Capítulo XXII [PARTE UM]
A P R I L
O DIA SEGUINTE NÃO COMEÇOU da maneira que eu havia planejado. Mal lembrava de como havia começado, para falar a verdade. Minha mente amanhecera enevoada, envolvida pela mesma letargia febril que acometera meus sentidos. O gosto em minha boca era especialmente ruim, um suor viscoso cobria minha pele e calafrios atravessavam meu corpo de tempos em tempos.
Não era tão grave quanto eu fazia parecer, mas, sim, eu estava doente.
Mamãe disse que ontem a noite, quando não desci para o jantar, ela assumiu que eu precisava de um tempo sozinha. Horas depois, ao bater na minha porta para desejar boa noite, ela me encontrou deitada sobre lençóis amassados, rodeada de livros, marca textos coloridos e folhas de resumo — devia ter caído no sono enquanto estudava química. Segundo Paige, minhas bochechas estavam rosadas como as de um bebê e, debaixo de sua palma, minha pele ardia quente — sinais claros de que meu corpo lutava contra uma doença. Dito e feito: na hora do café, minha febre estava alta demais para ir à escola.
O remédio poderia estar fazendo efeito aos poucos, mas até olhar para a tela do celular mexia com minha dor de cabeça. Estudar, então, estava fora de cogitação. Havia me tornado uma moribunda: não conseguia fazer nada além de fechar os olhos e enviar ordens para meus glóbulos brancos trabalharem mais rápido.
O relógio marcava apenas dez da manhã quando Greta entrou pela porta segurando vários cabides em uma mão só. Ela se movia com tanta graciosidade que poderia muito bem estar segurando uma bandeja de porcelanas.
— Bom dia, Greta — minha voz sonolenta arranhou minha garganta.
— Bom dia, senhorita April — a senhora de cabelos brancos sorriu amável ao perceber que tinha companhia. Ela se aproximou das janelas e afastou as cortinas pesadas, permitindo que a luz tímida do dia nublado vazasse para dentro do quarto. Pequenas partículas de poeira se agitaram no ar em um turbilhão de movimento, pairando sobre minha cabeça. Eu costumava adorar isso quando criança.
— Greta — adverti, mesmo deitada — Onde está a Emma?
Greta trabalhava como governanta naquela residência antes mesmo de nos mudarmos. Ela e o mordomo, Caulder, nunca saíram — nem mesmo depois da morte dos antigos patrões e da venda da propriedade. Quando comprou o imóvel, papai não gostou da ideia de ter empregados vivendo conosco, ele odiava ter sua privacidade violada, mas no fim se conformou a pedido da minha mãe. Greta, como eles descobriram, não tinha para onde ir e não tinha planos de se aposentar — por isso, a única saída foi contratar Emma para ajudá-la.
— Trabalhando, assim como eu — ela me lançou um olhar severo — São cabides. A inválida aqui é você.
Fiz menção de levantar da cama para ajudá-la, mas Greta se virou para mim bem a tempo de me impedir.
— Nem pense nisso! — ela se apressou a vir em minha direção, depositando as roupas passadas sobre uma cadeira — Está doente. Deve repousar.
Suas mãos delicadas empurraram meus ombros de volta para o travesseiro e eu me surpreendi com a firmeza em seu toque. Ela era mais forte do que aparentava ser. Greta rearranjou os travesseiros atrás de mim e, conformada, eu recostei sobre a superfície fofa. O simples movimento fez uma pontada de dor atravessar meu crânio.
— É só uma febre — rebati. — Já tomei remédio.
— Então, descanse! — a mais velha me deu as costas, recolhendo os cabides — Isso é para a senhorita aprender a não sair do banho quente sem se agasalhar. E nada mais de sair de casa no meio de um temporal sem guarda chuva! Onde já se viu?
Abri um pequeno sorriso para sua preocupação, ainda que me sentisse péssima.
— Não andareis sem guarda-chuvas — entoei como um mandamento bíblico — É uma pena terem deixado essa de fora.
Greta arfou indignada com minha tentativa de piada e deu início a mais um de seus sermões. Enquanto falava, enganchava os cabides no armário, um de cada vez: um vestido longo, camisas de botão limpas e um par de calças jeans — todas combinações familiares aos meus olhos. Uma peça se sobressaiu entre as outras, muito maior e mais grosseira comparada ao resto do meu guarda roupa.
Eu gelei.
— O que é isso, Greta?
— A senhorita deixou em cima da poltrona — ela exibiu a jaqueta de couro em uma das mãos, virando-a de frente e as costas — Estava fedendo a cigarro. Seu pai odeia o cheiro.
Eu mal respirava. Era a jaqueta do Campbell. Com tudo que acontecera, eu havia me esquecido de devolvê-la.
— Agora ao menos parece limpa — completou com uma passada de olhos pouco impressionado pelo couro. Era um material pesado, bem conservado apesar de décadas de uso. Sem dúvidas, era a jaqueta que me protegera da grama naquela noite no parque.
Meu sangue corria disparado por minhas veias, do meu coração vacilante diretamente para minhas faces coradas.
— Obrigada, Greta — murmurei constrangida — Você fez um bom trabalho. Sabe se minha mãe está em casa?
A governanta não estranhou a drástica mudança de assunto.
— Ela já saiu, querida — riu admirada, provavelmente acostumada com o comportamento agitado de Paige — Foi encontrar com uma cliente da loja.
Eu assenti, ainda com os olhos presos à jaqueta.
Greta saiu pouco depois, prometendo um caldo de galinha milagroso para o almoço. Tentei me mexer o mínimo possível, ciente de que não conseguiria me levantar nem mesmo se tentasse. Cobertas grossas me seguravam na cama e me mantinham quentinha enquanto meu corpo pesado se acomodava aos lençóis.
Às quatro da tarde, eu estava tão bem que me senti culpada por faltar aula. Os créditos finais de mais um episódio de Suits subiam na tela do notebook quando escutei um barulho ecoar pela casa. Fora um som abafado, muito parecido com o de um saco de batatas caindo sobre um tapete eduardiano. Logo em seguida, mais um baque surdo atravessou o corredor e eu imaginei que esse saco de batatas estivesse com dificuldades de se manter em pé.
— Silêncio! — alguém sibilou do outro lado da porta, talvez ainda na altura das escadas.
— Bati minha canela — uma segunda voz, feminina e exasperada, respondeu. — Como você espera que eu faça silêncio?
— Por que está tão escuro?
A conversa foi ficando mais alta à medida que se aproximavam do meu quarto.
Eram duas pessoas, talvez três.
— Não entra aí — voltou a cochichar. — Esse é o quarto do Cole.
— Como você sabe que esse é o quarto do Cole? — foi um sussurro alto, quase gritado. Em seguida, mais um tropeçar cego — Ai. Sua demônia.
Eu sorri comigo mesma.
Não me surpreendi quando a maçaneta da porta girou, revelando um sorriso conhecido.
— Que bom! — Jackie se colocou para dentro — Já está acordada.
Debaixo de duas camadas de casacos, minha amiga usava um vestido justo da mesma cor de seus coturnos detonados. Ela jogou sua jaqueta jeans sobre a poltrona da janela sem cerimônias, revelando uma camisa amarela de lenhador que batia na altura de sua coxa, vários números maior que seu manequim. Era uma camisa masculina familiar — a cara do Finch —, mas decidi não comentar.
Indy vinha logo atrás, com Zoe ao seu encalço. A primeira tinha seus cabelos dourados soltos sobre uma blusa creme de gola alta e parecia divina com sua saia xadrez, também em tons claros. Por fim, Zoe vestia uma calça jeans que agarrava sua silhueta sinuosa e uma cropped de lavagem escura, estampada com o símbolo de alguma banda rock. Havia também uma camisa de flanela vermelha amarrada a sua cintura, como um agasalho para mais tarde.
Enquanto as meninas estavam vestidas para matar, eu estava apenas morta. Se elas repararam no meu pijama detonado, não comentaram. Agradeci mentalmente a cada uma por isso.
Eu me endireitei sobre a cama e minhas amigas se acomodaram ao meu redor, preenchendo o quarto com o som de risadas e vozes alteradas. Caramba. Às vezes eu me esquecia como aquela casa poderia ser silenciosa.
— April, por que sua casa é tão escura? — Indy subiu na beirada do colchão com as sobrancelhas loiras franzidas em frustração — Isso aqui não é um castelo na Transilvânia.
— Já experimentou ligar as luzes? — recebi seu abraço com um sorriso.
Zoe riu alto sentada ao meu lado, de costas para a cabeceira. Era um som frouxo, quase bêbado. Lancei um olhar para Jackie, que deu de ombros.
— April já está boa o suficiente para usar sarcasmo — Indy se afastou de mim com uma careta divertida — Não pode ser grave.
— Duas doses de comprimidos antigripais combinadas com a sopa milagrosa de Greta — dei de ombros — Estou praticamente curada. O que vocês estão fazendo aqui?
Examinei seus rostos um a um. Aquela visita era como um sopro de ar fresco depois de semanas de confinamento. Não podia acreditar que havia perdido um dia inteiro disso.
— Bom, nós não podíamos deixar você aqui, deitada em uma cama, se lamentando o dia inteiro porque arrebentaram sua bunda no campo ontem — ao perceber meu olhar, minha amiga completou: — Sem ofensas.
— Jackie — Indy a repreendeu baixinho. Uma discussão silenciosa teve início entre as duas e eu não quis me intrometer. Apenas dei de ombros, conformada com a derrota.
Ninguém precisava me proteger da verdade. Fiz um papel ridículo ontem, mas aquilo não significava que as coisas ficariam daquela maneira.
Eu não era de desistir fácil.
— Até sua mãe achou que seria uma boa ideia — Jackie arqueou as sobrancelhas, como se isso a espantasse — Ah, também tem a parte chata.
Indy revirou os olhos em reprovação, alisando a saia sobre seus joelhos:
— Nós também ouvimos falar que você tem um teste semana que vem — a loira apontou para Zoe, que trazia consigo uma mochila — Agradeça a esse craniozinho por não deixar passar nada.
Sem nos dar atenção, Zoe derramou todo o conteúdo da bolsa sobre a colcha da cama. Puxou um fichário de capa lisa para o colo e começou a folhear entre os assuntos com pressa.
— Aproveitei meu tempo vago para assistir sua aula de química, a professora nem percebeu que eu era da outra sala. — Ela riu baixo e seus cabelos escuros deslizaram por seus ombros e caíram sobre seu rosto, formando uma cortina entre nós. — Se o caderno estiver incompleto é culpa do Zack.
— Você usou seu tempo vago para assistir a mais aulas? — Jackie torceu o nariz. — Isso é amor. Só pode ser amor.
— Eu adiantei a minha aula, tá legal? Em vez de assisti-la sozinha, eu fiz companhia ao Zack.
— É um grude! — a menina ignorou a interrupção, teatralmente segurando um travesseiro contra o rosto. — Quer saber? Eu acho que vou vomitar.
Eu e Indy sorrimos uma para a outra, ouvindo a discussão. Zoe voltou algumas páginas como se procurasse por algo e observei as folhas preenchidas de anotações, aliviada por não precisar cobrar a matéria por mensagens. Aquele caderno provavelmente tinha mais detalhamento do que algumas aulas.
— Obrigada, Zo — interrompi as duas.
— Nada — a garota sorriu para mim. Pela primeira vez, reparei em seus olhos vermelhos e pesados.
Eu não consegui segurar a risada. Minha amiga se juntou a mim logo em seguida.
— Pode ser que ela esteja um pouco chapada — Jackie comentou.
Zoe jogou seu queixo para trás em uma gargalhada e seus cabelos castanhos se espalharam por suas costas como cascatas. Poderia muito bem estar em um comercial de shampoo se não estivesse tão alterada.
Indy se aproximou de nós, segurando o rosto da minha amiga entre as mãos:
— Tadinha.
— Não acredito — afundei em meu travesseiro — Vocês usaram drogas sem mim?
Já mencionei o quanto odeio ficar doente?
Jackie não me respondeu. Apenas se livrou dos coturnos gastos com dois chutes e subiu na cama, engatinhando até nós:
— Eu disse que Zack é uma má influência na vida dela. — Piscou para mim. — O ensaio da banda é uma fachada para esconder as orgias e as drogas pesadas que estavam rolando no seu porão, April.
— Estão super vermelhos — Indy riu. Encarava de perto seus olhos castanhos emoldurados por cílios longos e cobertos de rímel de Zoe.
— Mesmo? — Zoe tinha as bochechas espremidas entre as mãos da outra como um peixinho. Ela quase caiu do colchão ao se afastar. Andou até o espelho de corpo próximo a janela e encarou seu reflexo: — Cacetada.
Nós a observamos levar as mãos até o rosto e em seguida deslizar seus dedos por todo comprimento de seu cabelo liso e escuro.
— Ajudem ela a tirar os sapatos — empurrei as cobertas para o lado e meus pés encontraram o chão — Eu vou tomar um banho. Preciso tirar esse suor de doente da minha pele.
Trocar de pijamas seria ótimo também. Sentir a água quente correndo pelo meu corpo e o cheiro do shampoo no meu cabelo poderia fazer maravilhas para minha autoestima. Talvez até aumentasse minha imunidade.
— Você vai tirar a melhor soneca da sua vida agora — Indy murmurou baixinho, puxando as botas dos pés da amiga sonolenta.
Não consegui fechar a porta do banheiro atrás de mim. Jackie me alcançou no último segundo, segurando-a antes que pudesse batê-la atrás de mim:
— April — disse — Não viemos aqui só para estudar.
Franzi o cenho, observando seu rosto pelo vão. A sombra rosa esfumada destacava suas íris castanhas e sua pele brilhava realçada por uma maquiagem suave. Ela parecia decidida, olhos determinados e tudo. Seus dedos estavam agarrados à maçaneta, quase brancos.
— Tudo bem — empurrei a porta para abri-la um pouco mais — Você precisa usar meu banheiro?
— Não, não é isso — minha amiga sacudiu a cabeça e seus cachos acompanharam o movimento — Nós vamos sair mais tarde e, como você já se recuperou, vai conosco.
Isso era um golpe baixo. Eu estava louca para sair, mas havia passado o dia inteiro em repouso. Seria hipocrisia da minha parte matar aula de manhã e ir a um bar à noite.
— Por favor — ela insistiu — Nós precisamos disso.
Havia algo mais em seu pedido que não consegui ler.
— Não vamos ficar na rua até tarde — Indy nos lembrou, sua voz alta a distância — Amanhã tem aula.
Um silêncio pendeu pelo quarto enquanto as meninas esperavam por uma resposta. Exceto por Zoe, que continuava estirada na cama, distraída mascando balas de gelatina.
— Vou ver como me sinto depois do banho — puxei a maçaneta, mas algo sólido me impediu de fechar a porta. Olhei para baixo e encontrei um coturno de cadarços frouxos — O que foi?
Minha amiga mordia o lábio inferior coberto de gloss, como se ponderasse no que estava prestes a dizer. No último momento, ela pareceu pensar melhor.
— Vai tomar banho, April — Jackie me empurrou para dentro do banheiro, querendo fechar a porta em mim — Você está precisando.
Tentei lutar de volta, mas foi em vão. Do lado de fora, o som de risadas tomou o quarto e um sorriso teimoso cresceu meus lábios. Talvez sair não fosse uma má ideia.
Depois de um banho demorado, vesti um pijama novo e comecei a revisar a matéria. Ter as meninas por perto pôs em teste minha habilidade de concentração. Zoe, como nós descobrimos, ficava tagarela quando chapada. Eu tinha um sorriso mole no rosto enquanto anotava o rascunho de algumas respostas para o dever de casa no rodapé do livro. Jackie ainda ressonava baixinho, embalada em uma soneca, no momento em que seu celular vibrou sobre sua barriga:
— Os meninos já chegaram lá — minha amiga murmurou meio grogue, encarando a tela de olhos apertados. — Nós deveríamos ir também ou vamos perder a noite.
Os meninos. Enrijeci sobre a cama, sem esconder minha surpresa. Será que isso incluía Hunter?
Todos os olhos do cômodo estavam sobre mim. Elas queriam saber se eu cumpriria minha palavra e sairia de casa ou se continuaria a fazer corpo mole.
— Vocês podem ir na frente — encaixei a tampa em um marca texto. — Nós nos encontramos lá.
Seria bom as meninas descerem as escadas primeiro. Isso chamaria a atenção dos meus pais. Eles assumiriam que eu continuaria no quarto para o resto da noite e eu poderia sair de fininho depois.
— Promessa é dívida, April — Indy alertou, calçando seus sapatos.
Jackie abriu um sorriso de canto, caçoando:
— Acho que essa April ficará devendo.
— Me dê meia hora que eu estarei lá — garanti, mesmo que não tivesse certeza de que conseguiria me arrumar tão rápido.
As meninas trocaram um olhar, certas de que tentava enganá-las. Indy se levantou da cama e fez o caminho até a saída, arrastando Zoe consigo. Ela recolheu um pacote de doce esquecido sobre a colcha e colocou uma minhoca de gelatina entre os dentes:
— Até amanhã, April.
Arremessei um travesseiro de penas de ganso em sua direção. Era pesado e grande o suficiente para derrubar uma pessoa.
Ela fugiu, cambaleando para longe.
Eu sorri ao fazer a correção:
— Nada de até amanhã! É até mais tarde!
...
Naquela noite, havia optado por uma saia preta de cintura alta sobre uma blusa de mangas compridas vinho, um tecido grosso e macio, que marcava minhas curvas. Nos meus pés, botas de cano médio me davam mais alguns centímetros de altura. Aqueles saltos poderiam muito bem me render bolhas amanhã e ainda assim continuariam a valer a pena: o espelho de corpo inteiro mostrava uma garota com uma silhueta de tirar o fôlego.
Desci as escadas degrau por degrau em silêncio, distribuindo meu peso pelos calcanhares.
Se quisesse me safar, teria que fazer o mínimo de barulho possível ao sair de casa.
No fim, minha precaução de nada adiantou. Encontrei minha mãe atendendo uma ligação no hall de entrada, provavelmente havia saído no meio do jantar apenas para recebê-la — usava seu vestido longo e discreto, azul petróleo, o escolhido para a ocasião. Ela se despediu da pessoa do outro lado da linha e encaixou o telefone no gancho, ainda de costas para mim:
— Sua tia perguntou se estava tudo bem aqui em casa — riu curto — Óbvio que está. Quando que eu vou dizer que não está? É cada uma.
Eu sorri em silêncio.
Paige Wright era uma mulher orgulhosa. Jamais seria pega admitindo em voz alta que estava passando por qualquer dificuldade. A mulher simplesmente não baixava a guarda, nem mesmo para mim, sua filha. Sabendo disso, eu já não perguntava mais sobre seus afazeres ou os de papai. Ela não me contaria a verdade de qualquer maneira.
Seus olhos finalmente pousaram em mim e o leve franzir em sua testa se suavizou:
— Vai sair?
— Sim — abaixei os ombros, esperando uma negativa da parte dela — Eu já estou melhor, mãe. Estudei durante a tarde com as meninas. Elas estarão lá.
Quanto menos meus pais soubessem, melhor. Mamãe poderia ser bastante liberal às vezes, mas duvidava que ela gostaria de saber que eu estava prestes a me enfiar em um bar de motoqueiros do outro lado da cidade.
Para minha surpresa, Paige não deu sinais de ter ouvido uma palavra do que eu disse. Um sorriso suave, quase imperceptível se formou em seus lábios. As íris esverdeadas pairavam sobre minhas roupas e brilhavam em um divertimento sutil:
— Bonita jaqueta. Grande.
A jaqueta de Hunter envolvia meus ombros. Era o acabamento que faltava, perfeito para me aquecer e completar o visual despojado. Meu plano era devolvê-la no fim da noite, assim como ele havia feito com meu cordão.
Meu rosto esquentou e eu assenti, abaixando os olhos para o chão:
— É emprestada.
Agradeci aos céus pela sutileza de minha mãe. Ela me lançou um olhar significativo, como se pudesse ler em minha testa todas as palavras não ditas, e continuou sua inspeção minuciosa:
— Meia calça. Muito bom. Ninguém acima dos seis anos deveria andar por aí de joelhos ralados.
— Vou me lembrar disso — torci meu nariz em uma caretinha rebelde.
Paige recebeu meu comentário com um sorriso. Ajeitou a gola da jaqueta de couro com os olhos transbordando carinho e deixou um suspiro escapar.
— Se eu soubesse que você já estava melhor, eu teria posto mais um prato na mesa — lamentou — Seria bom ter ao menos um rosto jovem no meio daquela velharia. Ninguém aguenta mais o seu pai falando sobre trabalho.
— Será rápido — supliquei — Prometo que estarei em casa antes das onze.
A mulher na minha frente assentiu com uma expressão distante em seu rosto. Nunca lhe dei motivos para desconfiar de mim. Paige poderia não ser a imagem da autoridade paternal rígida, mas eu a respeitava.
O som de risadas atravessou o corredor e mamãe pareceu lembrar do jantar que acontecia a alguns cômodos dali. Seus convidados deveriam estar esperando por ela há algum tempo.
— Onze em ponto, mocinha — estreitou os olhos, ainda que escondesse um sorriso. Parecia se divertir ao interpretar o papel de mãe rígida — Já chamou um táxi?
De repente, lembrei por que estava com tanta pressa. Mesmo dentro de casa, eu podia ouvir o som de um motor na entrada de carros, onde o motorista me esperava.
— O táxi está lá fora.
— Você tem dinheiro? — quando não respondi, ela acrescentou: — Espere aqui.
Paige me deu as costas e caminhou até o fim do corredor, desaparecendo no interior do escritório de papai. Quando voltou, tinha uma carteira elegante nas mãos. Desabotoando o fecho, ela dedilhou entre as duas notas que restavam no compartimento das cédulas e seus dedos hesitaram sobre a de cinquenta.
Uma buzina de carro soou do lado de fora e quebrou o silêncio sepulcral que havia tomado conta do hall. O susto pareceu apressar sua decisão. Estendendo a mim uma nota de cem, mamãe abriu um sorriso e disse:
— Divirta-se, querida.
H U N T E R
Quando apareci em casa às seis da tarde com uniforme do colégio amassado e uma capa de contra baixo atravessada nas costas, minha avó sequer perdeu tempo me dando uma segunda olhada. Ela apenas meneou a cabeça em reprovação e deu as costas, continuando a fazer seu café.
— A aula foi até tarde hoje. — Menti na cara dura.
Não fazia diferença alguma falar a verdade ou não, tinha certeza absoluta de que Nana não me daria ouvidos. Ela me reservava o tratamento do silêncio desde segunda-feira, dia em que cheguei em casa com um olho roxo, fedendo a bebida e coberto de terra.
Fiquei parado na porta de entrada, de onde podia vê-la parada em frente ao fogão, esquentando a água em uma chaleira. Tinha medo de me aproximar da cozinha e dar a ela motivos reais para justificar sua raiva.
Nana não via com bons olhos os ensaios da banda. Ela sabia que baseados e latinhas de cerveja faziam parte do nosso processo criativo. Se eu chegasse um pouco mais perto, minha ela poderia sentir o cheiro impregnado em minhas roupas. Não havia muito a ser feito a não ser respeitar aquela distância por enquanto — a mulher era teimosa e eu não conseguiria amolecê-la tão cedo.
Conformado com a derrota, subi as escadas e tomei um banho rápido. Vesti uma blusa branca e os mesmos jeans pretos de sempre. Queria ficar apresentável para ver minha irmã antes de sair, precisava ter certeza de que ela não estava assistindo televisão demais e brincando de menos. Julie estava se tornando uma criança tão quieta que chegava a ser preocupante às vezes. Não sabia se meninas eram assim mesmo ou se eu e Seth que éramos encapetados desde pequenos.
Ainda de cabelos molhados, fui procurar Julie pela casa. Encontrei a pestinha na sala, assistindo algum desenho com cães falantes. Ela estava agachada no chão em seus pijamas, desenhando com giz de cera na mão, quando me viu no batente porta.
Depois de um segundo ou dois me observando, largou tudo e veio correndo:
— Hunter!
Jogou-se em meus braços com tudo e eu a trouxe para cima, segurando-a contra meu peito.
— Que arte você estava aprontando, diabinha?
Ela sorriu para mim e escondeu seu rosto em meu ombro.
Foi assim que eu soube que minha irmã estava realmente aprontando.
Caminhei até a mesinha de centro com Julie no colo. Folhas brancas preenchidas por desenhos estavam espalhadas sobre o pequeno tampo, dessa vez forrado com jornal. Todos temíamos que, caso algum giz de cera escorregasse para fora e encontrasse uma superfície que não fosse papel, Julie entraria em um frenesi e começaria a colorir a casa inteira — por incrível que pareça, isso aconteceu mais de uma vez sob a minha supervisão.
A garota tinha talento para pinturas rupestres.
— Dinossauros — murmurei. — Impressionante.
Julie riu como se eu fosse o cara mais engraçado do mundo e me explicou pacientemente que não eram dinossauros. Eu gostava de ouvi-la balbuciar palavras, usando suas mãozinhas para se expressar. Seus cabelos, escuros como os meus, estavam presos em um rabo de cavalo frouxo e alguns fios escapavam, emoldurando seu rosto rechonchudo.
— Aquele é você — ela apontou um rabisco azul escuro sobre riscos verdes, provavelmente grama. Havia também um rabisco amarelo, que deveria ser o sol. Eu estava prestes a elogiá-la, quando Julie me interrompeu, risonha: — O que tem orelhas de burro.
— Orelhas de burro? — repeti, sem acreditar.
Julie bateu os cílios inocentemente para mim. Caramba. A pestinha era adorável além da conta. Eu ergui minha mão livre para fazer cócegas e a menina desatou a rir sozinha. Definitivamente, cairia no sono daqui a pouco.
— O demônio ruivo está aqui. — Minha avó apareceu na porta da sala carregando uma caneca fumegante em suas mãos. Me surpreendi ao ouvir o som de sua voz, áspera e desgostosa. Nana foi embora tão de repente quanto apareceu, sumindo no corredor em direção a cozinha.
Assim que vi o sorriso idiota no rosto de Seth, minha surpresa foi substituída pela irritação. Ele estava bem pior do que eu e nem se dava ao trabalho de esconder.
— Pestinha! — o ruivo estendeu os braços, como se houvesse alguma chance de eu deixar ele se aproximar da minha irmã.
— Seth!
Julie começou a debater em meus braços, animada, e cerrei os dentes. Desci aquela pequena bagunceira do meu colo e a coloquei no chão com cuidado, mirando seus olhos:
— Vá brincar — carregava uma expressão severa em meu rosto, apenas para ter certeza que ela não me desobedeceria.
Minha irmã assentiu, encarando-me com seus olhos azuis enormes. Correu até a mesa de centro e se ajoelhou no tapete, em frente aos papéis coloridos e gizes de cera. Ela não começou a desenhar de imediato. Tinha um coelho de pelúcia escondido debaixo do braço e nos observava em expectativa, esperando para ver o que aconteceria em seguida.
Gesticulei para o corredor em um pedido silencioso para que Seth seguisse pelo mesmo caminho que havia feito para entrar. Ele foi na frente, parecendo bastante confortável ao andar pela minha casa. Assim que estávamos fora de vista da minha irmã, meu amigo se virou para mim com um sorriso no rosto:
— Ei, cara.
Ele ofereceu sua mão em um cumprimento e o encarei sua palma estendida.
Contrariando o que rumores diziam a meu respeito, eu não era um filho da puta insensível. Eu sabia bem o peso das minhas ações e assumia total responsabilidade pelos meus erros — que não foram poucos. Não sentia orgulho ao decepcionar meus amigos, nem ao tirar o sono da minha mãe. Minha vida pessoal poderia estar uma merda naquele momento, mas, pelo menos, estava me esforçando para melhorar. Não era como se eu agisse assim de propósito.
Já Seth, por outro lado, era um cara que tomava todas as escolhas erradas com gosto. Queria causar problema onde quer que fosse e não tinha senso algum de autopreservação. Nem eu conseguia acompanhá-lo.
Foi movido por esses pensamentos que fiz isto.
Minha casa não era grande. Um simples empurrão no peito de Seth e ele cambaleou para trás, alcançando a porta de entrada, bem na frente da cozinha.
— Que caralhos? — Seth rosnou o mais baixo possível, ciente de que poderíamos ter uma fofoqueira minúscula nos observando.
— Ficou maluco? — rebati.
Não precisei falar mais do que isso. O cara não era um tapado. Seth sabia que minha mãe estava apavorada, a um passo de me internar em alguma clínica de reabilitação para jovens infratores — se é que tal coisa existia —, e ainda fazia questão de aparecer na minha casa completamente embriagado. Por sorte, minha mãe estava sempre trabalhando nesse horário, então, seu caminho não cruzou com o dele.
— Sua avó me viu lá fora, te esperando, e me convidou para entrar.
Eu ri, exasperado.
— Da próxima vez, não entre.
Seth soltou o ar de seus pulmões em um longo suspiro. Nos encaramos por alguns segundos e ele afundou as mãos em seu couro cabeludo, puxando os fios acobreados para trás. Carregava olheiras profundas debaixo de seus olhos e suas raízes brilhavam com a oleosidade.
— Você parece péssimo — completei.
— Foi mal — o ruivo se aproximou, depositando um tapa no meu ombro — Você precisa relaxar, Campbell.
Nisso nós concordávamos.
Encarei seu rosto, dessa vez menos irritado.
Nós fomos vizinhos de porta a vida toda. Se eu havia conseguido tomar um bom banho naquele intervalo entre nossa última despedida e nosso reencontro, ele tivera tempo o suficiente para se lavar também. No entanto, a julgar por sua aparência, meu amigo tinha dispensado a água e o sabão. Se conhecia Seth, ele mal havia entrado em casa — parecia ter tirado o uniforme e enfiado no corpo a primeira muda de roupa que viu em seu armário.
— Seu pai estava em casa?
— A esposa — disse seco, como se aquela resposta dispensasse comentários.
Eu assenti.
A mulher era uma megera, palavras dele. Tinha uma aparência modesta e cabelos sem vida, pintados de loiro. Andava por aí com um crucifixo pendurada ao redor do pescoço, não sorria muito. Era completamente diferente da mãe de Seth, pelo pouco que conseguia me lembrar dela.
— Eu disse que dormiria aqui essa noite — continuou — Não queria ouvir seus sermões.
— E o que ela disse?
— Que oraria por você e sua família.
Tive que rir.
— E por você, imagino.
Seth negou com um movimento de cabeça e cruzou os braços, como se tivesse guardado o melhor para o fim:
— Claire disse que não havia oração que pudesse salvar minha alma.
Foi a vez dele de abrir um sorriso débil.
— Vou pegar meu casaco — anunciei, preparado para enfrentar uma longa noite.
O armário embaixo da escada transbordava agasalhos de frio e capas de chuva infantis. Puxei para fora uma jaqueta jeans com mangas de moletom, coberta de patches mal remendados, e a vesti com os olhos perdidos no chão.
O paradeiro da minha inseparável jaqueta de couro não era desconhecido. April ficara com ela depois de passar uma noite comigo. Pensei que me sentiria orgulhoso em saber que algo meu havia se infiltrado na vida dela, mas, como nosso último encontro acabara em uma discussão, imaginei que ela já deveria ter jogado meu casaco aos cachorros.
— Você vai beber de novo — Nana quase me matou do coração, aparecendo na porta da cozinha. Tinha os braços cruzados e uma expressão assustadora em seu rosto.
— Nana — me aproximei com uma voz macia — Eu tenho dezoito anos.
Sim, nós podíamos beber legalmente.
Chupa essa, Estados Unidos.
— E vive debaixo do meu teto. Minhas regras.
Até alguns meses atrás, minha avó não ligava muito para minhas aventuras noturnas. Se eu me comportava à mesa, fazia meus deveres e a tratava com respeito — sobretudo, não andava por aí como um maldito hippie —, ela não via razões para brigar comigo. Facilmente perdoaria uma noitada se, ao chegar em casa, trouxesse comigo pães fresquinhos pela manhã.
No entanto, seu entendimento sobre minhas liberdades mudou na noite em que teve que me buscar na delegacia. Algo além do susto a deixou cautelosa. Embora a minha avó apertasse um crucifixo entre os dedos e rezasse baixo, um brilho de superstição iluminava seus olhos durante a nossa volta para casa. A relação dela com religião não era algo simples de explicar — assim como a nossa vizinha de porta, a madrasta de Seth, Nana era uma mulher agarrada à fé. Ela jamais perdia uma missa e era uma figura conhecida na vida social da Igreja, sempre envolvida nas quermesses.
Mas Nana era uma católica exemplar e, como todo bom católico, ela tinha um ponto fraco: a velha não podia resistir à superstições. Chegou até a ganhar dinheiro com adivinhações antes de eu nascer — uma atriz aposentada que lia o futuro nas cartas de um baralho atraía a atenção de tudo que é tipo de gente. Entretanto, uma vez que passou a frequentar a Igreja local com meu avô, ela teve que parar com as consultas. Eu sabia, porém, que a velha não resistia à tentação de espiar nossas vidas — cheguei a suspeitar que ela esquecia o baralho aberto em cima da mesa de propósito para me assustar.
— Nana — suspirei, tomando coragem para ir direto ao assunto — Não vou ficar em casa porque a senhora teve um sonho.
Não sabia se era alguma tramóia para me fazer ficar em casa ou se, dessa vez, Nana realmente havia sonhado com algo ruim. Não queria descobrir. Eu merecia passar uma noite fora, ocupando minha cabeça com algo além de April.
Tudo com moderação, é claro.
Eu pretendia mostrar a todos que poderia me controlar. Doutora Graham teria muito o que anotar em nossa próxima consulta.
— Garoto arrogante — ela ralhou — Veja lá como fala comigo.
— Tenho que ir — ajeitei o capuz sobre as minhas costas — Estarei de volta antes da meia noite.
Depositei um beijo em sua bochecha e me afastei rápido, indo em direção a porta antes que ela pudesse me acertar com uma colher de madeira ou algo parecido.
— Hunter Campbell — sua voz me repreendia — Onze e cinquenta e nove você estará em casa, na cama, dormindo.
— Que precisão. — Seth tinha os braços cruzados e nos observava, apoiado na parede. Pareceu se arrepender da gracinha assim que as palavras escaparam de sua boca.
— E o mesmo vale para você. — Nana se aproximou, afundando um dedo em riste no peito dele. — Se vai dormir aqui hoje, é bom me obedecer. Se algo acontecer a você ou ao meu neto, a responsabilidade será minha.
Meu amigo concordou veemente, prometendo que estaríamos de volta em breve. Seth poderia ser louco, mas não a ponto de contrariá-la. Gritei uma despedida para Julie, que veio correndo na minha direção como um pequeno foguete. Disse a pestinha que ela estaria dormindo quando eu chegasse, mas que todos tomaríamos café-da-manhã juntos no dia seguinte.
Nós deixamos a casa às pressas, correndo porta afora antes que Nana pegasse uma vassoura para nos expulsar. Descemos a escada da rua tão rápido que os degraus poderiam muito bem estar pegando fogo. Falávamos mais alto do que o permitido no horário. Fincando seus tênis sujos na calçada de concreto, Seth liberou um de seus famosos uivos e os cães da vizinhança responderam com latidos ensandecidos por trás de grades de ferro e muros de tijolo. Alguém abriu a janela para liberar xingamentos e nós respondemos à altura.
Era bom estar em casa.
Eu pertencia àquele lugar. Suas ruas estreitas e tortuosas eram minhas, eu as conhecia como a palma de minha mão. Cresci vendo o sol se pôr atrás daqueles telhados, dia após dia, desaparecendo no horizonte. Nunca ficaria cansado daquilo.
Diminuí o passo e respirei fundo, permitindo que o ar noturno invadisse meus pulmões. Meu rosto estava dormente e a adrenalina de trocar insultos com desconhecidos me salvava de estremecer de frio debaixo de meu casaco. Se não fosse pela agitação que causamos, o quarteirão estaria em silêncio absoluto.
— Essa foi por pouco. — Meu fôlego deixou meus lábios como fumaça.
Não sei o que faria se Nana me proibisse de sair de verdade. Não queria chegar ao ponto de desobedecê-la. Tudo que eu desejava era que ela voltasse a confiar em mim e parasse de se esconder atrás de pesadelos ou visões.
— Mulher é foda — Seth concordou. — O que não descobre na conversa, é revelado em sonho.
— Isso sem mencionar as cartas.
O som da risada de Seth preencheu cada canto daquela rua deserta. Nós andávamos na calçada lado a lado, procurando o lugar em que minha mãe havia estacionado o carro mais cedo. As chaves ficaram em casa naquela manhã porque ela tinha arranjado uma carona para o trabalho.
— Maneiro — Seth murmurou, assim que paramos em frente ao veículo — Seria desmoralizante chegar lá na traseira da sua moto. As garotas sequer olhariam pra minha cara antes de me dispensarem.
Saquei a chave do meu bolso e comecei a trabalhar na fechadura. Minha mãe sempre disse que a porta daquele carro precisava de um pouco de "jeito" para ser aberta. O que ela chamava de "jeito", eu entendia como "força bruta". A lataria sacudiu mais uma vez debaixo da minha mão, finalmente cedendo e, juro por Deus, vi as cortinas de uma janela do outro lado da rua se mexerem. Se as velhas fofoqueiras do bairro chamassem a polícia por culpa daquela lata velha, eu não responderia por mim.
Tive que entrar no carro primeiro para destravar a outra maçaneta por dentro:
— Com "garotas" você quer dizer Jackie?
Através do vidro sujo, pude ver Seth sorrir de má vontade. Ele deslizou para dentro e se sentou no banco do passageiro, batendo a porta atrás de si. Tudo isso sem olhar para mim. Parecia achar graça da pergunta e ao mesmo tempo querer me socar.
— Eu não sou homem de uma mulher só.
Eu não desperdicei minha chance para rir da cara dele. Se Seth estava agindo assim, só poderia chegar a uma conclusão:
— Ela te deu um fora.
— Campbell. — Seth puxou a viseira do passageiro para baixo. Ele encarava os próprios olhos no espelho portátil quando disse: — Como aquela garota pode "me dar um fora"? Nós nunca tivemos nada.
Ele ajeitava a cabeleira ruiva, convicto de que suas palavras carregavam toda a lógica do mundo.
Havia um paralelo entre aquela frase e meu relacionamento com a April. Não existia relacionamento. No máximo, ela tinha tesão em mim. Qualquer coisa além disso podia muito bem ser fruto da minha imaginação. Eu aceitava migalhas na esperança de mudar o jogo, mas aquilo já estava ficando ridículo. Talvez devesse deixá-la em paz.
Desde a última vez que nos vimos, no Clube de Oração, April não me procurou. Naquela manhã, esperei por ela na entrada de St. Clair de olhos grudados ao portão, mas ela não apareceu — fiquei sabendo por Finch que a garota faltaria porque estava doente. Enquanto isso, meu celular ficou no meu bolso o dia inteiro e nenhuma mensagem de April chegou. Era um motivo estúpido para sentir ciúmes, mas senti.
Concentrei minhas energias em fazer o motor pegar.
Cada vez que o carro morria, eu me sentia um pouco mais impaciente. Depois do que pareceram horas insistindo, o ronco suave do motor respondeu às minhas preces desesperadas e arranquei com o veículo. As ruas pouco movimentadas se estenderam por uma esquina ou duas antes de se converterem em vias largas, iluminadas por luzes de trânsito e faróis de carro.
— Lexie vai estar lá — Seth disse em determinado momento. — Vê se não faz cena.
Mas é claro. A culpa era sempre minha.
Nós paramos em um sinal e um grupo de torcedores de futebol atravessou a faixa de pedestres na nossa frente. Eles tinham os rostos pintados, usavam camisas vermelhas e faziam coro de alguma canção bêbada. Um dos imbecis deu um soco no capô do carro e eu estava cogitando sair pela porta quando Seth sacudiu meu ombro, chamando minha atenção.
— É ela.
Encarei o parabrisas, sem conseguir distinguir um rosto do outro. A vida noturna lá fora era como um borrão agitado.
— A Lexie?
— Não — bufou. Ele tinha o celular nas mãos e parecia escrever mensagens na velocidade da luz — Jackie. Sabia que ela não resistiria a mais um pouco disso aqui.
Seth gesticulou para o próprio corpo e fez gestos que seriam impossíveis de traduzir em palavras.
— Ela pode estar indo pra ficar com outro. — Avancei assim que a horda de pedestres estava segura na calçada. — Você sabe disso, não é?
O interior do carro mergulhou em silêncio e eu tive que olhar para o lado para checar se meu amigo estava bem. Encontrei seu rosto vermelho, provavelmente pela força que fazia para segurar os xingamentos dentro da boca.
— Mas que porra de mentalidade fodida é essa, Hunter? — Seth era famoso por falar alto, nem me incomodei quando ele começou a gritar. — É por isso que você faz terapia.
Gargalhei como se não houvesse amanhã. Seth era tão fodido quanto eu, então não me importava que ele soubesse da minha vida — chegava a ser justo, considerando o tanta merda que sabia sobre ele.
— Você poderia aprender um pouco com a minha atitude positiva, tá me ouvindo?
Nós chegamos nas proximidades do pub em poucos minutos. Estacionei atrás de uma linha de carros, sabendo que percorreríamos o resto do caminho a pé. Seth me seguiu, se juntando aos ocasionais coros bêbados e gritando em plenos pulmões. Tínhamos as mãos escondidas nos bolsos das jaquetas e ríamos para afugentar o frio.
Uma noite que começava daquele jeito não poderia terminar mal.
Ou, pelo menos, foi isso o que pensei.
A P R I L
A viagem de carro até o pub foi curta e silenciosa. O motorista me deixou sozinha com meus pensamentos e eu passei o trajeto inteiro encarando a tela do meu celular, seja trocando mensagens ou conferindo as horas. As meninas queriam monitorar cada esquina em que o carro virava, só por segurança. Indy reclamava que eu deveria ter ido com elas quando tive a chance e me mandava carinhas enfezadas no grupo enquanto Jackie tirava fotos de si mesma sorrindo ao lado de copos de cerveja do tamanho de sua cabeça.
Quando terminei de respondê-las, o motorista me chamou:
— Esse é o endereço certo, menina? — me fitava por cima do ombro de olhos arregalados, como se esperasse que eu mudasse de ideia. Tinha bigodes tão grisalhos quanto seus cabelos ralos e parecia impressionado com o bairro que havia enfiado seu carro.
— Sim, obrigada — estendi uma nota de vinte, valor que se aproximava da quantia mostrada no taxímetro — Fique com o troco.
O motorista aceitou o dinheiro, olhando para o parabrisas o tempo todo. Era como se a qualquer momento alguém pudesse pular em cima dele e o tomar de suas mãos. Recolhi minha bolsa e desci do táxi, feliz por ter o casaco de Hunter sobre meus ombros. Era quente e masculino, grande o suficiente para me abrigar dos olhares.
Por mais que fosse difícil admitir, eu me sentia protegida vestindo aquela jaqueta. Seu cheiro estava comigo, me envolvendo e me aquecendo. Eu queria falar com ele. Ver seu rosto, beijá-lo. Meu coração acelerava no peito, na certeza de que encontraria Hunter naquele pub. Eu estava pronta para conversar, até mesmo agitar uma bandeira branca.
Foi por isso que me senti duas vezes mais estúpida ao me deparar com Hunter enfiado no meio das pernas de Lexie assim que entrei no pub.
N/A: Antes tarde do que nunca *emoji piscando*
Esse capítulo foi anormalmente grande E AINDA FALTOU COISA. Teremos uma parte dois e pqp MAIS INTRIGAS chegarão. Toda cena acrescentada é útil, eu juro. Na minha cabeça está tudo conectado, é aquela coisa de uma cena anteceder outra, etc. Uma bola de neve.
QUEM ACHA QUE HUNTER ESTÁ EM APUROS?? Levanta a maozinha ai só pra gente fazer uma apuração..
Bom, descobriremos no próximo capítulo o que a April quis dizer com "enfiado no meio das pernas".
Por fim, obrigada a todo mundo que comenta e me segue, vocês uns fofos. Aliás, com a quarentena e outros problemas, eu nem percebi que se passou UM MÊS desde a última atualização, me perdoem (em compensação, vcs acabaram de ler 20 paginas... nao era pra ter 2 partes, mas imagina vc ler algo com 20+ paginas aqui no wattpad??? n há olhinho que aguente)
Enfim, beijos. Vocês alegram meus dias.
Babi
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