Capítulo XXIII [PARTE DOIS]
H U N T E R
QUANDO CHEGUEI EM ST. CLAIR, eu sabia exatamente para onde ir. Eu me despedi de Seth ainda no estacionamento e atravessei o campus sob uma garoa fina, mas insistente. A construção de pedra que abrigava a sede da nossa fraternidade ficava próxima ao campo de futebol. Cole Wright sempre começava seu dia lá, rodeado de gente, ouvindo opiniões criativas e atualizações sobre nossos últimos projetos — ele era o representante da Thomas e nossos colegas o respeitavam como uma autoridade dentro do colégio.
Eu queria voltar a ter o mínimo de respeito por ele, mas naquela altura do campeonato parecia impossível.
Noite passada, Cole havia colocado tudo a perder. Ninguém certo da cabeça se arriscava daquela maneira, o que me deixava com duas hipóteses: ou ele era um puta gênio incompreendido ou era um apostador compulsivo brincando com nossas vidas. Minha resposta dependia inteiramente do desfecho da situação em que havíamos nos metido.
Eu estava sentado em um canto da sala de jogos, próximo a uma janela. Bati as cinzas do meu cigarro diretamente no carpete. Minhas costas doíam contra o painel de madeira e minhas pernas estavam esticadas sobre o chão. Decidi que era melhor esperar por Cole ali mesmo, longe dos olhares inoportunos.
A "sala de jogos" era como chamávamos o espaço recreativo onde os estudantes da Thomas se reuniam para ficar de bobeira nos tempos vagos. A decoração contava com quadros antigos espalhados por um papel de parede de estampa vitoriana, cortinas vermelhas mofadas e um carpete velho que fedia a cigarro. Havia uma mesa de sinuca coberta de arranhões, uma televisão sem cabos e um piano com várias teclas faltando. Além de mim, três caras conversavam em voz baixa do outro lado do recinto — provavelmente planejavam matar aula ali mesmo.
Assim que o sinal que anunciava o início do primeiro tempo tocou, Cole surgiu no topo das escadas e seus inconfundíveis cabelos descoloridos se destacaram como um marca texto. Ele subia os degraus cercado por sua comitiva, discutindo os assuntos semanais.
— Por que não uma festa? — Finch insistiu — É muito melhor para arrecadar o dinheiro.
Quando a ideia do show surgiu, Finch foi o primeiro a apoiá-la. Ele adorava a adrenalina do palco e nunca dispensaria a chance de se exibir para uma plateia. Chegou a bater de frente com Zack em mais de uma ocasião e enfrentou a resistência do vocalista com a teimosia de um moleque de cinco anos.
Entretanto, no momento em que o show deixou de ser possibilidade e passou a ser nossa única alternativa, Finch deu para trás. Ele era um grande covarde, sempre amarelava no último segundo.
Cole não pareceu incomodado com a sugestão.
— Você se lembra do que aconteceu no ano retrasado?
Finch franziu as sobrancelhas.
— Nossa festa beneficente foi um sucesso — balbuciou agitado — Nunca vi tanta gente reunida no mesmo lugar. Nós podemos fazer isso de novo: cobrar o ingresso, alugar um ginásio, comprar as bebidas naquele armazém...
— Nunca vimos a cor daquele dinheiro, Finch — Cole o interrompeu — Trabalhamos como cornos na organização daquela festa, arrecadamos uma caralhada de dinheiro com os ingressos e a grana sumiu na mão dos veteranos.
O irmão de April estava certo.
Não havia me ocorrido na época, mas nós fomos roubados. Acho que estávamos tão envolvidos no evento que o dinheiro sequer passou pelas nossas cabeças.
— A existência de uma tesouraria faz mais sentido agora — Finch murmurou e o resto concordou solenemente.
Eles se aproximaram dos sofás e se jogaram sobre os assentos. Eu me pus de pé e puxei minha mochila sobre os ombros, apagando o cigarro no chão de qualquer jeito. Não podia perdê-los de vista.
— A festa foi uma boa ideia, mas nós precisamos de uma solução fácil e rápida — Cole continuou — Uma que dê dinheiro de verdade.
À primeira vista, Cole Wright parecia um moleque mimado com nenhuma preocupação na vida. Quando o conheci melhor, eu descobri que não estava totalmente errado ao julgá-lo assim. Ele nascera com uma esperteza acima do comum e um talento nato para dobrar as pessoas a seu bel-prazer. Usava palavras difíceis para dar voltas nos professores e tirava vantagem sobre a burrice dos desavisados sem remorso.
Eu precisava tomar cuidado com ele.
— Confia na banda — insistiu, passando seus dedos pelo seu cabelo loiro — Arranjamos o local de graça, vamos imprimir uns panfletos mais tarde e contribui quem quiser. É por uma boa causa, não é? As pessoas amam isso.
Dessa vez, o grupo parecia mais animado e murmúrios de aprovação preencheram o cômodo. Cada um daqueles otários parecia fascinado com a facilidade de Cole para encontrar soluções para cada problema.
Assim que me viu, Cole arranjou alguma desculpa e se afastou de seus colegas. Eu não esperei para ver se ele me seguia ou não. Fui até as escadas, desci os degraus em silêncio e atravessei o salão do térreo.
Acima de nossas cabeças, vigas de madeira encontravam o teto. Pelo que ouvi dizer, as portas da entrada daquele prédio faziam parte da construção original de St. Clair. Eram tão velhas que não havia sobrado nem a fechadura para contar história: apenas um rombo com lascas amostra. Em todos os anos que estudei naquele colégio, ninguém nunca se esforçou para consertar. À noite, quando o último funcionário deixava o edifício, uma corrente de ferro atada a um cadeado eram toda segurança que o colégio poderia oferecer.
Eu sonhava com o dia que aquela merda toda iria ao chão.
Enquanto isso não acontecia, eu era obrigado a estudar.
— Eu estou perdendo minha aula por isso — murmurei em voz baixa enquanto andávamos até a entrada.
Cole retirou um maço de Marlboro do bolso interno de seu casaco e colocou um cigarro entre os lábios:
— Vai embora, então, porra.
Nem fodendo.
Cole ainda precisava me explicar qual seria a grande jogada que salvaria nossos pescoços. April dependia disso. Ela ainda era irmã desse bastardo e estava correndo perigo graças às merdas dele.
— Você já tem um plano?
Uma brisa gelada varreu as folhas caídas no chão. Nós estávamos do lado de fora do edifício, onde fazia um frio do caralho. Uma breve olhada no céu e concluí que poderia chover a qualquer momento.
Embora eu estivesse com pressa, Cole continuava compenetrado em sua busca por um isqueiro. Quando ofereci o meu, ele enfiou a mão dentro da mochila e revelou uma caixa de palitos de fósforo. Acendeu o cigarro sem dificuldade e murmurou:
— Tipo isso.
Puta merda.
Eu estava tentando não me irritar, mas aquele cara estava me dando nos nervos.
Cole era um bastardo arrogante que se achava melhor do que os outros por manter a calma em discussões. Se ele tentasse meter uma de superior para cima de mim, eu partiria para a briga em questão de segundos.
— Você ouviu o que aquele cara disse — insisti — Nós não podemos voltar.
— Campbell — ele finalmente olhou para mim — Você viu os mesmos caras que eu? Velhos, armados, cobertos de tatuagem? Acha mesmo que eles não tem nada mais importante para fazer do que ameaçar adolescentes?
Eu me calei.
— Pensa bem, Campbell — insistiu — Isso não faz o menor sentido. Eu não sou uma ameaça. Por que a Sick Rabbit mandaria capangas atrás de mim? O que eles querem de mim?
Minhas sobrancelhas se uniram como se eu estivesse tentando resolver um problema matemático. Eu não estava conseguindo acompanhar muito bem o raciocínio e me sentia perigosamente próximo de levar uma volta dele.
— Eles querem que você suma.
— Não — ele meneou a cabeça loira — Você não está pensando direito. Se eu desaparecer, tudo volta ao normal. O que eles ganham com isso? — o cigarro pendia de seus dedos enquanto gesticulava — Na pior das hipóteses, um adolescente ferido por criminosos será assunto em todos noticiários locais. O interesse público exigirá respostas e a polícia local entrará com uma investigação. Sabe o que isso significa? Tiras por toda parte, Campbell. Atrair a atenção desse jeito não faz bem para o bolso.
Meu cérebro estava explodindo.
— O que tomou de café hoje? — joguei minhas costas contra a parede de pedra, atordoado — Cinco pinos de cocaína?
— Campbell — Cole disse pausadamente — Sick Rabbit pode até ser uma organização criminosa, mas ainda são uma empresa. Eles precisam de lucro.
De verdade, eu me sentia como um pirralho tentando entender física quântica enquanto ele apresentava seu próprio TED talk. Cole parecia alucinado com as próprias ideias, um pouco consumido pelo estresse.
— Então, eles querem dinheiro — murmurei, me encolhendo sob uma brisa fria — O que vai fazer? Trabalhar para eles?
— Não — ele respondeu sem convicção e as olheiras de seu rosto pálido pareceram ainda mais fundas — Eu vou dar um jeito, está bem? Essa é apenas uma resposta temporária. Ninguém vai se machucar. Eles não querem nos machucar.
Pela primeira vez, Cole parecia menos confiante. Ajeitou a gola de sua camisa social sobre o suéter do colégio e respirou fundo. Ele estava mentindo para si mesmo, assombrado pela possibilidade de tudo dar errado. Havia construído uma saída mental daquela situação, mas apenas um equilíbrio frágil o mantinha de pé. Eu tinha a sensação de que, se eu o forçasse a pensar mais um pouco, seu plano desabaria diante dos nossos olhos como um castelo de cartas.
Caralho.
Nós estávamos fodidos.
— E a sua irmã?
Cole evitou meu olhar. Ele tragou seu cigarro e deu as costas para mim, seus sapatos sociais se arrastando lentamente sobre o chão enquanto se afastava.
— O que tem a April?
Meu coração dava pulos no peito.
Não queria que Cole descobrisse que eu estava trepando com a irmã dele, mas naquele momento parecia humanamente impossível calar minha maldita boca.
— O seu plano não é infalível — eu estava nervoso para caralho — Você não vai arriscar machucá-la, não é?
— Campbell, eu não sou estúpido — ele se apoiou sobre o muro ao meu lado e expeliu uma coluna de fumaça — Ela vai ficar em casa.
— Contou à ela?
Eu me sentia meio zonzo. Mesmo que indiretamente, aquela era a primeira vez que eu colocava para fora como me sentia sobre April. Não havia ironia na minha voz ou sorrisinho malicioso nos meus lábios. Eu me importava com April. Queria perguntar sobre ela e falar seu nome. Eu pensava em seu rosto, em seus olhos castanhos e seus lábios macios, mais do que conseguia admitir. Toda preocupação, urgência e obsessão ameaçava transbordar de dentro de mim em uma enxurrada de emoções reprimidas.
Porra.
Eu não deveria ter tocado no assunto.
Pare de falar sobre ela.
Cole me lançou um olhar atravessado e eu forcei uma máscara de indiferença sobre meu rosto.
— Não — finalmente respondeu.
— E então? — insisti, cruzando os braços sobre o peito — O que você fez?
— Só acredite em mim — ele levou o cigarro até a boca e seus olhos vagaram pelo campo de futebol — Ela vai se afastar por um tempo.
Eu assenti, pensativo.
Naquele momento, cerca de trinta alunos em uniformes de educação física deixaram o ginásio e se espalharam pelo gramado. Nós observamos enquanto alguns corriam sobre a pista de atletismo e outros se revezavam em chutar a bola de um lado para o outro. A aula já deveria ter começado há alguns minutos e, a julgar pelo tamanho dos jogadores, eles deveriam ser do oitavo ano ou coisa parecida.
— Você deveria tentar entrar para uma faculdade — quebrei o silêncio — Lá eles podem te ensinar a usar seu cérebro para o bem.
Cole riu sem humor, afastando o cigarro de seus lábios.
— Eles me comeriam vivo.
Não discuti.
Se faltava autoestima naquela cabeça loira, não era problema meu. Eu tinha coisas mais importantes para me preocupar.
— De onde você vai arranjar o dinheiro para pagar esses caras?
— Vou mexer nos meus fundos — Cole deu de ombro — Não queria fazer isso, mas é muita sacanagem estragar tudo para a banda. Pode ser que eu consiga vender na noite do show. Talvez seja bom para mostrar resultados.
— Legal — assenti — Você pretende montar um gráfico pizza, uma projeção de lucros ou algo assim?
Uma risada escapou de seus lábios e ele tossiu com a fumaça.
— Vamos torcer para que esses caras sejam viciados em jogos de azar.
As primeiras gotas de uma chuva tímida despencaram das nuvens cinzentas e caíram sobre o gramado, respingando gelados sobre meu rosto. Nós estávamos próximos à porta do edifício e deveríamos entrar logo se não quiséssemos nos molhar ainda mais.
— Se você estiver errado...
— Nós precisamos disso, Campbell — ele apagou o cigarro no muro e o arremessou a guimba para dentro de uma lixeira ali perto — Se quisermos recuperar o dinheiro, não temos outra opção. Eu pensei muito sobre isso. Não tem jeito.
Os respingos de água cobriram o chão e rapidamente se acumularam em poças. O gotejar da chuva sobre as plantas e o ruído distante de crianças fugindo aos berros para o interior do ginásio foram os únicos sons que consegui ouvir por um tempo. Em silêncio, eu me torturei, imaginando cada um dos desfechos possíveis para a noite do show. Cole parecia tão perturbado quanto eu enquanto seus olhos vagavam perdidos pelo horizonte. Ele precisava acreditar que tudo funcionaria de acordo com seu plano, se não seria consumido pela culpa.
— Preciso ir agora — atirei minha mochila remendada sobre os ombros e dei um tapa em suas costas — Boa sorte.
Por um momento, Cole me encarou perdido. Era como se eu o tivesse acordado de um devaneio. Piscou algumas vezes e coçou seus cabelos loiros, não menos desorientado do que minutos atrás.
— Sorte é o caralho — eu o ouvi praguejar baixo.
Tive que rir.
Pelo menos, ele tentava ser realista.
A P R I L
Por incrível que pareça, eu me sentia bem. Meu coração batia leve no peito, muito mais tranquilo do que momentos atrás. Nenhum pensamento negativo permanecia na minha mente por muito tempo. Todas as minhas preocupações pareciam bobas, sem importância, se colocadas em perspectiva. Claro que o céu continuava carregado de nuvens e meu irmão ainda me considerava um fardo, mas algo dentro de mim havia mudado.
Parte disso, eu devia isso ao Ozzy.
Nós nos conhecemos no parque, a caminho de St. Clair. Assim que nossos olhares se cruzaram, percebi que se tratava de um caso irremediável de amor à primeira vista. As coisas entre nós evoluíram tão rápido que mal pude acompanhar: quando vi, estávamos juntos no chão.
É como eu sempre digo: você nunca deve subestimar o poder de uma boa lambida.
De verdade, depois de um bom banho de língua, eu me sentia renovada. Ozzy sabia como conquistar uma garota. Ele era um pug de seis quilos e meio que sabia usar o charme canino a seu favor. Até eu, que não era a maior fã de cachorros, me afastei da pequena criatura peluda com um grande sorriso bobo no rosto.
Sério.
Quem precisava de homens?
Cole, Hunter, Eric e todos os outros poderiam muito bem ir se danar. Ozzy me mostrou que havia mais na vida do que garotos e seus joguinhos cruéis. Ter aquele focinho curto e molhado farejando minha pele me fez reavaliar minhas prioridades. Eu não devia me sentir mal pelo que Cole havia me dito no carro — se meu irmão achava que eu era um fardo, o problema era dele. Nunca tive a intenção de sufocá-lo ou segui-lo como uma sombra. Eu não podia simplesmente deixar de frequentar a escola e de falar com meus amigos do nada.
Bom, foda-se. Me remoer pensando sobre aquela discussão era inútil.
Ozzy dificilmente se importaria com esses conflitos infantis. Ele tinha coisas mais interessantes para fazer como correr atrás de pombos, latir para criancinhas no parque e sair em expedições em busca do desconhecido. Carpe diem, fugere urbem... Aquele pug realmente tinha uma ou duas lições para ensinar. Ou talvez eu estivesse tirando coisas demais do comportamento padrão canino. As duas opções eram possíveis. Quer dizer, embora fosse sem dúvidas uma criatura sábia e incrivelmente evoluída, Ozzy ainda era apenas um cachorro: assim que ele se cansou de mim, ele passou a lamber suas partes íntimas.
Não poderia culpá-lo.
O dono de Ozzy, um sujeito de meia idade de nariz comprido, bastante sério, me explicou que seu amigo de quatro patas havia passado por uma castração há algumas semanas e ainda estava se adaptando à nova vida. Ir ao parque poderia ser estressante para aquela criaturinha e eu fiquei feliz em fazer minha parte para ajudá-lo a se acalmar.
Apesar de me sentir grata pelos beijinhos caninos, os resquícios de sua saliva pegajosa continuavam espalhados pelo meu rosto. Torci o nariz para a lembrança de sua língua fina e molhada em minha bochecha.
Precisava ir ao banheiro e lavar meu rosto.
Entretanto, no momento em que passei pelos portões de St. Clair, o sinal que anunciava o início das aulas atravessou os corredores. Não consegui fugir dos apitos dos inspetores. Eu fui enxotada para dentro da sala junto de uma leva de alunos. A pequena dose de serotonina que Ozzy havia me proporcionado estava chegando ao fim rapidamente e o dia ainda nem tinha começado direito.
— Por favor, sentem-se — senhora Martin se empertigou sobre seus saltos, erguendo seu queixo anguloso para mirar o fundo da sala — Sentem-se já!
Ela tentava a todo custo chamar atenção de um grupo de meninos, mas sua voz sequer os alcançava. Os estudantes se acomodavam aos poucos em seus lugares, todos conversando alto e trocando novidades.
Eu me dirigi até minha mesa, procurando Zoe entre os alunos. Ela era a única das meninas a dividir essa aula comigo. Antes do café-da-manhã em família explodir na minha cara, eu havia feito planos para encontrá-las: esperaria pelas meninas no gramado, em frente à escadaria do edifício principal — queria vê-las, me certificar de que estava tudo bem e, com sorte, comer um croissant de chocolate. No fim, nada disso fora possível.
Zoe entrou na sala acompanhada por Zack. Ela contornou mesas e cadeiras enquanto seus dedos apertavam a alça de sua bolsa, quase brancos. Assim que encontrei seu olhar inquieto, a realidade da noite passada me atingiu com força: Eric Prescott havia nos ameaçado no meio da rua. Nós tentamos bater de frente com ele e a situação só não ficou feia porque um de seus amigos inúteis apartou a briga.
Desde que nos despedimos ontem, eu e as meninas não tivemos tempo para conversar sobre o ocorrido. Nós precisávamos nos reunir o mais rápido possível para decidir o que fazer, se é que faríamos alguma coisa.
Mesmo sem dizermos nada, Zoe pareceu concordar comigo.
Ela me conferiu de cima a baixo, seus olhos faiscando em preocupação. Era como se quisesse ter a certeza de que eu estava inteira. Eu fiz o mesmo, me aproximando para trocar um abraço rápido.
— Bom dia — o cabelo de Zoe era macio e cheirava a shampoo — Eu encontrei com a Jackie mais cedo.
— Eu me atrasei — murmurei de volta como se isso fosse explicação o suficiente, sentindo algo no meu interior afundar um pouco. Queria ter encontrado com elas.
— E aí? — Zack sorriu, ocupando a carteira atrás de mim — Viu as minhas mensagens no grupo?
Minha amiga se sentou ao lado dele, à minha diagonal.
Nossos assentos foram mapeados pela professora no início do ano letivo, um pequeno experimento social idealizado para retirar o máximo de aproveitamento do nosso aprendizado — palavras dela.
— Não, ainda não — um sorriso hesitante crescia nos meus lábios enquanto descia as alças da mochila pelos meus braços — O que aconteceu?
— Sua amiga é muito talentosa — inclinou o queixo para Zoe, que retirava o material da bolsa. Ela apenas revirou os olhos numa tentativa de nos ignorar.
— Só cala a boca e mostra para ela — minha amiga tentou tomar o celular dele — A aula vai começar.
— Eu juro que se for um nude... — deixei minha ameaça no ar. — Eu avisei ao Finch para pensar duas vezes antes de compartilhar algumas coisas comigo
Zack recolheu o aparelho para si e arqueou uma de suas sobrancelhas, interessado:
— Que obsessão é essa com nude, April?
Uma risada escapou pelos meus lábios e Zoe parecia querer nos bater por falarmos tanta merda. Ela não parava de olhar para a frente da sala, onde a professora lutava contra cabos e botões para ligar o projetor.
Zack finalmente estendeu o celular para mim. Eu encarei a tela cheia de curiosidade e me deparei com um desenho de linhas simples, mas precisas: era o contorno de uma escultura grega, uma cabeça de mármore que se partia em dois e revelava parte de um crânio.
— É o logo da nossa banda — meu amigo explicou.
— Zoe, você que desenhou? — tomei o aparelho da mão dele para ampliar a imagem. O desenho fora feito em um caderno, eu podia ver pelos traços do lápis e a textura do papel — Ficou perfeito!
— Ela só me mostrou hoje de manhã — Zack arregalou seus olhos castanhos — Dá para acreditar? Temos uma artista entre nós.
Minha amiga deu de ombros, abrindo o zíper da bolsa de carteiro em seu colo.
— Queria te mostrar, mas não encontrei uma boa oportunidade — ela confessou, abaixando o olhar para procurar algo no interior da bolsa — Ainda posso melhorar.
Enquanto Zoe fingia não estar envergonhada com a atenção, Zack não podia parecer mais contente. Era quase como se um sol particular brilhasse sobre seu rosto, iluminando seus olhos. Seus lábios escondiam um sorriso que transbordava em todas as suas feições. Por mais tímida que fosse, minha amiga não estava atrás. Ambos irradiavam felicidade, como se tivessem o sentimento engarrafado dentro de si.
Talvez se apaixonar fosse assim.
Ao mesmo tempo em que algo quente se espalhava pelo meu peito, senti uma pontada atravessar meu coração. Será que eu e Hunter já nos olhamos daquele jeito? Não. Provavelmente, não. O que tínhamos era diferente. Nascera da luxúria, um pecado. Se não estávamos trocando farpas e girando facas em cima de feridas, estávamos agarrados um ao outro como seres primitivos guiados por instinto.
Mãos trêmulas, corpos suados e respirações entrecortadas. Uma parte de mim estava convencida que poderia morrer se não provasse daquele calor delicioso novamente. Chegava a ser doloroso. Em alguns momentos, quando estávamos sozinhos, eu poderia jurar que o conhecia tão bem quanto qualquer parte de mim. Encarava seus olhos e enxergava tudo o que queria. Era como se Hunter me puxasse para seu peito e me arrastasse para dentro de si, encaixando todas as nossas peças quebradas. Então, no próximo segundo ou depois, ressentimento e desconfiança rasgavam nossa realidade tantos pedaços que não éramos capazes de juntar novamente.
Talvez eu fosse apenas uma covarde que só sabia fugir ou, talvez, Hunter fosse mesmo um babaca e eu estivesse certa em correr para longe, não importava mais: depois do que acontecera ontem, era tarde demais para entender a natureza do meu relacionamento com Campbell.
Eu estava quase certa de que estava tudo acabado.
— Bom, saiba que vou mostrar o novo logo da The F Word para todo mundo — o peito de Zack se estufou de orgulho — Pode se acostumar com isso.
Respirei fundo, afastando sentimentos confusos para longe. Hunter conseguia tirar meu fôlego sem nem mesmo estar presente. Ele já havia deixado uma marca permanente em meus pensamentos.
— Droga — suspirei, lembrando de um detalhe. Foco, April — Caramba. Zoe, você vai precisar do seu caderno? Sua mochila ficou na minha casa ontem.
Eu a imaginei levando sua mochila para cima e para baixo, na espera do momento perfeito para mostrar sua ideia ao Zack. Ela deixou o material no meu quarto ontem à noite e tudo que restara do desenho foi essa foto.
— Não tem problema, tenho tudo que preciso aqui — deu dois tapinhas na bolsa de carteiro em seu colo — Posso até desenhar de novo se for preciso. Zack já falou com os meninos, estávamos pensando em imprimir alguns panfletos para o show depois do treino. Você vem?
Minha expressão se fechou antes que eu pudesse evitar. Foi como se assoprassem uma vela e apagassem meu sorriso. Eu queria manter distância de Cole e, provavelmente, seria bom evitar Hunter também.
— Sabe o que é? — forcei um sorriso, um mostrar de dentes sem convicção, enquanto procurava por uma boa mentira — Eu não...
Não pude terminar a frase.
— Ora, vamos — próxima ao quadro, a professora levantou a voz para que todos pudessem ouvir — Deixem de preguiça. Peguem suas canetas, abram seus cadernos. Não quero ver ninguém dormindo — advertiu ao desligar as luzes — Estou olhando para você, senhor Dempsey.
O som de risadas se espalhou pela sala e Zack abriu um sorriso despreocupado para a professora, se espreguiçando sobre a cadeira como um gato. Ele andava de ótimo humor nos últimos dias. Já estava na hora das coisas começarem a dar certo para meu amigo: tinha a banda, a garota e um mundo de possibilidades no horizonte.
— Estou bem acordado, senhora Martin — ele piscou para mim e, sob a mesa, enroscou sua mão a de Zoe.
A senhora ajeitou os óculos de armação vermelha sobre o nariz e murmurou insatisfeita:
— Olhos aqui na frente.
Aos poucos, meu sorriso desapareceu.
Perder tempo pensando em Hunter era um erro. Não podia ficar para trás só porque algum garoto estava mexendo com a minha cabeça. Precisava colocar meus dramas pessoais de lado e aprender alguma coisa nova.
No momento em que virei meu corpo para frente, uma gargalhada sonora estourou no fundo da sala. Eu lancei um olhar irritado sobre o ombro e me deparei com a última pessoa que desejava encontrar naquele momento: Eric Prescott e seus amigos estavam sentados nas últimas cadeiras, próximos a parede. Eles me observavam com sorrisinhos bobos e conversavam em voz baixa.
Um arrepio gelado atravessou minha espinha. Nenhum daqueles brutamontes me assustava tanto quanto Eric. O ex da minha amiga me encarava imóvel, de braços cruzados, com uma expressão perigosa em seu rosto.
— Silêncio — a professora pediu, seu olhar pairando sobre os alunos sem saber de onde o som vinha. A luz do projetor batia contra seu rosto e cegava seus olhos.
Recomponha-se.
Minhas mãos voaram para o zíper da mochila e eu retirei meu caderno de seu interior, ansiosa para me ocupar. Havia um vão embaixo do tampo da mesa, um porta-livros, onde eu guardava meu estojo. Eu tentei empurrar meu material para dentro, mas o espaço parecia estar preenchido por algo. Seja lá o que fosse, era denso e ao mesmo tempo poeirento, mais pesado que areia. Puxei o estojo de volta e algo leve caiu sobre minha saia e meus sapatos.
Era terra.
Cobria minhas mãos e a capa do meu caderno.
Por vários segundos, cheguei a me perguntar se estava sonhando. Tudo parecia muito simbólico, como algum pesadelo projetado pelo meu subconsciente.
As risadas do fundo da sala me provaram que estava bem acordada e tudo aquilo era muito real. Eric Prescott esperava por aquele momento: ele havia preenchido meu porta-livros com terra e ria com os amigos.
Eu não fazia a menor ideia do que aquilo significava, mas se ele achava que eu ficaria parada sem fazer nada, estava louco. Voltei a tocar o compartimento sob a mesa, dessa vez com cautela.
Sim. Havia bastante terra.
Olhei ao redor.
Enquanto alguns alunos assistiam a aula distraídos, outros dormiam de cabeça baixa.
— Me empresta isso — tomei um copo descartável vazio que repousava sobre o tampo de uma garota sentada ao meu lado.
Não esperei para ver sua reação.
Não tinha tempo para isso.
— Aquilo era terra na mão dela? — ouvi Zack murmurar pelas minhas costas.
Precisava fazer aquilo enquanto meu sangue ainda estava quente. Levei o copo até o compartimento embaixo da mesa e o enchi de terra.
— April? — Zoe tocou meu ombro.
Não respondi.
Apenas levantei e me dirigi até o fundo da sala com o coração martelando nos meus ouvidos. Os meninos assistiram enquanto eu me aproximava, trocando cotoveladas e abafando risadinhas.
— Senhorita Wright? — a professora chamou — Algum problema?
Eu avancei até a mesa de Eric Prescott, seus amigos acompanhavam a cena empoleirados em suas cadeiras. Eric se ajeitou sobre o assento, sorrindo. Sequer pensei duas vezes antes de virar o copo e jogar uma nuvem de terra em seu rosto.
— Ficou maluca? — alguém gritou.
Alguém acendeu as luzes e um burburinho começava a se espalhou pela sala. Eric estava coberto de terra. Ele agitava sua roupa para se livrar da sujeira e um garoto sentado ao lado dele cobria os olhos, chiando de dor — a poeira havia atingido sua vista.
— Senhorita Wright! — a professora se esgoelava — Saia da sala. Agora!
Puta que pariu.
Adrenalina corria pelas minhas veias e meu corpo formigava, entorpecido. Não conseguia enxergar os garotos, que me xingavam, nem ouvir a turma, que ria escandalizada. Eric Prescott me encarava com um brilho homicida no olhar enquanto agitava seus cabelos com a mão, tentando se livrar da terra espalhada pelos fios.
Não tentei me justificar para a professora. Eu sabia que não deveria ter interrompido a aula para participar de uma vendetta. Recolhi meu material e me dirigi até a saída sem dizer uma palavra. Ela poderia até tentar me reprovar se quisesse, mas cada segundo da minha pequena vingança ainda teria valido a pena.
Depois de deixar o caos da sala de aula para trás, minha primeira parada foi o banheiro feminino. Tive a sorte de não cruzar com nenhum inspetor no caminho. A última coisa que eu precisava naquele momento era de uma escolta particular até a sala do diretor.
Em frente ao espelho, eu deixei meus ombros relaxarem. A água fria percorreu minhas mãos e desceu pelo ralo, levando toda sujeira embora. Removi o resto da terra com ajuda de muito sabonete, esfregando meus dedos até minha pele enrugar — tudo isso enquanto sustentava um sorrisinho convencido no rosto.
Caramba.
Eu quase conseguia ouvir a risada de Jackie atravessando meus ouvidos.
Talvez Eric parasse de mexer com minhas amigas quando percebesse que estava lidando com uma louca.
Bom. Eu deveria aproveitar meu recém-adquirido status de expulsa de sala para ir atrás do croissant de chocolate. Seria uma boa recompensa para meu estômago, que roncava alto fazia pelo menos dez minutos. Sequei minhas mãos e saí do banheiro imaginando a massa folhada derretendo na minha boca como manteiga, perfeita para curar minha TPM.
Assim que cruzei a porta, percebi que não estava sozinha. Eric Prescott esperava por mim no corredor, encostado em um dos armários. Ele tinha as mãos enfiadas nos bolsos da calça social e me observava com ceticismo cintilando em seus olhos claros:
— Você não deveria ter feito aquilo.
Embora meus ombros estivessem tensos, eu bufei .
Meu único arrependimento fora o de não ter aproveitado a oportunidade para jogar uma cadeira nele ou algo assim. Da próxima vez, eu faria direito.
— Na verdade, — estreitei os olhos — eu estou bem feliz comigo mesma, obrigada.
Eu não queria ficar sozinha com Eric.
O nervosismo começava a aflorar na minha pele, plantando pequenos alfinetes na sola de meus pés, mas eu não daria a ele o prazer de me ver nesse estado. Meus passos decididos me levaram em direção ao interior do edifício, onde um grupo de alunos matava aula. Eu podia ouvir o barulho de gargalhadas e vozes distantes ecoando a distância, se contrapondo ao som abafado que escapava das salas de aula fechadas.
— Fique longe da minha namorada — ele murmurou.
Namorada?
Era muita falta de noção. Eric perdeu o direito de sequer dirigir a palavra a minha amiga no momento em que foi violento com ela. Havia enlouquecido se achava que poderiam reatar o relacionamento depois de tratá-la daquela maneira.
Aquele maldito psicopata.
Dei meia volta para encontrá-lo na mesma posição, de costas para um armário.
— Se você encostar um dedo nela, seu porco...
Pela primeira vez naquela conversa, sua tranquilidade deu lugar a fúria.
— Você vai fazer o quê? — falou mais alto, impaciente — April, eu poderia quebrar seu braço como um palito de dentes.
Engoli em seco.
Apesar da hostilidade entre nós, eu não estava esperando por uma afirmação tão violenta. Eric não era forte o suficiente para me machucar daquela maneira, mas sem dúvidas parecia disposto a tentar.
— Não que eu queira fazer isso, claro — ergueu seus ombros — Mas você deveria parar com as ameaças vazias. É cansativo.
— Sim — murmurei — Eu não esqueci. Vou deixar as ameaças para você, já que entende bem do assunto.
Eric franziu a testa e inclinou a cabeça para o lado, como se tudo não passasse de um mal entendido.
— Que ideia foi aquela de encher o meu porta-livros com terra? — eu mudei de assunto, procurando pela fagulha de ódio que permanecia acesa dentro de mim. Não podia me deixar intimidar por Eric.
— Terra? — riu debochado — Acho que você está confusa, April. Isso tem cara de trote. Pode ser impressão minha, mas aquelas garotas do time de futebol não pareciam felizes com você.
Eu não consegui acreditar em Eric nem mesmo por um segundo. Havia uma satisfação perversa em seu sorriso que me deixava alerta, uma malícia me faria desconfiar até de uma afirmação simples como "o dia está ensolarado".
— Eu vou direto ao ponto, April — ele se aproximou e eu recuei — Não posso permitir que isso se arraste por mais tempo. Você e suas amigas viraram minha namorada contra mim. Vocês encheram a cabeça dela de merda — mais passo em minha direção e minhas costas encontraram um armário — Nada disso teria acontecido se vocês cuidassem das suas próprias vidas.
— Você é doente — uma risada misturada a respiração escapou dos meus lábios.
Qualquer tentativa de conversar com aquele filho da puta asqueroso seria em vão. Ele havia se convencido que era algum tipo de príncipe e nós éramos garotas malvadas atormentando seu namoro.
Eu teria fugido e dado um fim aquela conversa se Eric não tivesse me alcançado. Sua mão se fechou ao redor do meu pulso e ele me arrastou para perto.
— Não se intrometa mais no meu relacionamento — sua voz era baixa, feroz.
— Indy é minha melhor amiga — ralhei — Lamento que você não esteja lidando bem com o término, mas ela te deu um pé na bunda. Hora de seguir em frente.
Ele não cedeu. Segurava firme e machucava meu braço.
— Se você não me soltar, eu vou gritar.
O estouro de uma gargalhada quebrou o silêncio tenso que pesava entre nós. A julgar pelo barulho cada vez mais alto, um grupo de alunos se aproximava e nos encontraria a qualquer momento. Eric deu para trás, hesitante, e a pressão de seus dedos contra minha pele diminuiu. Eu aproveitei o pequeno susto para me desvencilhar de seu aperto e me afastei.
— Algum problema aqui, garotão? — uma voz feminina irrompeu de algum lugar atrás de mim.
Havia uma pequena plateia reunida para observar o show. Os assobios e risadas escandalosas rapidamente foram substituídos por sussurros alarmados. Lexie Palmer liderava o pequeno grupo de curiosos, ela se aproximou de nós e se pôs do meu lado.
— Que ótimo — Eric bufou irônico, olhando do rosto dela para o meu — Outra piranha.
— Desculpe. Nós estamos atrapalhando a sua festinha? — Lexie arqueou as sobrancelhas — Não precisa partir por minha causa.
— Pense sobre o que eu te falei, April.
Ao invés de me encolher, eu ergui o queixo. Não me deixaria intimidar por aquele babaca outra vez. Eric não esperou por uma resposta: deu as costas e fez o caminho de volta até a sala sem pressa.
Lexie o observou sumir no corredor com curiosidade faiscando em seus olhos verdes. O combo jaqueta de couro e botas de combate fora substituído por um suéter escuro sobre uma camisa social branca e uma saia plissada igual a minha. O par de sapatos em seus pés eram a única coisa que destoava do resto: tinha uma aparência gasta e maltratada, implorava por uma mão de graxa.
— O que você fez para irritá-lo?
Eu ajeitei a mochila sobre meus ombros e tomei o caminho oposto de Eric, meus passos ecoando contra o piso lustrado.
— Não é da sua conta.
— Desculpe — ela me alcançou com passadas largas — Eu só fiquei curiosa.
Depois do que acontecera no último treino de futebol, eu tinha o direito de ficar zangada com Lexie. Pouco me importava se aquilo não passava de um trote de iniciação. Eu queria responder alguma grosseria, mas não consegui. Uma mordaça parecia cobrir minha boca. Parte de mim acreditava que, se eu externasse minha raiva, Lexie assumiria que meu mau humor tinha a ver com Hunter.
E eu não brigaria com ela por causa de um cara.
— Você colocou terra na minha mesa? — disparei.
Uma ruguinha surgiu no meio da testa da Lexie. Ela encarou seus amigos como se dissesse "nós fizemos isso?" e eles retribuíram o olhar, igualmente confusos.
— Terra? — Lexie repetiu. Não pude deixar de encarar o rosto dela. Seu nariz arrebitado se pronunciava com delicadeza sobre seu rosto enquanto seus lábios se curvavam em um sorriso intrigado.
— Esquece.
Eric pregara uma peça em mim e sequer tivera a decência de assumir. Não bastava ser um traste, ele precisava ser infantil também.
— Te vejo no treino — ela cantarolou enquanto eu me distanciava.
Ainda tinha isso.
Que maravilha.
H U N T E R
Mal consegui prestar atenção às aulas. Não havia espaço na minha cabeça para pensar algo que não envolvesse April. Eu estava ansioso para vê-la e estressado graças aos problemas que o irmão dela tinha causado. Assim que me liberaram para o almoço, eu fui direto para o refeitório e me sentei à mesa — sem bandeja, nem nada, estava focado em encontrá-la.
Nos primeiros vinte minutos de espera, eu realmente acreditei que April atravessaria as portas e caminharia na minha direção com passos decididos. Ela teria que se sentar ao meu lado. Não havia outra escolha: todos os outros lugares estavam cheios.
Eu aguardei e nada aconteceu. Passei quase meia hora ouvindo as piadas podres de Seth e discussões aleatórias sobre o show, sempre compenetrado em meus próprios pensamentos. Toda vez que meus amigos tentavam me incluir no assunto, eu murmurava respostas genéricas, tão tenso quanto Cole. Ele ocupava o lugar de frente para mim e mal havia tocado na comida.
Céus.
Eu faria qualquer coisa para ter a chance de conversar com April. Queria convencê-la a esquecer aquela palhaçada de regras e dar uma chance para nós. Depois da cena de ontem, teria um trabalho do cão até conseguir a confiança daquela garota novamente. Minha cabeça doía só de pensar na teimosia de April. Por sorte, a insistência dela só não superava a minha, se não teríamos acabado há muito tempo.
Depois de me despedir dos outros, caminhei para aula de biologia no pior dos humores acompanhado dos meus parceiros de laboratório. A última coisa que eu esperava era encontrar April sentada em nossa bancada, folheando as páginas de um livro. Eu podia ver suas pernas bem torneadas cruzadas sobre o acento enquanto sua saia escura cobria o início de suas coxas. Jesus. O menor vislumbre daquela pele nua era um perigo para mim.
Quando nos aproximamos do balcão de mármore, April ergueu seus olhos das folhas amareladas e suas íris castanhas pousaram sobre mim. No próximo instante, fui atingido por um raio. A eletricidade percorreu meu corpo como um choque, de célula em célula.
Caralho.
Eu estava muito fodido se apenas um olhar conseguia mexer comigo desse jeito.
April não se abateu. Permaneceu imperturbada em seu lugar enquanto atravessávamos o laboratório. Apesar das risadas sonoras dos meus amigos, a garota mantinha sua atenção voltada para a leitura, compenetrada.
O laboratório em si não era impressionante. Tinha janelas amplas e paredes revestidas por ladrilhos brancos que refletiam a iluminação deprimente de lâmpadas fluorescentes. Havia seis bancadas de mármore escuro espalhadas pelo recinto e cada uma era aparelhada com duas pias, torneiras de gás e tubos de ensaio. Os alunos se distraíam mexendo em tudo e conversando baixo.
— Ora, ora — Seth deslizou para o assento ao lado dela com um sorrisinho astuto — Veja só o que temos aqui.
— Vocês estão atrasados — ela retrucou e seus cabelos brilhosos se espalharam sobre suas costas como uma cascata.
Eu queria tocá-los. Meus dedos chegaram a formigar pelo contato. A lembrança de seus cabelos castanhos torcidos em volta da minha mão permanecia bem viva na minha memória.
— Preciso admitir. Você me surpreende, April — ele insistiu — No caminho pra cá, escutei um boato emocionante envolvendo uma garota furiosa, um atleta indefeso e um balde de terra.
April apoiou seu queixo sobre uma de suas mãos delicadas e girou um marca-texto entre seus dedos, entediada:
— Não foi assim que aconteceu.
— Então... — Seth disparou, inclinando seu corpo sobre o balcão de mármore — Estamos correndo algum risco sentados aqui, do seu lado?
Ele deveria ter pelo menos dois cadernos cheios de piadas sem graça para cada ocasião e ficaria mais do que feliz em gastar pelo menos metade aqui.
— Você conhece a April — Zack se aproximou — Perto dela, sempre estamos correndo algum perigo.
— Eu não sou Carrie, a Estranha — respondeu, sem emoção.
— Não, claro que não — meu amigo uniu as sobrancelhas ruivas e empinou seu assento de madeira para trás — Você está mais para April, a Terrível.
Ela fechou o livro e o encarou enquanto uma sombra de sorriso brincava em seus lábios:
— Eu não sou terrível.
— April, a Impiedosa soa melhor — Zack se sentou na ponta da bancada, perto do corredor que atravessava o laboratório. Ele observava o celular que tinha em mãos, distraído — É minha opinião artística.
— O que acha, Campbell? — Seth me lançou um esperto — Os apelidos fazem justiça?
O único lugar disponível era ao lado de April. Eu aproveitei a oportunidade para chutar o banco de Seth enquanto passava, ele se desequilibrou e caiu para trás.
— Ô, porra — ralhou do chão para a sala inteira ouvir — Toda hora isso?
Não dei importância.
Quando me sentei ao lado de April, não a encarei. Joguei minha mochila sobre o balcão de mármore sem a menor delicadeza. Nossos braços mal se encostaram e ela se moveu tensa sobre o assento de madeira, como se minha presença a repelisse.
Ótimo.
Essa aula seria divertida.
— Senhor Montgomery — uma voz irrompeu da frente da sala — Que bom que você e seus amigos estão prestando atenção. Como pode ver, cada bancada recebeu um exemplar de Biologia: Volume Único — o professor ergueu um calhamaço encardido para mostrar a turma — Vamos começar a aula abrindo o livro na página 287. Você pode fazer as honras e ler o segundo tópico para nós.
A última parte foi dirigida a Seth, que ouvia tudo com uma expressão pouco impressionada.
O professor de biologia continuava um babaca. Ele ocasionalmente se divertia às custas de algum aluno, mas nada tão ruim quanto a primeira aula. Eu até o respeitava, mas estava ciente de que era péssimo nessa matéria e que poderia muito bem ser o próximo alvo de uma zoação.
April estendeu o livro de capa surrada para meu amigo. Ele o aceitou como se tratasse de um item alienígena e franziu as sobrancelhas para as letras garrafais.
Aquilo não seria bom.
— É para hoje, senhor Montgomery.
— Em voz alta? — Seth penteou cabelos ruivos para trás — Sabe o que é, professor? Tem tanta gente querendo ler... Olha a Kitty ali, por exemplo.
Algumas meninas da bancada ao lado riram e uma delas escondeu o rosto de vergonha — deveria ser a Kitty. Eu ergui a mão, mas o professor ignorou o gesto:
— Agora.
Seth não teve outra escolha. Ele folheou as páginas à procura do número 287 enquanto um burburinho crescente tomava conta da turma.
Meu nariz chegou a coçar de tanta poeira que o livro levantava.
— Silêncio — Jacob advertiu.
Meu amigo limpou a garganta. Depois de muito enrolar, finalmente abriu a boca e a primeira leva de palavras saiu de seus lábios.
O som de risadas baixas emergiu da frente da sala e cruzei os braços sobre a bancada, incomodado. Seth não era muito bom em ler em voz alta. Eu não sabia se ele ficava nervoso ou algo assim, mas ele tropeçava em sílabas e gaguejando palavras inteiras. Os professores nunca tiveram muita paciência para acompanhar seu ritmo — ora agitado, ora distraído — e os sorrisos convencidos de outros alunos não o encorajaram a criar um interesse especial pelos livros.
Aos poucos, essas coisas deixaram de ser importantes para ele.
— Tudo bem, chega — Jacob o interrompeu em determinado momento — Já temos o suficiente.
Meu amigo ergueu os olhos do livro, ainda absorto em pensamentos. Não parecia particularmente incomodado pelo que havia acabado de acontecer. A maioria dos professores achava que Seth estava de sacanagem e, talvez, fosse melhor assim mesmo.
— Senhorita Wright — o professor apontou April — Prossiga.
Passei a aula inteira tentando convencer Seth a não usar a torneira de gás da bancada para acender um cigarro. Foi exaustivo, para dizer o mínimo.
Assim que o sinal tocou, eu me dirigi até a porta e esperei por April do lado de fora. As outras turmas foram liberadas e rapidamente o corredor foi tomado por um mar de estudantes em agasalhos escuros e uniformes desalinhados.
Minutos se passaram e nada daquela garota aparecer.
Quando o último aluno deixou a sala, minha paciência se esgotou. Aquilo já estava ficando ridículo. Ela não podia me evitar para sempre. Nós precisávamos sentar em algum lugar e resolver nossos problemas, conversando como pessoas normais.
Atravessei a porta do laboratório movido por uma determinação cega. April precisava me ouvir dessa vez. Eu estava com seu nome na ponta da minha língua quando me deparei com uma cena que não gostei nenhum pouco. April e o professor estavam próximos. Ambos tinham a atenção presa a um amontoado de papéis sobre a bancada escura. Enquanto Jacob se inclinava sobre a superfície para corrigir o trabalho com uma caneta, April apoiava uma mão sobre o tampo de mármore, seu corpo voltado para ele.
— Está tudo em ordem — ele levantou a voz ao perceber minha aproximação — Eu só preciso da assinatura da sua dupla.
O professor me encarou por cima das lentes de seus óculos, esperando minha reação. Caralho. Alguém que acordava antes das sete e encontrava energia para pentear o cabelo com gel não poderia ser normal — aquele só podia ser um traço de psicopatia ou algo parecido.
— Hunter — April se moveu em minha direção e me ofereceu uma caneta que estava jogada sobre o balcão — O trabalho.
Ela tinha um olhar cauteloso em seu rosto delicado.
Precisei de alguns segundos para entender o que estava acontecendo.
O maldito trabalho. Há mais de um mês, eu e April recebemos uma advertência por fugir da aula de Biologia e o professor nos deu esse relatório como penitência. O papel não estava assinado com meu nome porque eu não o fiz. Sequer havia pensado no assunto nas últimas semanas.
April se aproximou, dessa vez impaciente. A garota não queria correr o risco de desagradar o professor de novo. Eu aceitei a caneta e deixei minha rubrica ao lado do nome dela.
— Excelente — ele conferiu as folhas de novo e ergueu os olhos para nós — É só isso, estão dispensados. Não deixem o nível cair.
Assenti à contra vontade.
April não deveria ter passado por cima de mim daquela maneira. Eu poderia não ser um aluno exemplar, mas eu era perfeitamente capaz de fazer minha parte naquele trabalho.
— Até a aula que vem — a menina murmurou ao subir as alças de sua mochila, não mais contente do que eu.
Assim que ela deu as costas e fui atrás, possesso.
Naquele momento, não me importava com quem podia nos ver no meio do corredor:
— Você fez o trabalho sozinha — acusei.
Ela não se virou.
Apenas sorriu de canto, sem me encarar. Era um sorriso sacana, despretensioso. Apertou o passo e seus cabelos castanhos se agitaram, cheios de movimento sobre seus ombros.
Uma beleza enfurecedora.
— De nada.
— Não vou te agradecer — censurei — Nós tínhamos que ter feito isso juntos, April.
— Não foi nenhum sacrifício — deu de ombros — Você estava ocupado.
Eu queria que discutíssemos como pessoas civilizadas, mas era impossível fazer isso enquanto cruzávamos um corredor cheio de gente. A pressa era tanta que cheguei a esbarrar em quatro pessoas pelo caminho e sequer tive tempo de olhar por cima do ombro para conferir a bagunça que deixei para trás — tinha a impressão de que, se não ficasse esperto, April seria capaz de me despistar na multidão.
— Caralho — ralhei — Pelo menos olhe para mim.
April finalmente diminuiu o ritmo.
Ela me guiou até uma janela ampla com vista para o anfiteatro, longe da confusão e do barulho dos alunos. Cruzou os braços sobre os seios e abaixou os olhos castanhos para o piso xadrez.
Inacreditável.
— Você tem vergonha de ser vista comigo? — minha voz estava tensa, assim como o resto do meu corpo. A pergunta não passava de uma acusação feroz mal disfarçada.
Uma risada curta escapou por seus lábios.
— As pessoas vão achar que nós estamos brigando — ela murmurou, virando o rosto para o outro lado.
Eu estava pouco me lixando com os outros. Eles poderiam nos observar como animais em um zoológico e jogar amendoins à distância que eu sequer repararia. Tudo que importava naquele momento eram os olhos de April, que fugiam dos meus.
— E daí? — teimei — Nós estamos sempre brigando.
April meneou a cabeça em frustração:
— Campbell, você tem a banda para se ocupar — insistiu — Eu tinha tempo de sobra e fiz a coisa certa. Não daria certo se tentássemos estudar juntos. Toda vez que ficamos sozinhos... — de olhos fechados, um pequeno vinco surgiu em sua testa: — Você me distrai, Hunter.
Minha garganta estava seca, áspera. Engoli saliva.
Por mais que suas palavras fossem verdadeiras, algo nelas me incomodou.
April sempre falava de nós como se fôssemos um erro. Ela fazia questão de usar todas as oportunidades possíveis para me lembrar de que não éramos certos um para o outro. Deixara claro em mais de uma ocasião que, se tivesse escolha, não se envolveria comigo — não era charme: aquela garota sequer queria ser vista ao meu lado no corredor do colégio.
Eu era um filho da puta doente por insistir tanto em April.
Meu peito subia e descia rápido enquanto minha mente sucumbia a uma espiral de confusão. Meu dia estava uma merda antes de me encontrar com April, mas naquele instante eu havia atingido o limite. Meus pensamentos disparavam entre seus olhos castanhos, sua pele macia e, sobretudo, na maneira como eu dependia dela. Não queria mais sentir aquilo por April. Era enlouquecedor. Me sufocava. Precisava acabar com aquele sentimento, se não seria consumido por ele.
— Você quer terminar? — disparei.
No mesmo segundo, os ombros de April enrijeceram e seus olhos se arregalaram:
— O quê? — balbuciou — Eu não.
Uma risada reverberou pelo meu peito.
Puta merda. April queria mais. A garota dava todos os sinais de que me desprezava, mas nunca dava um fim ao que existia entre nós.
Sério. Quanto mais eu pensava, mais exasperado ficava.
Por que ela havia ficado tão surpresa com a minha pergunta? Por acaso April esperava que eu corresse atrás dela incansavelmente como um cachorro obediente?
Tudo bem.
Não era uma possibilidade tão absurda. Não podia culpá-la por pensar daquela forma já que, até algumas horas atrás, eu teria cumprido o papel de cachorrinho sem reclamar.
— Você quer terminar? — April devolveu em voz baixa e suas íris castanhas esquadrinharam meu rosto.
Inspirei fundo.
Inferno.
A luz que atravessava a janela era acinzentada, assim como o céu lá fora. April estava pálida e suas pupilas negras se destacavam sobre sua pele, transbordando traição.
— Eu não sei — admiti.
Não consegui dizer as palavras. Era definitivo demais. Parte de mim ainda estava dolorosamente ligada a April. Vê-la de perto, tão perfeita diante dos meus olhos, só tornava aquilo pior. Sequer conseguia encará-la sem sentir meu peito apertar. Apesar da raiva, não estava pronto para deixá-la.
Desistir de April parecia tão doloroso quanto insistir em conquistá-la.
Ah, caralho.
Eu estava muito fodido.
Se ela tivesse me dispensado, teria me feito um grande favor.
Nós continuamos próximos a janela, presos em um silêncio dolorido enquanto o burburinho do corredor se tornava cada vez mais alto. Eu já havia tentado de tudo para consertar as coisas, não tinha mais nada a dizer, mas não conseguia me afastar de April. Ela encarava o nada com uma expressão frágil, perdida em pensamentos.
Trocamos um olhar e, pela primeira vez, a garota parecia nervosa. Seus olhos pareciam procurar algum assunto perdido no ar. Ela trocou o peso dos pés e suas mãos se entrelaçaram às alças da sua mochila:
— Eu vi o Ozzy hoje mais cedo — quebrou o silêncio, cheia de hesitação — Você lembra do Ozzy?
Franzi o cenho.
O único Ozzy que eu já ouvi falar era o Ozzy Osbourne.
— Que porra de Ozzy, April?
Tudo bem.
Eu estava um pouco sem paciência, mas que porra isso tinha a ver com o assunto?
Não dava para acreditar que ela simplesmente se esquivaria dessa maneira.
Por segundos, April pareceu magoada com minha postura. Ela bateu seus cílios longos para mim, afastando a emoção, e ergueu uma de suas sobrancelhas.
— Não se lembra dele?
— Não — retruquei no mesmo tom seco de antes, interrompendo sua brincadeira.
A menina meneou a cabeça e pensei ter visto seu sorriso vacilar.
— Francamente, Campbell — suas bochechas se tingiram de vermelho e ela desviou os olhos para longe, talvez os únicos sinais de constrangimento que April não conseguiu esconder — Sua memória já foi melhor.
Não tive tempo de respondê-la.
April deu as costas e partiu em direção às amigas. O topo de sua cabeça se misturou ao mar de alunos que inundava o corredor e eu quase a perdi de vista no caminho. Quando alcançou as meninas, elas a receberam com olhares preocupados e murmúrios alarmados.
Eu não fiquei para observá-las. Segui em direção à saída, procurando por meus amigos pelo caminho. Porra. Naquela altura, qualquer um que tivesse um cigarro para compartilhar seria útil para cumprir o papel.
A conversa com April serviu apenas para complicar as coisas entre nós. Teimosa do jeito que era, ela nunca cederia. Eu não daria para trás dessa vez, então só me restava esperar. Minha única certeza era que não podíamos continuar daquela forma.
A P R I L
Puta que pariu.
Por que eu não fiquei de boca fechada?
O cara tentou me dar um pé na bunda e eu comecei a tagarelar sobre um PUG! Eu devia ter perdido qualquer noção do ridículo. Hunter estava estressado comigo e com razão. Mudar de assunto não diminuiria a gravidade da conversa. Além disso, ele tinha uma vida e provavelmente não lembrava da noite em que invadimos o parque — quem dirá do cachorro de cara amassada que vimos no colo de um senhor.
Por algum motivo, me pareceu uma boa ideia introduzir Ozzy. Eu queria que Hunter ficasse menos bravo comigo e a lembrança de correr descalça no gramado era hilária. Para o meu azar, minha tentativa de melhorar as coisas explodiu na minha cara.
Meu rosto estava queimando de vergonha e eu só conseguia rir de mim mesma, uma risada baixa e raivosa. Juro que pelo menos três calouros se viraram na minha direção amedrontados, sem entender nada.
Pelo menos eu não estava chorando.
Isso, sim, seria humilhante.
Céus. Nós costumávamos brigar o tempo todo, mas não daquela maneira. Ele nunca fora tão frio comigo, tão sem paciência. Eu me sentia desprezível, ridícula, patética, tudo ao mesmo tempo. Se eu pensasse um pouco mais sobre o assunto, deixaria de rir e prestaria atenção no nó na minha garganta.
Por Deus. Hunter terminou comigo e nós nem estávamos namorando.
Ele pode não ter dito com todas as letras, mas eu vi a decisão em seu rosto. Aos poucos eu deixava de ser a garota que Hunter queria para me tornar um emaranhado humano de problemas mal resolvidos. Faltava pouco para que ele desistisse daquilo que existia entre nós. Não compensava. Eu sabia que não compensava.
Havia algo estranho crescendo dentro de mim, como um balão de gás expandindo. Tomava forma devagar. Subia minha garganta, esmagava meu peito e abafava meus ouvidos, como se alterasse a pressão atmosférica.
Inspirei fundo e liberei o fôlego lentamente.
É só uma sensação. Vai passar.
Minhas amigas não entenderam meu humor instável. Mal havia terminado de cruzar o corredor quando elas me puxaram para perto com expressões preocupadas:
— Está tudo bem? — Zoe tinha os olhos castanhos cravados em algo atrás de mim.
Sem dúvidas, elas viram minha discussão com Hunter.
— Claro — forcei um sorriso.
Eu precisava colocar uma tampa em cima dos meus sentimentos. Era patético me afundar em um poço de comiseração.
Zoe não pareceu convencida, mas não insistiu.
— Eric voltou a te procurar? — dessa vez, Jackie me examinava preocupada. Mesmo vestindo o uniforme sem graça de St. Clair, ela irradiava uma beleza exuberante. Tinha seus cabelos cacheados presos em um coque e o rosto limpo, sem maquiagem.
— Não, está tudo bem.
Depois do episódio do copo de terra, aquele grupo não voltou a me perturbar.
Foi fácil esquecê-los quando vi Hunter.
Enquanto Indy e Zoe permaneciam tensas em silêncio, Jackie estava elétrica. Ao contrário do que eu imaginava, ela não riu quando contei sobre o que acontecera mais cedo com Eric. Ficou furiosa, ainda mais convencida de que precisávamos fazer algo a respeito.
— Nós deveríamos falar com seu irmão, April.
Pelo que fiquei sabendo, Indy faltou todas as aulas que tinha com o ex-namorado. Nós só nos encontramos na hora do almoço e nosso assunto girou em torno do maldito copo de terra. Ela ficou em silêncio o tempo todo, quieta até demais.
— Não sei se é uma boa ideia — encolhi os ombros — Pode ser que só piore as coisas.
Jackie olhou para as meninas e riu exasperada quando percebeu que nenhuma de nós a apoiava.
— April, os meninos jogam nerds pela janela por diversão.
— Do térreo! — corrigi — Eles só fazem isso porque sabem que a janela está na altura do térreo.
Eu queria concordar com Jackie, mas estava com medo. Do jeito que os meninos eram completamente malucos, aquilo não tinha como terminar bem. Falar com Cole, com qualquer um deles, seria pedir por violência e sabe-se lá onde aquilo poderia terminar.
Precisava existir outra maneira de lidar com aquilo.
— Que seja — insistiu — Ajudar uma amiga não pode ser um grande sacrifício para eles.
— Para com isso — a voz de Indy irrompeu como um rugido — Vocês não sabem o que estão dizendo.
Zoe se preparou para intermediar, dando um passo à frente:
— Indy, está tudo bem. Você deveria...
— Não — disse, furiosa — Eu não "deveria" fazer nada. Essa é minha vida, eu decido o que acontece. Vocês passaram a manhã inteira conversando como se eu não estivesse aqui e eu estou cansada disso.
Ela nos encarou, olhos azuis ferozes e maçãs do rosto coradas. Parecia a ponto de explodir. Não mais quis ouvir o que tínhamos a dizer. Foi embora enraivecida, pisando forte.
— Ela pirou — Jackie tinha as sobrancelhas arqueadas, observando nossa amiga sumir à distância, seus cabelos loiros tremulando sobre seus ombros.
Zoe parecia decepcionada. Ela massageou as próprias têmporas e suspirou:
— Não. Isso acontece. Indy só está com medo.
As últimas vinte e quatro horas deviam ter sido estressantes para a Indy. Nós precisávamos que dar tempo à ela, se não seríamos apenas mais uma dor de cabeça.
— Temos falar com ela. O que vocês acham de depois do treino?
— Não, April — Jackie meneou a cabeça — Chega de conversa. Você não viu como esse cara tratou a Indy? Ele é perigoso. Agora é hora de procurar ajuda. Dos meninos, da escola, dos pais dela... Qualquer coisa serve.
— Jackie, você ouviu o que ela disse — Zoe se encolheu — Eu concordo que ele é perigoso, mas não podemos agir pelas costas da Indy. Por que a gente não...
— Inacreditável — Jackie riu cheia de revolta — Eu sou a única que está levando isso a sério.
Naquele instante, a sirene de prisão que anunciava o fim do intervalo entre aulas e quase rompeu nossos tímpanos. Nós estávamos paradas logo abaixo de um dos inúmeros alto falantes espalhados pelos corredores de St. Clair. Tive que cobrir os ouvidos para abafar o barulho estridente.
Jackie não se assustou como nós. Ela nos lançou um último olhar inconformado e antes de murmurar um adeus e sumiu no corredor, misturando-se ao resto dos alunos.
— Ela não está totalmente errada — murmurei.
— Eu sei — Zoe arfou em frustração. Após o que pareceram segundos, voltou-se para mim com uma expressão cansada: — Vamos tentar falar sobre isso depois da aula. Nós quatro podíamos ir naquela lanchonete da banana split. É calmo por lá.
Empurrei meu ombro contra o dela de brincadeira e me dirigi ao meu armário:
— Gosto desse plano.
Nós trocamos um sorriso desanimado e nos despedimos. Infelizmente, aquele dia de merda não havia acabado — tínhamos mais uma aula e, depois disso, cada uma partiria para seu respectivo treino. Havia apanhado tanto o dia inteiro que, pela primeira vez, não odiei a perspectiva de afundar na lama. Seria bom descontar um pouco de agressividade em um jogo de futebol, defendendo um gol ou em seja lá qual atividade me aguardava.
Quando entrei na sala do último período, Hunter sequer olhou na minha direção. Eu me esforcei ao máximo para prestar atenção na aula e anotar algo no caderno, mas parecia impossível não encará-lo. De verdade, meu cérebro havia entrado em curto: eu estava hipnotizada pelo seu rosto, o cabelo curto de sua nuca e o contorno de seus ombros debaixo da camisa. Ele se empenhava tanto em me ignorar que senti algo teimoso dentro do meu peito se encolher.
Era como se eu não existisse.
Perto do fim da aula, a turma foi separada em duplas. Hunter se sentou ao lado uma garota que sorria como se tivesse ganhado na loteria. Eles estavam de costas para mim, não conseguia ouvir o que diziam, mas não foi difícil adivinhar o rumo que aquela conversa tomava — ela subia as unhas pelo braço dele e ria em tom de flerte, jogando seus longos cabelos loiros sobre o ombro.
Meu caderno permanecia em branco. Eu sequer conseguia encontrar sentido no emaranhado de letras escrito no quadro. Minha mente estava em outro lugar, naquela mesma sala, a poucos metros de distância. Hunter estava cansado de mim. Ele queria desistir de nós. Ouvir aquelas palavras não deveria me machucar tanto — não quando eu mesma já havia cogitado terminar várias vezes —, mas a pontada que atravessava meu peito era real.
Céus. Quem eu estava tentando enganar?
Eu jamais conseguiria dar as costas para Hunter. Ele me fazia feliz. Eu me perdia em seus braços e me embriagava em seus beijos. Nunca havia sentido nada parecido. Era tolice minha tentar fugir: ele estava em todo lugar. Eu pensava nele o tempo todo. Admitir aquilo me assustava, mas não mais do que a ideia de perdê-lo.
Enquanto todos se distraíam com papéis e calculadoras, eles conversavam. A garota aproveitou o momento para aproximar os lábios do pescoço de Hunter e sussurrar em seu ouvido. Mesmo de longe, vi as maçãs do rosto dele se ergueram em um sorriso esperto. Um sorriso que deveria ser meu. Então, ela se inclinou para frente e algo no meu peito se apertou.
Não.
Eu não conseguia mais controlar minha respiração. Meu coração batia na garganta.
Não toque nele.
A garota contornou a orelha dele com a ponta da língua, devagar. Meu estômago se revirou. Não consegui encarar o resto da cena. Não queria assistir Hunter flertar com outra. Forcei meu rosto para baixo, para meu caderno, para qualquer lugar que não fosse a frente da sala.
Meu Deus.
Se Hunter quisesse quebrar meu coração, ele conseguiria.
N/A (16/12/2020): Olá, corujinhas da madrugada! Espero que tenham gostado do capítulo!!!!!!
Pimeiro, quero agradecer ao pessoal do instagram, que me ajudou a escolher o nome do Ozzy (sim! eu deixei o povo decidir o nome do pug! abri a caixa de perguntas e recebi umas sugestões muito boas). <3
Menções honrosas a outros nomes digníssimos: Hunter Campbell, Gunther, Five, Panqueca, Fred, Juju (pronuncia-se zuzu, muito chique), Maurice (ficou entre os finalistas!!), Dollynho, Pulguinha (ah, pronto, vou ter que adotar um dog para chamá-lo assim!).
Agora, sobre o capítulo, aconteceram tantas coisas que nem sei o que comentar primeiro: Tô com pena do Cole pq ele tá muito ferrado, risos.
Perguntinha: vocês que queriam o Hunter revoltado com a April estão satisfeitos agora?
Podem falar tudo pra mim!!! Se deixei algum erro no texto, só chamar. Críticas construtivas tbm estamos aqui para ouvir.
Sei que vocês não aguentam mais ler isso, mas eu sou toda b0iolinha por vocês: obrigada pela paciência e pelo carinho. Não tenho como agradecer o suficiente pelas mensagens lindinhas que recebo. Vocês derretem meu coração (que já é de manteiga).
Beijos,
Babi
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