minha mãe e eu, com a desculpa de sempre: "Amanhã eu arrumo, hoje não dá".

Ao descer para o café, esbarro no pirralho do meu irmão, que me dá um chute na canela:

— Seu filho da...

— Há, há, há... — O fedelho ri e sai de casa me ironizando.

— Te pego lá fora, viu?

Sento rapidamente à mesa e sem saber por que, começo a me lembrar dos acontecimentos do dia anterior, enquanto eu tentava olhar o Marty, meu novo crush, pelo 'buraco de minhoca' (a princípio, nenhuma novidade da ciência, apenas uma manjada forma de bisbilhotar meninos tomando banho no vestiário, depois da educação física).

— Senhorita Suzana, o que está fazendo aqui, posso saber? — Fui surpreendida pela madre superiora.

Naquela hora eu gelei, a mulher é o capeta em pessoa e eu me pergunto, como ela pode ser o capeta, se é de Deus, alguém me responde? Estava lascada:

— Nada, não, madre. — E já fui me afastando, após terminar de encaixar disfarçadamente o tampão na parede, mas já prevendo que não ia colar. Será que ela tinha visto?

Volto inesperadamente ao café, mas somente quando minha mãe corta meus pensamentos ao meio, com um machado bem afiado:

— Atrasada de novo, Suzana? Tá achando que o dinheiro do teu pai é capim? — Previsível o sermão.

Se é capim, se é braquiária, se é grama — e se no fim tudo é uma coisa só: mato!, eu não sei, o que sei é que o ônibus da escola já quase dobra a esquina da rua de casa e eu preciso ser rápida:

— Mãe, outra hora a gente conversa sobre o 'capim' do meu pai. Agora não dá.

— Nunca dá, não é, Srta. Suzana. — Mas ela sabia que não daria mesmo, pois a porta do ônibus já fazia "itsissssss" e enquanto ela dizia isso, o motorista já esperava bem nervoso.

Largo a maçã que tinha nas mãos sobre a mesa, já com uma generosa mordida, e corro para fora, gritando com a boca cheia:

— Ei, espere! Olha eu aqui!

Futuramente, Ernest, o nerd da escola, leria esse opúsculo e diria: "Que onomatopeia mais ridícula para se designar o som do mecanismo hidráulico da porta de um ônibus... Tss-tss-tss"...

Ah, antes que eu me esqueça, opúsculo eu aprendi na aula de literatura, é um pequeno livro, mas juro que onomatopeia foi ele quem usou.

✰✰✰

Vick excitou-se:

— Que babado forte é esse, amiga? Então ela te viu olhando pelo buraco de minhoca?

— Me pegou com a boca quase lá — rio.

— E aí? Me conta? Descobriu nosso segredo?

Vick é menina trans, mas ninguém pode saber, pois o colégio é de religiosos, são muito rígidos e contrários ao que chamam de "ideologia de gênero". Outro dia eu li que a educação para o gênero, que seria uma definição bem melhor, trata de diversidade e não de conversão, ou seja, não é ensinar ninguém a ser gay, mas educar para conviver e respeitar diferenças... Aff... Bando de idiotas, que não entende de nada...

— Mas me conta, Su!, o que foi que aconteceu? Ela descobriu tudo, então?

— Não sei, menina. A madre não disse nada, isso que me deixou mais grilada.

— Mas o buraco foi fechado ontem de tarde...

Nos voltamos para Ernest, cuja voz sempre firme e convicta, tinha partido do último banco do ônibus. Me supreendi:

— Hã? Você sabe do buraco?

— Suas tontas — ele continuou —, quem não sabe, desconfia.

Viro-me para a Vick. Ela ri:

— Foi bom enquanto durou, né? Tudo que é bom, acaba um dia.

Durante a reforma dos vestiários, nas férias, Vick foi ao colégio levar uma quentinha para o pai, que é pedreiro e foi aí que ela teve a 'sensacional' ideia de deixar um pequeno cano atravessado num vão, entre dois blocos da parede. A caixa de massa ali perto, disfarçou o vão, que logo foi encoberto pelo reboco de acabamento. E aí, noutra oportunidade, foi só usar uma talhadeira e uma marretinha, furtada das coisas do pai. Na época, ela tinha dito:

— É só dar uma lascada aqui, que a gente chega rápido no caninho.

— E do outro lado, sua boba, não tem azulejo?

— Claro que não. Lá dentro é só meia parede de cerâmica. O chão aqui fora é bem mais alto, vamos sair bem na altura onde só é rebocado.

— E como você sabe tudo isso?

— Esquece que sou filha de pedreiro? E eu vim várias vezes aqui trazer comida pra ele.

E as palavras técnicas que uso agora, foram todas ditas por ela, ou vocês acham que eu ia saber o que é um reboco de acabamento? Um dia vou saber isso e muito mais, quando cursar engenharia civil, mas por enquanto, não. Daí ela pegou uma chave de fenda comprida, enfiou no buraco e deu umas pancadas, até que estourou do lado interno do vestiário.

— Temos que ir lá dentro arrumar essa bagunça.

A gente tinha chegado bem mais cedo do que de costume, tendo vindo para a escola a pé e ainda havia meia hora para os alunos começarem a pintar no pedaço. Ela já tinha tudo planejado:

— Temos que ser rápidas.

Passou a mão numa vassoura e numa pazinha de cabo da limpeza, previamente escondidas, e me deu:

— Varre tudo, enquanto eu subo no banco e ajeito o buraco.

O reboco tinha feito bastante sujeira. Enquanto eu varria, ela tirou do bolso um saquinho de gesso e com um copinho de iogurte vazio, fez o preparado na pia:

— Seca rápido, tenho que ser ligeira...

Subiu no banco e com uma espátula tirada do bolso — mas o que era aquele mulher, uma agente secreta?, deixou tudo perfeito. Rápida, a danada! E aí foi do lado de fora e fez o mesmo. As paredes eram branco gelo e o gesso praticamente desapareceu.

— Perfeito! — exclamou.

— Perfeito? — rebati. — E o buraco, não vão ver?

— Aí vem o toque de mestre. Já pensei em tudo.

E tinha pensado mesmo. Da mochila tirou outra de suas surpresas: um pedaço de antena de carro e, nas pontas, dois troços presos — não sabia o nome, desses de tampar ponto de torneira...

— Bujão — ela elucidou. — Quando a gente quer eliminar a torneira, é só tirar ela e rosquear essa pecinha no lugar.

E qual foi a engenhosidade? Nas pontas da antena, cortada na medida certa, dois bujões. Quando ela enfiou no buraco...

— Agora vão parecer dois pontos de água tamponados, um de cada lado.

Incrível! E o local era meio isolado, ninguém passava por ali, dava para tirar o artefato e olhar pelo cano na parede. Os meninos tomavam banho longe daquele ponto, assim dava para ver tudo com perfeição... Tudo mesmo!

✰✰✰

— E agora todo o meu engenho terminado, anos e anos de pesquisa — lamenta Vick para mim.

— Pois é — a consolo —, mas estou mesmo preocupada é com a marca na bunda do Marty. Não sabia que ele também tinha uma.

— Marca na bunda?

— É. — E até esqueci que o Ernest estava ouvindo. — Isso não faz sentido.

— O quê, não faz sentido? — Ernest se atreveu a perguntar. — Posso saber?

— A marca! O Roddy é quem tinha essa marca, como é que o Marty também pode ter?

Explico. Roddy foi meu namorado, assassinado naquele mesmo vestiário um ano antes, por um lunático que nunca foi pego pela polícia. E só eu sabia daquela marca, porque tinha sido sua primeira e única namorada!

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