Capítulo XVIII







SE A TARDE NO LAGO fora quente e ensolarada, o dia seguinte amanhecera seu completo oposto. Desde as primeiras horas da manhã uma chuva insistente castigava o asfalto. Havia um engarrafamento em cada esquina da cidade e na entrada de St Clair não poderia ser diferente. Dirigindo a vários números abaixo do limite de velocidade, April Wright seguia um Land Rover de perto. Assim como o motorista do carro à frente, ela procurava por uma vaga e aquilo certamente iria demorar — vinte minutos tinham se passado desde o início das aulas e o estacionamento estava lotado.

April suspirou alto, batucando os dedos no volante. Dirigia o carro de Cole. Não pensara duas vezes antes de pegá-lo emprestado, já que seu irmão saíra mais cedo com uma carona. Ele precisava entender, aquela era uma situação de emergência. Se April chegasse atrasada mais uma vez, outra advertência seria somada à sua ficha estudantil. Já perdera a conta de quantas haviam se acumulado desde o início das aulas e aquilo estava começando a ficar perigoso.

Com certeza não queria descobrir quantas observações negativas eram necessárias para reduzir sua nota em Comportamento à zero. April recebia cartõezinhos parabenizando-a por seu comportamento impecável desde que entrara no colégio e não seria no último ano que sua tradição seria quebrada — contrariando a crença popular, um estudante honorário não era sinônimo de estudante honesto: ela pretendia sair de St Clair formada na arte da cara de pau, sem se orgulhar nem um pouco desse fato.

Entre as inúmeras outras coisas que não a traziam orgulho, talvez a que mais a envergonhasse naquele instante fosse sua relação complicada com Hunter Campbell. Agarrar-se a fichas estudantis e atrasos parecia mais produtivo do que gastar outro segundo lembrando do nome dele. Hunter era um alcoólatra preso no corpo sarado de um garoto de dezoito anos e pensar nele só lhe traria problemas.

Virando em mais uma das intermináveis fileiras de carro, April estendeu a mão para retirar o café do porta copos. O aroma escapava do copo fumegante e perfumava o interior do carro, fazendo sua boca salivar. Estava tão quentinho e cheiroso ali dentro que a menina se encolhia só de pensar em enfrentar a chuva. Ao sair de casa naquela manhã, April conseguiu em uma tacada só encharcar os cabelos castanhos — agora quase pretos — e ensopar o sobretudo cinza. Sentia um frio de congelar os ossos, mas, com sorte, alguns goles da bebida quente bastariam para aquecê-la.

April retornou o copo ao compartimento e ergueu os olhos do painel para o pára-brisas.

Seguia em frente a uma velocidade constante há tanto tempo que percebeu quando o carro da frente parou. A traseira do Land Rover se aproximava em câmera lenta e seu corpo permanecia congelado, apenas esperando pelo momento da colisão.

O impacto da batida fez seu carro sacolejar.

Aquilo foi suficiente para acordá-la do torpor e manobrar para longe. Sem se importar com a chuva ou com o frio, April abriu a porta e desceu do automóvel. Seu coração acelerado doía só de imaginar o valor para consertar um amassado em uma maldita Land Rover. Era um dia triste para os amantes do automobilismo em St Clair, afinal.

Depois de muito analisar, April concluiu que seu carro havia dado apenas um beijinho na traseira do outro. As placas, porém, sofreram um dano irreversível: se amassaram completamente com o impacto.

— Tudo bem aí? — o outro motorista também desembarcou do próprio veículo, fechando a porta atrás de si.

Ele usava um jornal para proteger o rosto da chuva, enquanto April se deixava molhar livremente, ensopando seu uniforme. O temporal caía tão furioso e forte que ela mal conseguia enxergar o edifício da biblioteca a uns metros dali.

Assim que a silhueta masculina se aproximou, April o reconheceu imediatamente: Josh Halden. Cabelos claros devidamente arrumados e dentes brancos alinhados em um semi sorriso. E ele havia a reconhecido também.

— Não está tão mal — Josh completou depois de checar a traseira do carro — Você quer conversar lá dentro?

— Sim! — ela teve que falar alto para superar o barulho das gotas batendo contra as latarias.

Josh a presenteou com um último sorriso e correu até a porta do Land Rover para terminar de manobrá-lo. Ao ouvir a porta bater, April se deu conta de que deveria fazer o mesmo.

Não muitos metros dali a vaga perfeita a esperava — era tão irônico que poderia ter inspirado o refrão de uma música da Alanis Morisetti. Ela estacionou em frente a biblioteca sem dificuldades, catou o sobretudo cinza no banco do passageiro e a bolsa de educação física, que fora tão pouco usada naquele ano que ainda tinha cheiro de loja. Hoje seria seu primeiro dia no treino de futebol e nada no mundo a impediria de entrar naquele campo. Nem mesmo aquele pequeno acidente de trânsito ou algumas poças de lama.

Josh Halden a aguardava próximo do Land Rover com um guarda chuva aberto. Eles não trocaram mais do que meia dúzia de palavras no caminho até a passagem coberta que interligava duas construções do colégio.

— Sinto muito pelo seu carro — as palavras saíram da boca de April sem que a menina desse muito pensamento à elas — Eu estava dirigindo devagar a uma distância segura, mas me distraí e não vi você parando. Eu congelei!

Josh ainda fechava o guarda chuva quando levantou os olhos para encarar a menina. Os dois tinham conseguido abrigo nas instalações do colégio e, fosse pelo frio ou pelo susto, April estava pálida de um jeito que ele nunca havia visto antes.

— Posso pagar pelo conserto — April acrescentou depois da falta de resposta, sentindo uma risada nervosa crescer em sua garganta. Ela encurtou a distância entre os dois e os olhos verdes de Josh a acompanharam em silêncio — Josh, eu te agradeceria se você mantivesse isso apenas entre nós. Eu ainda não tirei a carteira e meus pais iriam me matar se soubessem que eu...

Um meio sorriso tomou os lábios de Josh. Por um momento, ele chegou a perguntar a si mesmo se April Wright estava fazendo algum charme para encantá-lo, mas a impressão foi embora rapidamente.

— Poderia ter acontecido com qualquer um — Josh inclinou o rosto, seus olhos verdes cautelosos — Guardarei seu segredo.

Um sorriso hesitante brotou nos lábios da menina.

"Confusão" era a palavra para definir o que se passava pela cabeça de April naquele instante. Em outros tempos, o sorriso galanteador de Josh Halden teria feito seu mundo girar e seu coração se preencher com satisfação. Abrigada da chuva em um dos corredores externos, com Josh Halden parado a centímetros de seu rosto, April esperou sentir alguma coisa. Qualquer coisa. Porém, depois de encará-lo por vários segundos, nada veio. Nenhum arrepio ou frio na barriga. Ele não ateava fogo em seus sentidos e nem a fazia querer prensar as pernas uma contra a outra. Infelizmente, seu corpo já sabia onde achar todas essas coisas. Hunter era pior do que qualquer droga.

Josh Halden ainda esperava por uma resposta, seus olhos cintilando em um desafio silencioso. Era um brilho de beijos não mencionados.

— Obrigada, Josh — April limpou a garganta, pondo alguma distância entre os dois.

— Não há de quê.

Lado a lado, eles seguiram para a entrada do edifício no fim da passagem coberta.

— Vejo que você está levando a competição a sério — ele indicou a bolsa de educação física que a garota carregava.

— Antes tarde do que nunca.

Josh assentiu e um sorriso presunçoso se formou em seu rosto. Ainda no espírito da brincadeira, ele segurou a porta do prédio aberta para que April pudesse passar:

— Uma pena ver tanto potencial desperdiçado.

— Pare de assumir que nós vamos perder, Josh — a menina advertiu.

Josh se surpreendeu com o tom. Sempre ouvira boatos sobre a impiedosa April Wright, uma garota feroz capaz de calar qualquer um com suas palavras. Jamais ocorreu a ele que se tratava da mesma April que havia lhe roubado um beijo em sua própria casa. Certamente, também nunca havia imaginado que se tornaria um alvo do par de orbes escuras e furiosas. Josh pensou que, talvez, a menina estivesse passando tempo demais na companhia de outros Thomas, seus colegas de fraternidade.

Eles pararam em frente ao elevador do prédio principal e aguardaram. Construído no início do século passado, o elevador de madeira era famoso por travar pelo menos três vezes ao dia. Isso, porém, não impediu April de apertar o botão no painel e chamá-lo para o térreo.

Aproveitando o silêncio, o garoto limpou a garganta e vestiu sua melhor cara de blefe:

— Seu irmão tem um problema e tanto nas mãos.

— Como assim?

— O dinheiro que sumiu — Josh observou o rosto da menina se contorcer em confusão. Bingo — Ah, você ainda não sabe. As notícias correm. Parece que alguém sumiu com todo o dinheiro que os tesoureiros da Thomas conseguiram arrecadar para as olimpíadas internas — ele fez uma pausa educada — Sem esse dinheiro será difícil custear as camisas para o time e os banners... Ou qualquer decoração, para falar a verdade.

Josh fez o possível para esconder a satisfação em respeito a April. Era óbvio que alguém da própria fraternidade havia roubado. Mais uma derrota para acrescentar à lista dos Thomas.

— Quando isso aconteceu?

April sentiu o tom ríspido transparecer em suas palavras novamente, mas não teve tempo de se arrepender. Ela precisava de respostas. Desde o lago, a menina havia começado a se perguntar quantas notícias realmente importantes lhe foram omitidas.

— Eu soube essa manhã, assim como todo mundo.

Os olhos castanhos amoleceram por alguns segundos e vagaram por seu rosto com ternura, como um pedido de desculpas.

— Obrigada, Josh — ela murmurou pela segunda vez no dia.

Atrás da porta de madeira, as grades sanfonadas se recolheram para o lado. Eles entraram no elevador e April pressionou um dos botões no painel.

Para conquistar a aprovação de April, Josh fizera um esforço para conhecer o famoso Cole Wright. Ele havia se tornado um aliado do irmão dela apenas para confirmar algo que já sabia: o garoto era uma boa pessoa, mas idealista demais para o próprio bem. Cole ganhou essa reputação depois de anos tentando mudar a imagem da fraternidade, sem nunca se abalar com a falta de resultados.

Josh sabia que a missão de Cole estava fadada ao fracasso desde o início. Era impossível conter aquele mal infeccioso que se espalhava pelo corpo estudantil. Josh tomava como verdade algo que os irmãos Wright não tinham coragem para admitir: cedo ou tarde, todo desajustado daquele colégio achava seu caminho para a Thomas. Notas ruins, falta de comprometimento e desonestidade eram as características que mantinham aqueles alunos juntos na base da cadeia alimentar de St. Clair.

Porém, ao mesmo tempo, era isso que tornava April tão especial. Ela era diferente. Enquanto seus colegas de fraternidade agiam como selvagens desregrados, April se destacava por sua postura e graça. De certa maneira, ela brilhava ainda mais intensamente graças ao contraste com o resto.

O elevador fez um impulso para cima e a mente de Josh, silenciosa e afiada, se concentrou na forma feminina próxima a seu corpo. O cabelo dela, agora molhado, cheirava a shampoo e chuva. Estava decidido: ele precisava arrancar da menina ao menos um segredo antes que ela partisse.

— A maioria das pessoas da nossa idade ficaria louca para tirar a carteira o mais rápido possível.

April tentou conter um repuxar de lábios envergonhado. Aos poucos um rubor saudável começava a voltar para as maçãs de seu rosto, antes pálido por causa do frio.

— Eu não vou precisar de um carro em Oxford.

Josh assentiu. Ele sabia muito bem o que April queria dizer com aquela declaração. Depois da formatura, tudo o que eles tinham ficaria para trás: carro, família e amigos. Eles não precisariam de nada disso a quilômetros de distância da pequena cidade patética em que cresceram.

Por um momento, o sorriso dela fraquejou.

— Ambiciosa — ele a cumprimentou, interrompendo os pensamentos da menina, que revirou os olhos com humor — Mas isso não explica como você sabe dirigir.

— Minha mãe me ensinou aos treze. Quando morávamos na nossa antiga casa, ela nos levava para praticar todo domingo. Você sabe como as ruas ficam vazias no domingo, não é? — abriu um sorriso, esperta — A única condição era que nós não contássemos nada ao nosso pai.

Josh não sorriu. Sob a luz fluorescente, os olhos dele pareciam mais escuros. Interessados, mas vazios.

— Ela parece incrível — foi uma observação educada.

Se havia algo de errado na expressão dele, April não percebeu. A menina tinha um olhar nostálgico no rosto, como se guardasse boas recordações.

— Ela é.

— Você está diferente, April — ele murmurou.

Ela abriu um sorriso gracioso.

— Espero que isso seja um elogio.

O elevador parou no segundo andar e a grade sanfonada se arrastou para um lado.

— Bom, eu fico por aqui — ela ajeitou a bolsa de educação física sobre o ombro e o fitou.

Josh se prontificou em empurrar a porta de madeira para ela, revelando um corredor quase inteiramente vazio. Todos os alunos estavam dentro de sala, exceto por Lexie Palmer, que esperava a vez para entrar no elevador. Ela ergueu uma sobrancelha para April, que fingiu não reparar.

— Te vejo mais tarde — Josh sorriu para Wright uma última vez, que retribuiu o gesto.

— Tchau, Josh.

April encarou o rosto dele, hesitante.

Josh era lindo de morrer. Suas covinhas, cabelos molhados e olhos claros faziam parte de um conjunto de tirar o fôlego. Ela lembrou do quanto costumava admirá-lo antes de sequer conhecê-lo e percebeu que algo havia mudado. Olhando para Josh, April buscou por algo dentro de si. Uma faísca, qualquer coisa. Depois do que pareceram segundos, ela concluiu que não havia nada. Apenas o mais completo e absoluto vazio. Não sentia-se mais compelida a jogar com ele e nem a provocá-lo com seus caprichos.

Mais uma vez, tão diferente de Hunter.

Lexie pigarreou, quebrando o silêncio entre os três. Quando conseguiu a atenção deles, a menina sorriu:

— Olá, April.

April forçou um "bom dia" e os deixou para trás, desaparecendo no corredor. Ela sabia que Lexie havia ultrapassado todos limites, mas aquele não era o lugar e nem a hora de agir. A bolsa em seu ombro pesava com as chuteiras, um lembrete valioso do que estava por vir. Precisava ter paciência. Se dependesse de April, elas resolveriam aquilo no gramado.








Uma vez dentro do elevador, o sorriso de Lexie se alargou. Céus. Nem em seus melhores sonhos ela poderia ter imaginado aquilo: April Wright e Josh Halden andando juntos pelo colégio novamente. Se os boatos fossem reais, era uma questão de tempo até os dois começarem a namorar. Estava na cara que April queria seu príncipe encantado de volta e o teria em um estalar de dedos. Eles se mereciam.

Hunter era um tolo se acreditava que ainda tinha uma chance com April.

— Desculpa — Lexie disse, jogando os cabelos longos e escuros sobre os ombros — Eu esqueci de me apresentar...

— Lexie Palmer — Josh a interrompeu antes que conseguisse terminar a frase — Você estava no time de vôlei da Thomas no ano passado. Eu assisti a última partida. Por pouco vocês não venceram.

Ela assentiu em silêncio, desconfiada. Uma interrogação silenciosa surgiu em seus olhos claros e foi a vez de Josh sorrir:

— Tenho que conhecer meus adversários — justificou.

— Oh. Deve ser por isso que você e a April são tão próximos — Lexie fez uma pausa e depois se apressou para completar: — Desculpe. Não quis me intrometer.

A julgar pelo sorriso falso que surgiu no rosto dela, Lexie sabia exatamente o que estava fazendo. Aquele era um truque que Josh conhecia bem demais.

— Não tem problema — ele a observou de soslaio — Os rumores se espalham. Alguns são mais difíceis de controlar do que outros.

Quando encontrou Lexie naquela manhã, Josh quase riu pela coincidência. Era uma perfeita oportunidade para matar dois coelhos com uma cajadada só.

— Eu sei que você fez, Lexie — Josh viu a surpresa atravessar o rosto dela, mas não parou: — Você ajudou Hunter Campbell a recuperar a bandeira da Thomas. Vocês invadiram minha casa durante as férias e roubaram algo meu.

— Eu não sei do que você está falando — Lexie sorriu seca.

De repente, o elevador parecia pequeno demais. As paredes se aproximavam rapidamente e o ar dentro da caixa de madeira se tornava rarefeito. Ela pressionou o botão do térreo, dessa vez insistindo até seu dedo perder a cor.

— Tenho que admitir que foi uma bela jogada — Josh continuou, ignorando as palavras desconexas que Lexie balbuciava — Eu fiquei pensando... Aquela ideia não poderia ter vindo daqueles fedelhos da Thomas. Eles fizeram o trabalho sujo, claro, mas não seriam espertos o suficiente para bolar um plano como aquele. April não seria coagida a participar desse tipo de coisa. Esse plano tinha que vir de alguém com um pouco mais de malícia. Alguém que conhecesse a minha casa e que já tivesse entrado lá antes. Quem sabe uma penetra de festas com um histórico de roubos no currículo. Soa familiar, Lexie?

Lexie finalmente soltou o botão. Seu coração batia rápido e o maldito elevador não respondia aos comandos.

— Eu sei o que você fez — a decisão em sua voz não deixava espaço para dúvidas — Não seria difícil provar que foi você, Lexie. Você foi descuidada. Qualquer um poderia ter te visto. Algo me diz que você não é a pessoa mais popular na Thomas nesse momento. Ninguém vai ficar do seu lado quando descobrir sobre o dinheiro.

Uma ladra. Era isso que Lexie era.

O rosto dela se acendeu em vermelho, tomado pela humilhação. Ela o examinou com seus olhos verdes cheios de apreensão, sem duvidar de nenhuma de suas palavras.

Bancar a boa menina não a levaria a lugar algum com aquele ali.

— O que você quer, Halden?

Ele riu. O som era maldoso e baixo.

— Você vai saber quando chegar a hora.

A grade sanfonada finalmente se arrastou para o lado, abrindo caminho para que Josh pudesse passar. Ele foi embora sem olhar para trás, atravessando o corredor com passos largos e cheios de si. Um verdadeiro Rosseau. Naquele momento, sozinha no elevador e sufocada pelo silêncio, Lexie o odiou como jamais havia odiado antes.


H U N T E R


— O que aconteceu com seu rosto?

Merda.

Quase tinha me esquecido daquilo.

— Eu me meti em uma briga.

Uma briga estúpida, diga-se de paisagem.

Em uma tentativa de tomar o controle da situação, eu fodi tudo, inclusive meu rosto. Meus olhos estavam fundos, rodeados por manchas arroxeadas. O ferimento no meu supercílio direito havia amanhecido coberto por uma casquinha vermelha e dava sinais de que cicatrizaria bem. Se eu tivesse sorte, em alguns dias mal passaria de um arranhão.

Ali estava algo que me faltava ultimamente: sorte.

Meu corpo afundou contra a poltrona de couro enquanto o compasso ritmado dos ponteiros do relógio se tornava cada vez mais alto. A sala ao meu redor era pequena, entupida de livros e mobiliada com móveis de madeira que pareciam ter saído da virada do século. Alguns diplomas e certificados faziam parte da decoração, pendurados na parede e emoldurados em quadros, mas não dei atenção a eles. Eu estava mais concentrado em parecer calmo e confiante.

Em silêncio, a mulher sentada de frente para mim girou a caneta entre os dedos. Ela me lançava olhares furtivos por cima de seu caderno e, pergunta após pergunta, analisava meu comportamento. Em nossas sessões, minhas respostas variavam entre "sim", não" e alguma declaração vazia, tão vaga quanto as duas primeiras. Depois disso, um discurso sobre a importância do meu progresso e uma despedida até a próxima semana, quando começaríamos tudo de novo.

Eu precisava admitir: a mulher era uma santa. Doutora Graham era o nome dela. A coordenadora da seção de apoio psicopedagógico de St. Clair, um poço interminável de serenidade. Sempre fazia caretas quando eu a chamava pelo primeiro nome, que eu tratei de esquecer.

De repente, o movimento da caneta parou. Graham estava impaciente e eu não tirava a razão dela. Hoje fazia cinco semanas que nós nos encontrávamos naquela sala antes das minhas aulas e nenhum de nós parecia particularmente satisfeito com o resultado das sessões.

— Essa não foi a primeira do semestre, Hunter.

Em outros tempos, eu teria rido. Jogaria alguma piadinha espirituosa sobre suas anotações e daria a sessão por encerrada, impedindo qualquer avanço.

Mas hoje, era diferente.

A julgar pelo olhar magoado que recebi de minha mãe antes de sair de casa essa manhã, meu comportamento estava beirando ao decepcionante de novo.

— Você diria que tem problemas para controlar a raiva?

Eu hesitei.

Pensei em Finch. No gosto da terra em minha boca e no amargor da cerveja. No sorriso peçonhento que Lexie abrira para mim antes de me beijar. No ódio que havia percorrido minhas veias como veneno, confundindo meus pensamentos. Mesmo sem fechar os olhos, eu vi April em seu biquíni vermelho, mergulhando no lago. O corpo dela, cheio de curvas, salpicado por gotas d'água — adorado pelas mãos de outra pessoa.

Meu estômago se revolveu. Minhas mãos se afundaram na poltrona, como se fossem a única coisa que me impedia de levantar e andar em círculos.

Oh. Aquela pergunta era das boas.

— Não — foi o que eu disse, apesar de saber o que ela queria ouvir.

A doutora franziu as sobrancelhas atrás de seus óculos de grau. Não estava irritada, só frustrada. Voltou algumas páginas em seu caderno e disparou:

— Então me conte sobre o incidente do início do ano.

Eu ri curto. Um som amargo e sem humor.

As sessões sempre voltavam para esse assunto. "O incidente". Honestamente, todo esse cuidado fazia o "incidente" parecer muito pior do que, de fato, fora.

Minhas costas relaxaram contra a poltrona.

— Hunter, eu estou tentando te ajudar — Graham tirou os óculos e me fitou. Sua expressão era exausta, marcada por noites mal dormidas — A direção não está satisfeita. Eles acreditam que você não está respondendo ao acompanhamento e até seu pai concorda com isso. Nosso acordo foi: dois encontros por semana até o fim do ano letivo ou nada feito. Você pode permanecer na escola, as queixas foram retiradas, nenhuma penalização no seu histórico — eu revirei os olhos — Mas se você continuar faltando, eu não vou poder fazer mais nada por você.

Eu sorri com má vontade.

Todos achavam que havia algo de errado comigo: Graham, meu pai e a direção do colégio. Cada um tinha um palpite diferente sobre o que eu deveria fazer com a minha vida. Até mesmo minha mãe.

— Eu já disse que falei sobre isso com a Sabrina — repeti pelo que parecia ser a décima vez — Tudo foi um mal entendido. Não entendo porque precisamos voltar a falar sobre isso.

Graham me fitou descrente por trás de seus óculos de grau. Ela sempre fazia isso quando eu me referia à antiga psicóloga de St. Clair pelo primeiro nome.

O que me lembrava: antes de fazer as sessões com Graham, eu me encontrava com Sabrina. Doce Sabrina. Ela, sim, era uma mulher espetacular. Até me convenceu a vir mais vezes à seção de apoio psicopedagógico. Eu não faltava a nenhum dos nossos encontros. Ficava ansioso, até.

Infelizmente, Sabrina foi transferida para cidade vizinha mês passado e eu fiquei preso com a doutora Graham.

— Está tudo sob controle, doutora — sorri e coloquei a mão sobre o peito como se fizesse um juramento — Prometo que não vou mais faltar.

Graham não engoliu. Apenas meneou a cabeça e fez mais anotações.

Acho que eu estava com menos credibilidade do que imaginava.

Ao contrário de Sabrina, Graham parecia nunca ter rido em sua inteira existência. Nas antigas consultas, Sabrina mordia a ponta da caneta e sorria para qualquer gracinha que eu falava. Só não era melhor do que quando colocava a boca ao redor do meu pau.

— Conte-me sobre a garota — Graham interrompeu meus pensamentos — Aquela que você mencionou na sessão passada.

A doutora correu a mão pelo caderno, como se procurasse por detalhes. Ela anotava toda vez que eu piscava, bufava e mexia as mãos. Não perdia um detalhe. Era irritantemente eficiente.

March — ela leu o nome em voz alta e mordeu o lábio inferior, esperando por alguma reação.

Oh.

Eu fechei os olhos.

Garotas com nomes de meses.

Elas sempre me fodiam.

— Eu ferrei as coisas entre nós — eu admiti.

— "Ferrou" como?

Os olhos dela brilhavam em expectativa atrás das lentes grossas. Aquela mulher realmente estava empenhada em me ajudar.

Como uma intervenção divina, o sinal que indicava o início das aulas ecoou pelos corredores, invadindo nossa pequena sala. Eu abri um pequeno sorriso para a decepção que tomou conta do rosto dela.

— Boa tentativa, Graham — puxei minha mochila do chão, e me pus de pé: — Mas nosso tempo acabou. Quem sabe na próxima?

Ela fechou o caderno de anotações e, jogando-o sobre a mesa em um gesto de desistência, ralhou:

— Só trate de não se atrasar, Campbell.

Eu ri esperto e saí do escritório sem fazer promessas.

Então a porta se fechou atrás de mim e eu finalmente estava só. Soltei o fôlego, calmo. Poderia ser pior, certo? Pelo menos, depois dessa conversa exaustiva, eu havia me safado pela falta de ontem. Se eu soubesse que aquela viagem daria tanta merda, eu não teria feito tanto esforço para ir.

Ainda tinha isso. Como se não bastasse a ressaca fodida que eu enfrentaria pelo resto do dia, eu tinha que lidar com o fato de que potencialmente todos que eu conhecia estavam putos comigo por algum motivo.

Pensei em April e meu estômago se embrulhou. As palavras que ela havia dito ontem à noite continuavam frescas em minha memória. April deu um fim em tudo. Seus olhos brilhavam em fúria quando ela prometeu não voltar atrás. Não poderia ganhá-la de volta simplesmente atraindo-a para o banheiro mais próximo em troca de sexo. Seria delicioso prová-la de novo, claro, mas eu não podia arriscar — pelo menos não se não quisesse ferrar as coisas permanentemente entre nós.

Porra. Se eu tinha aprendido alguma coisa nas sessões com Graham, era que comportamentos cíclicos eram meu forte. Por mais poderosa que fosse minha vontade tomar April em meus braços, eu precisava ser melhor que isso.

Foi por isso que eu escolhi tomar o caminho contrário a minha primeira aula. Havia uma parada que eu precisava fazer antes. Talvez o primeiro passo na direção certa.


N/A: Olá, olá, sejam bem-vindos a essa nova fase de BULLSHIT. Estou insegura, claro. Se vcs me conhecem, já sabem lfkjglkfj

Preciso conversar com vocês sobre umas coisas. Vou direto ao ponto logo: eu queria pedir a vocês para serem pacientes com a April E com a Lexie. Elas são adolescentes e ainda estão aprendendo com a vida. Vou confessar aqui que eu gosto muito da Lexie. Meu coração dói um pouco por ela. Sou contra competição feminina, mas gosto de explorar o crescimento dos personagens na trama. Gosto de quando a gente aprende lições com a história, etc. Claro, April e Lexie são duas pimentas, mas logo elas superam as diferenças. Elas precisam se entender antes de ficar tudo bem. O problema entre elas está enraizado bem antes do Hunter.

Aliás, sei que a Jackie meteu o louco no capítulo passado sobre  a Lexie, mas ela só queria arrancar uma reação da April (ok, ela tbm fez pelas risadas; não sei se vocês já conheceram alguém assim ldkjlkj).

Ah, o que vocês acharam dessa nova ótica sobre o Josh?

E "garotas com nomes de meses"? Eu estava ansiosa pela cena desse capítulo porque a planejo desde o capítulo II.

Beijinhos,

Babi

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top