Capítulo XXXII
A P R I L
HAVIA UM PEQUENO QUARTO ENTRE a cozinha e a porta dos fundos: a tábua de passar e os cestos de roupa diziam lavanderia, mas a escrivaninha munida de um computador e várias pastas contava outra história. Eu me aproximei do cantinho do escritório improvisado e, em meio a post-its coloridos e blocos de contas seguradas por grampos, encontrei os rostinhos sorridentes de Julie e Hunter — era um arranjo de fotos mais espontâneo do que os retratos pendurados no corredor, mas igualmente adorável.
— Hunter teria um ataque se soubesse que te mostrei essas fotos. — A voz de Lizzie me surpreendeu. Ela atravessou a porta carregando um novo cesto de roupas limpas e eu fui ao seu socorro, abrindo espaço sobre o móvel.
Quando o cesto atingiu a superfície livre, eu ergui meus olhos para encontrar um porta retrato sobre a prateleira: era um time de futebol mirim reunido sobre um gramado verde, quase azul pelas cores desbotadas da foto.
— Esse aqui é o Seth?
A pergunta escapou dos meus lábios antes mesmo que eu pudesse registrá-la.
Bom trabalho, April.
Nesse ritmo, a mãe do Hunter vai pensar que você é uma bisbilhoteira.
— Ele mesmo. — Lizzie sorriu para a foto, escolhendo uma blusa do topo do cesto para começar a dobrar. — Eles tinham acabado de se conhecer nessa época. Hunter estava começando a se comportar mal na escola. Ele respondia muito, então, nós decidimos colocá-lo no futebol para gastar toda aquela energia. Quer dizer, eu pensei que seria bom se ele aprendesse a trabalhar em grupo. Veja só como ele gostou.
Os meninos da equipe posavam para uma típica foto de equipe de futebol: alguns em pé no fundo e outros apoiados sobre o joelho na frente, todos vestindo o mesmo uniforme azul e vermelho. Encontrei um mini Hunter de pé em um canto, suas sobrancelhas franzidas por causa da claridade e seu rosto em uma expressão de profundo desagrado.
— Ele saiu com essa carranca feia em todas as fotos!
Um sorriso tomou meus lábios enquanto eu dobrava uma blusinha que, a julgar pelo tamanho e pelas estampas coloridas, só podia pertencer a Julie.
— Hunter sempre teve personalidade forte?
— "Personalidade forte"? — Apesar do brilho caloroso em seus olhos, ela massageou as têmporas devagar como se apenas a lembrança já fosse o suficiente para lhe causar uma dor de cabeça. — Você é muito gentil, April.
Minha risada involuntária preencheu o quarto e Lizzie puxou mais uma peça do cesto de roupas para si:
— Eu conheço meu filho, ele é terrível. — Ela me lançou um olhar cúmplice, abrindo uma camisa sobre a mesa. — Hunter e Seth começaram a se aproximar porque estavam na mesma sala da escola. Depois que se tornaram vizinhos, então... Eram o terror da vizinhança.
Na primeira fileira, ajoelhado sobre a grama desbotada, Seth sorria para a foto com uma carinha de atentado. Ele parecia prestes a sair correndo, seus cabelos curtos e alaranjados apontando para todas as direções como se tivesse levado um choque.
Jesus Cristo.
Ele devia ter sido uma criança incontrolável.
Eu estava separando pares de meias por tamanho quando o barulho de patas contra o chão interrompeu nossa conversa. Lua Nova caminhava vagarosamente em direção à lavanderia e sua respiração se tornava mais alta à medida em que se aproximava. Ele cruzou a porta distraído, farejando o carpete com interesse e Elizabeth abriu um sorriso para mim:
— Nós estamos ensinando o Lua Nova a brincar de pegar. — Ela me explicou, deixando as roupas de lado por um momento para alcançar uma bolinha vermelha sobre o móvel. — Veja isso.
O cachorro ergueu seus olhos escuros bem a tempo de flagrar Lizzie arremessando a bolinha para longe:
— Pega!
Nós aguardamos com expectativa a reação de Lua Nova.
A bolinha quicou contra a parede e desapareceu no corredor, mas — para a minha surpresa — ele apenas farejou o vazio com interesse, olhando para nossas mãos.
Aparentemente, Lua Nova queria saber se tínhamos comida.
Uma gargalhada escapou do fundo da minha garganta.
— E se fosse um pedaço de filé, garoto? — Sugeri ao me aproximar, afagando o topo de sua cabeça. — Você pegaria?
— Não adianta. — Eleanor apareceu na porta, atrás do Lua Nova. — Cachorro velho não aprende truques novos.
Em seu rosto havia um repuxar de lábios elegante. Talvez, aquele fosse o mais próximo que eu conseguiria chegar de receber um de seus sorrisos. Eleanor não parecia ser o tipo de pessoa que sorria à toa. Ela tinha olhos impressionantes. Era como a atriz da era dourada de Hollywood, uma beleza antiga e atemporal.
— Lua Nova não é velho. — Saí em defesa do meu novo aliado, agitando suas laterais peludas em um carinho. — Ele parece um lébrel irlandês. Um amigo do meu pai tinha um assim, mas maior.
Os olhos de Elizabeth quase saltaram das órbitas enquanto ela abandonava as blusas sobre o móvel, impressionada:
— Você está me dizendo que esse cachorro pode crescer mais? As paredes dessa casa não vão aguentar.
Eu libertei Lua Nova do meu abraço, me sentindo risonha e coberta de pelos escuros, prestes a espirrar. Sem dúvidas, ele e Julie poderiam botar a casa abaixo em uma de suas brincadeiras.
— O telefone está tocando — Nana anunciou, de repente. A linha da sala tilintava à distância, um som estridente e ainda mais alto que a rádio da cozinha. — Deve ser a Janet. Eu vou avisá-la que nós temos um lébrel irlandês na nossa cozinha — ela caçoou antes de desaparecer no corredor.
O som de sua risada descrente me afastou de Lua Nova. Eu voltei a me sentar sobre o banco de madeira, sem ter o que fazer com as mãos. Os pares de meias já estavam dobrados e Elizabeth terminava de empilhar algumas roupas limpas sobre o móvel, me observando sem dizer nada.
Se eu não queria ficar conhecida como a garota burra que Hunter havia trazido para casa, talvez eu não devesse ter quebrado o gelo com a história do Jesus comunista.
— Não foi fácil para mim lidar com a Lou também. — Elizabeth quebrou o silêncio, abrindo o armário e descendo uma tábua para passar roupas. Ela evitava meus olhos e ocupava suas mãos como se tivesse o cuidado de não me constranger.
Franzi o cenho, incapaz de esconder a confusão.
— Pensei que vocês fossem mãe e filha.
— Não. — Ela riu fraco, deslizando o ferro sobre uma camisa branca de botões. — Eu cresci com meu pai, éramos apenas nós dois. Ele faleceu anos antes do Hunter nascer.
Eu assenti, sem conseguir adivinhar como deveria reagir.
Lizzie não parecia querer a minha compaixão. Ela navegava por assuntos delicados exatamente como imaginei que uma enfermeira chefe faria: com calma e franqueza, mantendo uma distância razoável entre nós — eu me senti adulta e nada subestimada, o oposto de como me sentia ao lado de Eleanor.
— Um tempo atrás começou a ficar muito difícil para nós aqui em casa — confessou Lizzie. — Eu tinha que cuidar das crianças enquanto trabalhava fora e assumia todas as tarefas domésticas. A rotina da casa era caótica e o pai deles não me ajudava. Nós discordávamos em tudo: as crianças, o dinheiro... — Ela deixou seus olhos vagarem sobre a mesa, suspirando: — Nós decidimos nos separar mais ou menos nessa época.
Embora não houvesse um pingo de arrependimento em seu olhar, eu pude sentir que aquela era uma conversa desagradável até mesmo para alguém decidida como Elizabeth.
Eu pensei em Hunter.
Em como o relacionamento conturbado dos pais havia afetado o menino das fotos.
De repente, como se percebesse para onde meus pensamentos tinham me levado, ela abriu um pequeno sorriso e apertou minha mão entre seus dedos:
— James é ótimo, querida — disse baixo. — Ele nunca deixa faltar nada para os filhos, mas não posso dizer que ele faz falta.
A confissão me arrancou uma risada. Eu apreciava a confiança que ela depositava em mim. Não era difícil entender porque Hunter a amava tanto.
Depois de alguns segundos organizando os próprios pensamentos, Lizzie seguiu adiante com a história:
— Quando a Lou perdeu o Harvey, ela continuou a viver na antiga casa deles por alguns anos — ela limpou a garganta, franzindo as sobrancelhas para o nada. Eu sabia parte da história porque Hunter havia me contado. — Harvey tinha deixado algumas propriedades para os filhos e nenhum deles soube administrar. Não demorou muito para descobrirmos dívidas feitas em nome da família. A Lou decidiu vender a cabana para quitá-las e veio me ajudar com as crianças por um tempo. O que era para ser um arranjo temporário se tornou... — Lizzie gesticulou para o cômodo e abrindo um sorrisinho: — Isso.
— Deve ter sido difícil se adaptar. — Minha garganta arranhava depois de tanto tempo sem uso.
— A casa era dela, afinal. — Ela deu de ombros como se não fosse nada, evitando meu olhar. — E foi uma mão na roda para todos nós. Eu amo as crianças, mas o hospital... — Finalmente, seus olhos claros pousaram em mim. — Demanda tempo.
Aconteceu rápido, mas eu vi seu sorriso estremecer.
Elizabeth havia me explicado sua história e parecia esperar minha compreensão.
Ou meu julgamento.
Era um teste.
Eu queria que não fosse, mas definitivamente era.
— A senhora fez um trabalho fenomenal criando Hunter — disse de uma vez. — Nós não... Ele era... — Eu estava entre o riso e o choro, trocando as palavras como uma tola. — Eu não pensava dessa maneira no início, mas ele foi... Hunter significa muito para mim.
Por um momento, eu cogitei dizer a ela que éramos péssimos um para o outro quando nos conhecemos.
Eu cogitei contar tudo a ela.
Eu estava espiralando, completamente fora de controle.
— Eu fui tão estúpida — lamentei, surpreendendo a mim mesma com a voz embargada. — E Hunter também. Nós podíamos ter evitado tantas brigas se não fôssemos tão... — Puxei o ar, pronta para me engasgar. — O que estou tentando dizer é que ele cuidou de mim.
Havia muita coisa presa na minha garganta, mas eu precisava que ela soubesse disso.
— Ah, querida...
Os olhos de Elizabeth se amoleceram em lágrimas. Eu não suportei encarar seu rosto, sentindo meus próprios olhos arderem dolorosamente. Era bizarro. Eu odiava chorar, mas algo naquela casa mexia comigo tão profundamente que eu me sentia lacrimejar de cinco em cinco minutos.
Eu precisava sair dali.
E rápido.
— Me desculpe, Lizzie. — Escapei de suas mãos com delicadeza. — Por favor, explique ao Hunter que eu tive que ir embora.
— Mas, querida...
— O carro dos meus pais está me esperando.
Era um blefe.
Eu queria sair dali causando o mínimo dano possível e usaria quantas mentiras fossem necessárias para atingir meu objetivo — por isso, meu coração deu um pulo ao avistar o Rolls Royce preto e antiquado na calçada do outro lado da rua: o carro dos meus pais estava mesmo ali.
Eu reconheceria aquele quepe de motorista em qualquer lugar.
Era o senhor Caulder. Ele trabalhava como mordomo na minha casa.
Nós podíamos vê-lo da janela da lavanderia.
— Peça para eles entrarem. — Elizabeth se levantou também, parecendo preocupada.
Quase ri.
Apesar do motorista, eu duvidava que eles estivessem mesmo ali.
— Me desculpe. — Neguei uma última vez, avistando uma sacola de papel próxima a porta. Para meu terror, minhas coisas estavam reunidas ali. Hunter havia colocado minhas roupas para lavar na noite passada e Lizzie provavelmente pretendia devolvê-las para mim. — Foi um prazer conhecê-la.
Antes que eu conseguisse deixar o cômodo, dei de cara com Nana.
Se eu não estava sobressaltada antes, agora meus soluços escapavam livremente.
— Me desculpe.
Merda.
Caralho.
Puta que pariu.
De repente, a única coisa que eu conseguia fazer era pedir desculpas.
— O que você fez com a garota, Lizzie? — Ela perguntou com sua voz áspera, praticamente uma reprimenda.
Eu puxei a sacola comigo ao passar, abrindo a porta dos fundos com urgência e disparando pela lateral da casa.
Um ataque surpresa de Lua Nova me assustou.
Ele pensou que eu queria brincar. Distribuiu lambidas pelo meu rosto salgado de lágrimas, me fazendo rir e soluçar. Merda. Eu queria parar de chorar, mas algo naquela casa parecia me colocar em contato direto com minhas emoções: esfregava minha cara nelas e não me deixava olhar para outra direção.
E, por Deus, eu estava descobrindo que tinha tantas!
Meu maior medo naquele momento era encontrar Hunter e desmoronar em seus braços como uma criança assustada.
Assim que eu cheguei no portão, porém, tive outra surpresa: antes de ver seu rosto, eu ouvi sua voz.
— Close your eyes and I'll kiss you... — Hunter estava atrás do volante, manobrando o carro próximo ao meio fio com os vidros abaixados. — Tomorrow I'll miss you. Remember I'll always be true.
Ele cantava com uma voz limpa e perfeitamente afinada, seus olhos claros presos ao espelho retrovisor para a felicidade da irmã.
Meu coração deu um pulo quando Hunter sorriu na minha direção. Por um minuto, cheguei a acreditar que ele tinha me visto pelo reflexo. A impressão foi tão forte que me fez congelar. Eu estava tremendo e suando, tinha meu estômago retorcido em um nó.
Eu o amava.
Era isso, não era?
As borboletas. A tremedeira. O coração disparado.
Eu o amava.
Tudo isso era amor.
Meu Deus.
Eu amava Hunter Campbell.
● ● ●
Na viagem de volta para casa, eu descobri que amor e crises de ansiedade tinham manifestações físicas muito semelhantes.
O suor, a taquicardia e a falta de ar.
Se as previsões do Google estivessem certas, eu tive sorte de não vomitar no chão do carro — o que, aliás, era possivelmente uma das coisas mais absurdas que eu já li em toda minha vida. Eu não podia morrer do coração toda vez que Hunter sorrisse para mim, não é? Essas coisas tinham tendência de ficarem mais fáceis com o tempo, não mais difíceis.
Eu até consegui enviar uma mensagem para Hunter me desculpando pela minha saída sem ter um ataque.
Isso, sim, eu chamava de progresso.
Sim.
Minhas emoções estavam sob controle novamente e eu já me sentia mais calma.
Eu amava Hunter.
E daí?
Isso era completamente normal.
Eu podia ter me assustado porque não fazia ideia da dimensão dos sentimentos que tinha por ele, mas eu não estava em negação a ponto de não saber que estava apaixonada por ele. Sim, eu sabia que estava apaixonada por ele. Isso era óbvio. O problema era que eu não estava esperando por algo tão intenso. Eu achei que ainda tínhamos tempo antes de chegarmos a algo tão sério. Nós concordamos em ir devagar porque não queríamos estragar tudo e eu estava começando a descobrir que já era tarde demais para mim.
Eu amava Hunter.
Amava tanto que doía.
Talvez, vê-lo na casa em que ele havia crescido, interagindo com sua família, tenha tornado tudo muito real para mim e a verdade tenha me atingido de uma vez só.
Eu o amava.
Desesperadamente.
Mas isso não era motivo para surtar.
Tudo estava sob controle.
No entanto, até chegar a esse entendimento, eu respirei engraçado por cerca de vinte minutos enquanto o senhor Caulder, o mordomo, fingia não existir no banco da frente. Ele dirigiu tranquilo durante o trajeto e eu o agradeci mentalmente por isso — além de sua discrição exemplar, eu podia sempre contar com sua falta de interesse por dramas adolescentes para me poupar de constrangimento.
Quando nós chegamos perto de casa, porém, eu finalmente descobri como ele havia me encontrado. A resposta estava entre as notificações ignoradas no meu celular: meu irmão queria me ver.
Duas mensagens, uma ontem e outra hoje da manhã.
Isso só podia ser um recorde.
Encontrei Cole sentado no sofá da sala, sacudindo as pernas em nervosismo. Ele ergueu a cabeça assim que ouviu meus passos ecoarem pelo corredor e se levantou, derrubando almofadas para todo lado.
— Você mandou um carro me buscar? — Eu disse sem cerimônias, atravessando a porta da sala.
— Esse pareceu ser o único jeito de conseguir a sua atenção, então, sim.
Nós seguimos até a cozinha, o tempo todo eu estava ao encalço do meu irmão. Ele se movia rápido, era como se não aguentasse ficar parado.
— Você não pode interromper o dia de alguém por capricho, Cole — avisei em uma voz mais baixa com medo que alguém nos ouvisse.
— É o trabalho dele.
Meu irmão não olhava para mim. Eu não conseguia entender se ele estava fugindo da conversa ou se estava agitado no geral, por isso, eu me coloquei em seu caminho.
— Não interessa. — Firmei uma mão sobre o balcão de mármore, encarando seu rosto. Ele estava com uma aparência péssima: enquanto seu rosto estava pálido e coberto por uma camada de suor doentio, suas roupas estavam sujas e amarrotadas. — Como você sabia onde me encontrar?
— Palpite de sorte. — Ele ergueu o queixo para me encarar e seus olhos escuros continuavam tão urgentes de antes. — Olha, esquece isso. Eu queria conversar com você. Você precisa me ouvir. Eu estava errado. — Cole piscava demais. — Eu não devia ter... Eu não devia ter te tratado daquela maneira.
— O que você tem?
Mal consegui prestar atenção nas palavras que saíram de sua boca. Eu estava mais preocupada em desvendar seu estado mental.
— Meu dia está sendo uma bosta, April. — Meu irmão passou a mão na testa, puxando seus cabelos prateados para trás. — Eu estou tentando me desculpar aqui.
Ele não havia dormido desde ontem.
Provavelmente passou a noite na rua fazendo sabe-se lá o que.
— Eu não acredito que você está drogado — repreendi com aspereza. — São oito da manhã.
— Fala baixo — disse entre dentes, colocando uma mão sobre o balcão e inclinando seu rosto para mim.
— Por que você está fazendo isso consigo mesmo?
Antes que o irmão pudesse responder, Greta, a governanta da casa, deixou uma louça limpa escapar por entre suas mãos. Em segundos, a porcelana caiu e mil pedacinhos se espalharam pelo chão. O barulho horrível me fez pular. Ela se afastou dos cacos quebrados, muito chocada para reagir, e o som de passos apressados cruzou o corredor.
— O que está acontecendo nessa cozinha? — A voz do meu pai soava poderosa aos meus ouvidos. Eu me preparei para um sermão, mas ele só tinha olhos para o filho mais velho: — Você jogou isso?
Os pedaços da louça destruída continuavam espalhados pelo chão, tão próximos de nós quanto de Greta, mas de nada adiantaria se nós tentássemos explicar — meu pai já tinha escolhido um culpado.
Enquanto eu abaixava a cabeça constrangida, Cole erguia sua voz, ainda mais bravo do que momentos atrás:
— Sim! — Ele empurrou a bancada, colocando-se de pé. — Sim, fui eu!
Nosso pai quebrou a distância com passos largos dominado pela raiva.
— Você perdeu o senso? — Ele esbravejou, de repente gesticulando na minha direção. — Onde você aprendeu a tratar a sua irmã desse jeito? Não foi nessa casa. Não foi comigo.
Eu queria acabar com a discussão antes que algo mais grave acontecesse, mas eles pareciam estar prestes a se digladiarem como cães.
Pelo canto do meu olho, pude perceber que Greta havia desaparecido. O único sinal de que ela estivera ali eram uma vassoura e uma pá abandonados junto a porta.
— Porque eu estou sempre errado, não é? — Cole arregalou seus olhos. — Eu não sou como você. Eu não sou seu filho. Eu não tenho nada de você.
Por um momento, meu pai não reagiu. Ele sequer pareceu ouvir os ataques, seus olhos estavam concentrados em examinar o rosto de seu filho mais velho. Depois de alguns segundos, o brilho de compreensão finalmente acendeu em seu rosto.
— Como você ousa aparecer na sua casa assim? — A surpresa inicial aos poucos deu lugar à indignação. — Você está sujo. Você fede. — Ele agarrou Cole pela camisa por um instante, ainda encarando o filho de perto, e o sacudiu pelos ombros: — Seu viciado de merda. Você não pensa na sua mãe? Na sua irmã?
— Pai — eu chamei ao me aproximar, tentando apartar a briga de alguma forma, mas minha voz não pareceu alcançar seus ouvidos.
— EU NÃO SOU UM VICIADO.
Meu irmão revidou, empurrando-o de volta.
— SIM, VOCÊ É! — Arthur gritou. — E se você pensa que eu vou te deixar estragar a sua vida desse jeito, você está muito enganado.
Quando Cole o empurrou novamente, as costas do meu pai se aproximaram rápido demais. Eu caí para trás, embalada pelo movimento, e minha cabeça foi de encontro à parede. A cozinha foi tomada por um silêncio absurdo e eu senti parte do meu rosto adormecer enquanto pontos escuros manchavam a minha visão. Por alguns segundos, eu mal consegui enxergar. Eu estava assustada, procurando pelos dois no escuro, quando um par de mãos envolveu meu braço e me puxou para cima.
— Fique longe dela.
A voz do meu pai soava grave e muito próxima, mais precisamente à minha direita. Primeiro, eu enxerguei suas mãos segurando meu braço, depois nossos pés e os azulejos do chão da cozinha. Pisquei algumas vezes, levando os dedos a nuca, pouco abaixo da região em que bati.
— Eu só quero ver como ela está.
Cole deu mais um passo em nossa direção e estilhaços de vidro se quebraram sob seus tênis.
— Vá para o seu quarto — meu pai disse baixo, controlando seu tom de voz. Até mesmo sua respiração parecia diferente. — Tome um banho. Nós conversaremos de novo mais tarde.
Puta que pariu.
Eu estava prestes a desmaiar.
— Você não pode me dizer o que fazer. — Cole ameaçou se exaltar novamente, falando rápido. — Ela é minha irmã. Eu não queria machucá-la.
— Vá para o seu quarto — ele repetiu. — Vá para o seu quarto. Agora. SUMA DA MINHA VISTA! Faça isso ou, eu juro por Deus, você nunca mais vai pisar fora dessa casa!
Meu irmão piscou.
— Mas eu tenho aula hoje.
Se não fosse pela dor e pelo pânico, eu teria rido de sua ingenuidade.
Apesar das roupas sujas e dos cabelos engordurados, o loiro não parecia ter ideia de seu estado deplorável.
Meus pais jamais permitiriam que ele envergonhasse a família daquele jeito.
— Cole.
Dito e feito.
Paige Wright decidiu intervir, repreendendo o filho com um olhar.
Eu não tinha percebido a presença dela junto a porta até o momento. Minha mãe parecia estar naquele canto, apenas nos observando de longe, há um tempo.
Finalmente, Cole pareceu se dar por derrotado. Eu o observei desaparecer no corredor e, no próximo segundo, eu ganhei a atenção total do nosso pai:
— Por que você estava atrás de mim?
— Cole estava tentando me pedir desculpas.
— Pelo amor de Deus, April! — Ele parecia desesperado de novo, sem me dar ouvidos. — Eu não posso te ver se você ficar atrás de mim! Nunca mais faça isso! Você pode se machucar. Eu posso te machucar.
Eu estava tentando me acalmar do susto, mas a urgência na voz dele era contagiante, até sua postura me deixava em sobressalto.
— O seu irmão não precisa que você o defenda — disse decidido, apontando seu indicador em riste para mim. — Ele passou dos limites! Ele precisa da nossa ajuda. Minha e da sua mãe, não sua, April. Não consegue ver isso?
— Por que você está gritando? — As primeiras lágrimas escaparam dos meus olhos quando retruquei igualmente alto. — Eu bati a cabeça. Eu me machuquei.
Tudo que eu queria era que ele se acalmasse.
Enquanto meu pai não se acalmasse, eu não conseguiria me acalmar também.
E ele finalmente pareceu perceber isso.
— Eu não sei o que fazer para te ajudar, April — confessou, retirando os óculos e passando uma mão pelo rosto. — Parece que toda vez que eu tento, eu te machuco mais.
Havia sofrimento em seus olhos escuros. Meu pai tinha as sobrancelhas franzidas e parecia exausto, esgotado demais depois de lidar conosco. Ele afrouxou a gravata como se estivesse se afogando e finalmente jogou a pergunta:
— Você quer que eu vá embora?
Eu mesma senti minha garganta se apertar, mas continuei em silêncio.
Mal respirava com medo de sua reação.
— Eu posso parar de tentar — ele sugeriu e rugas de expressão marcaram sua testa.
É claro que eu entendia o que ele estava dizendo.
Meu pai odiava me ver chorar. Ele odiava, principalmente, porque meu desespero sempre piorava quando eu ouvia sua voz carregada. O som capaz de fazer paredes tremerem e chãos se abrirem. Eu o amava, mas ameaças não eram o tipo de acolhimento que uma criança procurava e, no momento, eu me sentia assustada como uma.
— Paige, por favor. — Ele gesticulou para mim e minha mãe veio na minha direção, erguendo suas mãos para segurar meu rosto.
Eu me desvencilhei de seu toque.
A última coisa da qual eu precisava naquele momento era minha mãe examinando meus machucados.
Perto do meu pai, ela sempre me pareceu um porto seguro. Enquanto ele tinha muitas emoções, minha mãe tinha praticamente nenhuma. Paige sempre estava calma, revirando seus olhos para o drama, saboreando um vinho ou uma risada.
Por muito tempo, eu quis ser como ela.
Talvez eu simplesmente não tivesse a vocação para vinho e risadas.
— Pra quê? — Disse sem paciência e minha visão voltou a perder o foco. — Pra você dizer que não está vendo nada? Você nunca sente dor! Nunca sente fome, nunca sente tristeza. Todos somos fracos perto de você.
Um brilho de descrença atravessou seu rosto e eu entendi que sua paciência estava prestes a chegar ao fim.
— Acabou?
Quando não retruquei, ela me ofereceu suas mãos mais uma vez.
Encarando seus rostos borrados, eu me dei conta de que estava fazendo uma cena. Se eu tivesse que ficar magoada com alguém, certamente, não era com eles.
Embora muito contrariada, eu permiti que a mulher me examinasse, afastando meus cabelos com cuidado.
— Eu não estou vendo nada, mas se você quiser ir ao médico...
Não deixei que ela terminasse a frase.
Dei as costas para os dois e marchei para o meu quarto, sentindo minha cabeça martelar a cada passo.
Eu poderia muito bem estar sangrando pelos tapetes e mesmo assim ela não me dirigiria uma palavra. Odiava isso. Odiava a negação. Uma coisa era assistir uma criança cair de bicicleta e dizer a ela que tudo não passava de um susto — outra completamente diferente era bater a cabeça contra a parede e ouvir uma coisa dessas.
— April — meu pai me chamou da cozinha em repreensão. — Eu vou te levar ao hospital.
A voz da minha mãe o advertiu mais baixo:
— Deixe ela ir, Arthur.
Chegando no meu quarto, bati a minha porta com força atrás de mim.
Eu queria ficar sozinha.
Eu queria que todos me deixassem sozinha.
● ● ●
H U N T E R
Você me ama.
Eu te amo. Eu te amo, ouviu?
Você me ama.
Você me ama.
Eu te amo. Eu te amo, ouviu?
Uma batida contra a janela do passageiro me despertou do transe. Seth enfiou o rosto para dentro, seus olhos escondidos atrás de um par de óculos escuros. Mais atrás, Lexie. Eu pedi a eles para me encontrarem no estacionamento de St. Clair antes da aula.
Depois de uma espera de dez minutos, eles finalmente apareceram:
— E onde está a lindinha? — Meu amigo passou o braço para dentro e destrancou a porta, abrindo-a de uma vez.
Eu abri a minha própria porta também, saindo do carro para respirar um pouco de ar fresco.
Desde mais cedo, eu não conseguia parar de pensar em April. Toda vez que eu fechava os olhos, ela estava esperando por mim: eu podia ver seu corpo aninhado ao meu e seu sorriso de gato.
"Você me ama."
Sim.
Definitivamente, eu podia me apaixonar sozinho e amá-la como um tolo. Se isso significasse que eu poderia ficar perto de April, eu levaria as palavras comigo até o túmulo e não tocaria no assunto em vida.
Eu sabia que precisava ser cauteloso com April para não machucar os meus ou os seus sentimentos.
Eu sabia disso tudo.
Entretanto, o que me desarmou completamente foi ouvi-la dizer eu te amo para um cachorro antes de sequer cogitar dizer para mim.
"Eu te amo."
"Eu te amo, ouviu?"
Era loucura.
Eu não conseguia parar de pensar no som daquelas palavras em sua boca.
April me tinha sob suas garras e me fazia prisioneiro, o primeiro a amar sua prisão de bom grado.
— Alguém viu vocês saindo do auditório?
Lexie estava bem atrás de Seth e tinha seus braços cruzados na frente do corpo. Quando ela olhou para mim, seus olhos claros se estreitaram em fendas enquanto o vento desarrumava os seus cabelos:
— Não.
— Ótimo — eu suspirei, apoiando as mãos sobre o teto do carro entre nós. — Vocês precisam tirar essa porra do meu carro.
O maldito busto roubado continuava no meu banco de trás. Sabendo disso, Seth desapareceu no interior do carro, sorrindo como um diabo. Ele provavelmente queria ver a prova do crime: o busto de mármore que eu arrastava para cima e para baixo, escondido apenas pela cobertura oferecida por um edredom velho e furado — se esconder aquela pedra inútil da curiosidade da minha irmã já foi difícil, imagine tentar enganar uma peste como meu melhor amigo.
April estava certa em reclamar da minha ingenuidade.
Eu não tinha onde esconder aquela coisa e seria pior para todos se não devolvêssemos logo. A notícia do roubo do patrono já havia se espalhado pelo colégio inteiro — se somássemos isso à invasão e à depredação do grêmio dos Champoudry, teríamos uma receita e tanto para o desastre.
Enquanto não devolvêssemos o busto, eles continuariam a caçar um culpado e eu não queria ser o mártir daquela revolução.
— Onde está o Finch? — Eu sabia que ele havia se envolvido no furto também.
Cagão do jeito que ele era, Finch não seria exatamente útil, mas nós não estávamos em posição de rejeitar ajuda.
— Ele ainda não chegou.
Naquele momento, uma garota baixa passou por nós sem esconder o olhar atravessado. Nikki ou coisa parecida. Eu sabia que ela era uma Champoudry. A garota exibia a pequena insígnia em seu uniforme orgulhosamente e algo me dizia que ela adoraria nos jogar na fogueira se descobrisse o que tínhamos escondido no banco traseiro.
Seth percebeu os olhares furtivos da menina e, embora a garota não fizesse seu tipo, assobiou alto quando ela passou.
— Nojo — a garota entortou o nariz, apertando o passo.
— Isso mesmo, Vicky, continue andando — uivou em aprovação, sorrindo cheio de deboche.
Nós sabíamos que Seth estava de sacanagem. Ele tentava usar uma de suas gracinhas para tirar a garota dali o mais rápido possível, mas mesmo assim eu e Lexie trocamos um olhar apreensivo. Se a cena chamasse a atenção para o meu carro, teríamos muito a explicar para a direção da escola.
Assim que a garota desapareceu rodeada por seus amigos patetas, Seth suspirou:
— Nós não vamos conseguir ir muito longe se eles continuarem vigiando a gente.
Um bando de infelizes nos aguardava na porta do pavilhão. Que ótimo. Se eles foram liberados, isso só podia significar que a palestra de saúde havia chegado ao fim mais cedo e os corredores estavam transbordando de alunos novamente.
Nós havíamos perdido a oportunidade perfeita de devolver o busto.
Meu amigo pareceu chegar à mesma conclusão que eu. Ele depositou um tapa sobre o capô do carro e se afastou como se desse o assunto por terminado.
De repente, os dois deram as costas para mim.
— Ei — eu os chamei confuso. — Meu carro.
— Desculpe. — Lexie sorriu sobre o ombro, me deixando para trás sem nenhum sinal de culpa. — Nós temos aula agora.
Puta que pariu.
Fechei a porta de uma vez, tomando cuidado para trancar o carro.
April estava certa.
Eu definitivamente seria expulso por isso.
N/A (16.04.2024): Abafa o caso !
Eu pensei em terminar a nota assim e só sumir kkkkkk mas sério...! É difícil para mim capturar a dinâmica da família da april e o que ela sente! Até mesmo a april com a mãe do hunter foi difícil... A pobi nunca esteve tão em contato com as próprias emoções e eu queria retratar isso.
O que acharam? Aliás, o hunter 100% na paz em contraste com a april kkkkkk coitados
Enfim, obrigada pela paciência e o carinho de todos. Qualquer coisa, é só gritar.
Beijos calientes!
B.
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